René parecia preocupado desde
manhã. No avião entre Minneapolis e Dallas, onde iríamos
passar os próximos 10 dias, eu reparei que ele estava
passando muito a mão no pescoço. Eu perguntei o que ele
tinha, mesmo sabendo a resposta que ele me iria dar.
− Não tenho nada.
− Deixa eu ver.
A minha mão tocou o pescoço
dele. Eu senti uma massa dura do lado direito do pescoço,
debaixo da orelha, uma massa grande e dura como um ovo.
− Há quanto tempo você tem isso?
− Isso não é nada, vai passar.
Eu fiquei furiosa com ele.
− Você está esperando o quê para
consultar um médico?
− Mas isso só apareceu há
algumas horas.
− Dói?
− Não, nada.
Imediatamente pensei que seria
muito grave. Um inchaço que cresce em algumas horas e que
não dói, não poderia ser benigno… Durante a viagem, eu tentei não pensar no
pior mas não conseguia. Eu ainda sentia debaixo dos dedos a
sensação terrível daquela massa estranhamente dura.
No dia seguinte de manhã, muito
cedo, René saiu para fazer exames numa clínica de Dallas.
Ele não quis que eu o acompanhasse.
− Você vai dormir – disse-me
ele. – Você tem um concerto hoje à noite. Você tem que estar
em forma.
Ele beijou-me no rosto e saiu
com Martin Lacroix, o filho dos nossos amigos Coco e Pierre,
que se ocupava da logística da tour. Eu bem que disse a mim
mesma que eu precisava descansar para a minha voz estar em
boa forma de noite mas eu não consegui dormir. No final da
manhã eu fui ao hospital, onde encontrei René preocupado.
− É possível que eu tenha que
ser operado – disse-me ele.
Eu nunca em toda a minha vida
vou esquecer esse momento terrível: no começo da tarde um
médico jovem veio encontrar-nos no quarto de René e anunciou-nos que ele devia fazer uma
biopsia. Eu já estava
ouvindo, como nos meus piores pesadelos, a palavra que não
quer ouvir, mas na qual nós dois estávamos pensando desde o
dia anterior. O médico não falou disso logo. Ele utilizava
termos técnicos, ele explicava que o tumor poderia ser
maligno. Eu insisti para que ele dissesse claramente as
coisas, para que não restassem dúvidas.
[345] Eu segurava a mão de
René.
− É ou não é, doutor?
− A biopsia vai dizer.
Ele não era animador mas também
não era assustador. Era frio, técnico.
− Se for cancro, teremos que
operar. A biopsia seria feita no final
do dia e saberíamos os resultados antes da noite. René ligou
para Nova Iorque para um amigo médico, que prometeu
encontrar o melhor cirurgião dos Estados Unidos.
Perto das 17 horas, eu peguei o
avião para ir cantar em Kansas City. Eu não disse a ninguém
o que estava acontecendo. Apenas disse aos músicos, a Manon
e a Suzanne que René tinha uns negócios para cuidar, sem
falar detalhes. Eu não queria guardar segredo mas eu não me
sentia capaz de falar.
Antes de subir no palco eu
liguei para o hospital. René disse-me que tinham feito a
biopsia e que saberíamos os resultados antes da manhã
seguinte.
− In Allah Rad, meu amor, com a
graça a Deus.
De repente tudo me apareceu
horrível, terrível. Eu estava sozinha no meu camarim com a
minha dor, desfeita, de repente senti-me tão cansada que
sentia zumbidos nos ouvidos e dificuldade em articular
facilmente. Nessa noite, eu tive que ceder o meu lugar à
minha pior inimiga, a cantora robô. A minha alma estava em
outro lugar.
Eu poderia ter dito, quem sabe,
o que estava acontecendo às pessoas que me escutavam e
me aplaudiam (tão generosas!). Mas eu teria chorado tanto, eu
estava tão abandonada e tão desesperada. Por isso eu dei
lugar à detestável cantora robô. Eu fiquei fora das minhas
canções e eu escutei-a, eu vi-a fazendo o seu show, o meu
show. Eu tinha o espírito e o coração em outro lugar. Mas só
até "The First Time Ever I Saw Your Face" (A Primeira Vez
Que Vi o Seu Rosto). Aí eu encontrei-me no coração da
canção, que eu cantei muito bem, mesmo com os olhos cheios
de lágrimas…
Eu voltei a Dallas um pouco
antes da meia-noite. Fui directamente do aeroporto para o
hospital. Abrindo a porta, eu vi duas camas na escuridão.
René estava numa, na outra estava o seu amigo Pierre Lacroix,
que tinha chegado de Denver durante a tarde. Eu fiquei tão
comovida de o ver ali que quase comecei a chorar. René
estava dormindo. Pierre levantou-se e depressa me levou para o
corredor. Ele acalmou-me, falou-me para ir dormir, que Coco
me esperava no hotel. Depois ele deixou-me sozinha com René
mas eu não o quis acordar. Ele parecia em paz. Eu via uma
ligadura do pescoço dele, onde ele tinha feito a biopsia.
A minha noite foi curta e
agitada. Eu tinha acabado de adormecer quando bateram com
força na minha porta. Tinha havido um rompimento de canos no
hotel e o meu banheiro estava inundado. Os meus chinelos
flutuavam no quarto. Os empregados vieram secar tudo,
fecharam as válvulas, consertaram os canos. Eles eram muito
educados, falavam muito baixo.
Eu adormeci de novo. Pelas nove
horas acordaram-me de novo. Coco estava sentada na cama,
debruçada sobre mim, ela tinha pegado no meu rosto entre as
mãos. Eu sentia-as, muito frias, contra o meu rosto. Ela disse-me, olhando-me nos olhos:
[347] − Céline, minha querida, o seu
marido precisa de você.
Eu compreendi logo exactamente o
que estava acontecendo. Meia hora mais tarde eu entrei no
hospital com Coco.
René estava sentado na sua cama.
Ele tremia e chorava. Pierre Lacroix estava do lado dele.
− Eu tenho cancro, Céline. O
médico disse-me. Eu tenho câncer.
Pierre, Coco e eu rodeamos René.
Falámos com ele como se fala como uma criança. Ficamos assim
muito tempo, os quatro abraçados.
Era o dia 30 de Março de 1999.
Era o dia em que eu fazia 31 anos.
René só chorava quando eu me
aproximava dele e o pegava nos meus braços.
− A nossa felicidade está
destruída – dizia-me ele.
Ele estava errado. Ele agora
sabe disso.
Eu também estava terrivelmente
abandonada, esmagada pelo medo e pela dor quando soube dessa
notícia horrível. Eu não conseguia respirar, eu não
conseguia falar. Mas, como sempre, nessas situações, eu
fiquei em piloto automático.
Eu decidi na hora não chorar. O
homem que eu amo precisava de mim. Eu não podia ir abaixo.
Eu seria forte, eu seria a sua força, a sua saúde, a sua
cura… foi isso que eu disse a mim mesma na hora. E foi nisso
que pensei enquanto ele esteve doente.
Eu pensei também que preferia
que tivesse acontecido comigo. Eu sou forte. Eu tenho muita
força. Por mais que René dissesse o que estava sentindo, eu
não podia viver o que ele estava vivendo.
O doutor Bob Steckler, o amigo
médico de René, veio visitar-nos. Ele tinha visto René na
véspera, tinha assistido à biopsia e tinha sabido dos
resultados. Bem cedo de manhã ele tinha dito a René que o
seu cancro era grave e que ele o operaria dentro de algumas
horas.
Bob é um homem muito caloroso,
gosta de rir. Sem nos mentir, ele animou-nos muito. Ele até
nos fez rir. Ele dava-nos a impressão de que estávamos
todos indo num passeio juntos.
Patrick, o filho de René, que faz parte da minha tour,
estava com a gente.
Para o meu aniversário, René
tinha convidado, como sempre, os meus pais e alguns amigos.
Eles chegaram de Montreal no final da tarde e foram directo
para o hospital: papá e maman, Paul e Johanne, Marc e
Murielle. O doutor Steckler tinha deixado o seu escritório à
nossa disposição. E a sua mulher Debbie, tão linda e tão
meiga, veio acolher-nos, serviu-nos refrigerantes, café,
bolo. Jean-Pierre e Anne-Marie vieram depressa ver o seu
pai.
René adivinhou que eu queria
cancelar os meus concertos. Alguns minutos antes de ir para
a sala de operações, já sob o efeito dos sedativos, ele
repetia-me que eu tinha que continuar.
− É muito importante que você
não pare. Não vai mudar nada, você sabe.
Eu lembrei-me do que ele me
tinha dito quando teve o ataque cardíaco: "se você parasse
eu morreria duas vezes."
Ele convenceu-me a continuar. Anne-Marie estava do outro lado da cama, grandes lágrimas
correndo sobre o seu rosto.
[349] − Eu estou aqui – disse-me ela.
– Eu cuido do papá.
E ela logo parou de chorar. Nada
melhor do que canalizar a dor para um dever, uma missão.
Os enfermeiros vieram pegar
René. Estávamos todos em volta dele, toda a tribo, uma dúzia
de pessoas. Seguimos ele até à porta do bloco operatório.
Voltamos em silêncio para o
escritório do doutor Steckler.
Duas ou três vezes ele ligou-nos
da sala de cirurgia para nos dizer que estava tudo bem. Bob
Steckler é um optimista. Ele vê sempre o lado bom das coisas.
Depois da operação, ele disse-nos
que tinha retirado tudo o que tinha de mal. E tínhamos que
ficar confiantes e positivos.
− A cura de René acabou de
começar – dizia ele.
René dormia. Nós voltamos para o
hotel. Ele tinha mandado decorar a sala de jantar da nossa
suite e preparar um jantar de aniversário para mim, um
grande bolo com cinco velas.
Pela primeira vez, o nosso
grande organizador estaria ausente.
Nós tentamos seguir as
recomendações do doutor Steckler, de estar bem dispostos,
rir. Mas ninguém tinha vontade de estar num banquete. Mas,
mesmo assim comemos o meu bolo de aniversário. Costuma dizer-se que dá sorte e felicidade e a gente sentia que
estávamos precisando muito disso.
Tirámos fotos em grupo. E eu
pensei numa coisa terrível. Pela primeira vez em muitos
anos, René não estava presente. Eu pensei também, apesar de
tudo o que o doutor Steckler nos tinha dito, apesar de saber
que temos que afastar os pensamentos ruins, que ele podia
morrer e nunca mais estaria presente.
Eu estava sentada no fim da
mesa, entre a minha mãe e o meu pai, e quase desfaleci,
literalmente, quase caí no chão entre os dois.
Johanne, a minha decoradora,
tinha vindo com malas cheias de esboços, plantas, amostras
de pedras e telhas destinadas à nossa futura casa nova do
Rio Mille-Îles.
Para nos fazer pensar em outras
coisas, ela abriu as suas malas. Colocamos no chão as
pedras, sobre os tapetes, olhamos uma a uma, por vezes
mexendo na iluminação… mas eu não tinha coração para isso.
Eu estava incapaz de escolher o que quer que fosse.
Na noite seguinte eu cantaria em
Houston. René tinha recusado cancelar o concerto. Tínhamos
que continuar como se nada tivesse acontecido. Nessa noite a
cantora robô quis-se impor. Mas havia muita serenidade na
arena. Parecia que a multidão compreendia o que eu estava
vivendo, mesmo sem saberem de nada, porque nenhum comunicado
tinha sido enviado nesse momento sobre a doença de René.
Eu senti a minha voz tremer
quando cantei "All The Way", a nossa canção romântica. Eu
poderia ter chamado a cantora robô. Mas deixei a minha voz
tremer e a emoção tomar conta de mim.
Antes de começar o concerto, eu
tinha reunido os músicos no meu camarim. Mégo, André, Marc,
Yves, Paul, Dominique, as coristas, Daniel e Denis, os
engenheiros de som, e Lapin, o responsável das iluminações.
[351] Eu contei o que estava acontecendo.
Eu não queria prolongar-me
porque tínhamos que fazer um concerto. Mas quando eu vi os
olhos deles enchendo-se de lágrimas, eu não segurei as
minhas lágrimas. Nós choramos todos juntos. Depois, um a um,
eles vieram abraçar-me. Acho que nunca estivemos tão unidos
e atenciosos uns com os outros como naquela noite. Eles rodearam-me, envolveram-me com a sua música, que foi mais doce
e acariciante do que nunca. Foi como se tivéssemos rezado juntos. Foi isso que Mego
disse depois do concerto. Os outros também nunca esquecerão
esse momento que partilhámos.
É verdade que fizemos um
concerto magnífico. Mas, meu Deus, a que preço!
A bordo do avião que, durante a
noite, me levou de volta a Dallas, eu decidi mandar cancelar
todos os concertos, todas as gravações, todos os programa de
televisão, todas as entrevistas. Enquanto René não estivesse
fora de perigo eu queria dedicar-me unicamente a ele.
Evidentemente, ele não estava de
acordo.
− O que é que isso vai mudar? –
dizia ele.
Essa vez, eu estava determinada
a me impor contra ele e ir até ao fim. Eu queria partilhar
essa provação com ele. Eu não podia continuar trabalhando
numa tour sabendo que ele estava sozinho com a sua doença e
o seu medo. No entanto, fiz cedências. Eu fiz quatro ou
cinco concertos, muito próximos para poder cancelar. Mas os
últimos concertos da tour do Canadá e dos Estados Unidos
foram cancelados até ao Outono.
Nós tínhamos vontade de ficar
sozinhos. René admitiu que descansava melhor quando eu
estava do lado dele. Eu deitava-me ao seu lado, na sua cama
de hospital, e ficávamos horas na escuridão, em silêncio.
Um dia, mais ou menos uma semana
depois da operação de René, nós estávamos dormindo quando a
porta se abriu sem terem batido antes. Era o doutor
Steckler.
− Oi, namorados, como vai?
Ele chamava-nos sempre de
"namorados". Ele fala muito depressa, com um forte sotaque
de Nova Iorque que ele adora exagerar.
Ele sentou-se com força em cima
da cama. René tinha uma grande ligadura no pescoço, de onde
saía um dreno. Há uma semana que ele mal se mexia e falava
pouco.
− O que é que você vai fazer
essa noite? – Ele perguntou a René.
René sorriu fragilmente, sem
responder.
− Eu vou ver a sua boa esposa
cantar. Posso-te arranjar um ingresso, se você quiser.
Dessa vez, René riu com vontade.
− Eu adoraria acompanhar-te, mas
com essa ligadura e esse dreno…
−Ah! Mas se é por isso…
O doutor debruçou-se para René e
arrancou, com uma puxada, a ligadura e o dreno.
− Se você não vier ver a sua
mulher cantar essa noite, vou achar que você não é um bom
marido.
Ele falou-nos dos tratamentos de
radioterapia que René deveria fazer.
− A gente começará quando você
tiver bem descansado. Terá alguns efeitos secundários
desagradáveis mas nada de sério. Você vai recuperar bem
depressa, você vai ver.
Eu pude constatar, nessa noite
mais do que nunca, a que ponto todo o mundo na nossa equipe
adorava profundamente René.
[353] Todos o vieram cumprimentar.
− Estamos todos com você. Cuide
de você, campeão.
O nosso campeão iria assistir ao
meu concerto. Ele tinha sempre sido o meu crítico, o meu
público, o meu fã mais intimidante. Há 15 anos, todas as
noites, quando ele estava presente, eu sabia que ele me iria julgar, e que ele tiraria notas, que ele veria o meu menor
erro… Eu preciso que ele esteja presente. E, ao mesmo tempo,
o seu olhar reflectia a pressão que eu sentia. Eu, às vezes,
via o olhar dele entre a multidão. Se os meus olhos cruzavam
os dele, eu dizia sempre a mim mesma: "Desliga, Céline, não
olhes para ele… ele vai-te desconcentrar."
Mas, nessa noite em Dallas, pelo
contrário, eu procurei os olhos dele, eu prendi-me a ele e
cantei só para ele. Eu dizia a mim mesma que havia algo mais
importante do que a minha performance a partir de agora: a
sua saúde, a nossa felicidade. Nós estávamos num momento de
mudança na nossa vida. Era assustador, terrível e, ao mesmo
tempo, muito empolgante.
Alguns dias mais tarde, voltámos
a Jupiter, para a nossa grande casa, agradável e fresca.
René começou a sua convalescença. Ele devia ficar em forma
antes de começar os seus tratamentos de radioterapia. Os
médicos tinham previsto 38 sessões, 5 por semana.
Ele dizia, rindo, que a sua
doença tinha um lado bom: ele iria emagrecer um pouco. Mas
os médicos recomendaram que, enquanto ele esperava o começo
da sua radioterapia, comesse tudo o que tivesse vontade,
porque os tratamentos iriam roubar muita energia dele.
− Seja como for, − dizia o
doutor Steckler – você vai perder, junto com o seu apetite,
as suas forças e algum peso.
Depois da sua operação, durante
duas semanas, ele só podia engolir purés. Mas ele recuperou
o apetite depressa. Ele podia finalmente, pela primeira vez
em muitos anos, comer sem remorsos. E ele fez isso com muito
prazer durante algum tempo.
Os seus amigos continuaram a
chegar de Montreal, os seus velhos cúmplices de sempre: Marc
Verrault, Paul Sara, Jacques Desmarais, Ben Kaye, Rosaire
Archambault, Guy Cloutier e Pierre Lacroix. Eles vinham
passar dois, três dias, uma semana com a gente. Pierre e
Coco estiveram muito presentes durante a convalescença de
René. Eles rodearam René com o seu humor e o seu afecto. Eles
estavam em volta dele como os seus guardiões, defensores,
guarda-costas… Eu achava que eles pareciam guerreiros que
tinham vindo defender um amigo do mal que o ameaçava.
Estávamos no mês de Maio de 1999
e René continuava jogando golfe com os amigos. Ele usava um
lenço e um chapéu para não se expor demais ao sol. Era
penoso para mim ver ele assim, forçado a se proteger, logo
ele que ama tanto o calor e o sol. Ele dizia sempre às
pessoas que ficavam surpresas de o ver sair para o golfe
debaixo do calor de Las Vegas:
− Vocês esquecem que eu sou
árabe!
Ele dizia isso brincando, é
claro. Mas, no fundo, ele tem muito orgulho das suas
origens. Ele tem um fascínio pelo mundo e pela cultura
árabe, pelo deserto, pelo calor…
Eu passava horas no jardim ou em
volta da piscina com as minhas irmãs Manon e Linda. Eu
continuava vendo revistas de moda e de arquitectura. Os
homens saíam para o golfe muito cedo de manhã para
aproveitar o frescor. À tarde eles assistiam televisão – poker, golfe,
basebol, fórmula 1, cuja época tinha acabado
de começar – ou jogavam às cartas. Quando eles baixavam a
voz, eu sabia que René tinha adormecido. Ele sempre dormiu
assim, nunca longos sonos de 7 ou 8 horas mas
apenas algumas horas várias vezes ao longo do dia e da
noite. Então os homens levantavam-se, saíam para o jardim.
De vez em quando um deles ia ver René, ia colocar a coberta
sobre ele ou ajeitar o travesseiro.
René tem todo um universo no
qual eu nunca entro: o universo dos seus amigos do golfe, do
blackjack… Ele tem com eles umas ligações de amizade muito
fortes, muito íntimas. Ele liga para eles nos seus
aniversários (ele sabe as datas todas). Eles encontram-se
várias vezes em Las Vegas, que eles chamam "A Casa". Entre
eles, eles chamam-se de "campeão", "chefe" ou "doutor".
[355] Eles
têm o seu jeito de apertar as mãos, segredos, linguagens.
Eles vão pelo Canadá e pelos Estados Unidos ver jogos
importantes de baseball e de hockey, ver combates de boxe.
Eles adoram o show-business e as grandes cidades. Muitos
deles são, como René, jogadores. Eles fazem apostas sobre
tudo, para dar mais empolgação à vida… Eles jogam, eles
apostam entre eles, eles brigam, eles ficam amuados e reconciliam-se.
Todas as manhãs, cinco dias por
semana, Alain levava-nos ao hospital onde René fazia o seu
tratamento. A gente ia sempre no mesmo carro, fazíamos
sempre o mesmo itinerário, saíamos sempre à mesma hora,
exactamente 9 horas e 5 minutos. Todos os dias, René ligava-se em pensamento a um amigo, frequentemente um casal.
Alain sempre avisava esse amigo previamente, pedia para
pensar em René durante 5 minutos, o tempo que durava o seu
tratamento. Muitas vezes, pelas 9 horas e 20 minutos, quando
o Explorer de Alain viajava na estrada, esse amigo ligava a
René para lhe lembrar que estaria pensando nele e que sabia
que ele se curaria.
Uma manhã eu quase não acordei.
Quando saí do quarto, Alain e René estava prontos para sair
sem mim.
− A gente queria deixar-te
dormir – disse René.
Eu fiquei muito brava com ele.
Eu sabia que ele queria muito que eu descansasse. Mas, para
mim, era como se ele não tivesse confiança em mim, como se
ele não levasse a sério o mais importante juramento da nossa
vida.
− Você esqueceu, René Angélil,
que no dia do nosso casamento, eu prometi viver com você o
melhor e o pior?
Depois disso, ele vinha-me
acordar todos os dias de manhã.
Ele nunca se queixava. Nem a
mim, nem aos seus filhos, nem aos seus amigos. Eu
importunava ele. Eu queria que me dissesse tudo, cada dúvida
que ele tivesse, os seus medos, as suas dores. Mas nada,
nunca. Eu sentia-o, por momentos, tão longe de mim, tão
sozinho. Ele vivia coisas que eu não poderia partilhar. E
isso entristecia-me infinitamente, a gente tinha
sempre partilhado tudo.
Quando o seu médico viu que ele
reagia bem à radioterapia, ele quis propor outra coisa.
− Para colocar todas as chances
do seu lado, você teria que fazer um pouco de quimioterapia.
Algumas sessões apenas. Vai ser muito duro. Dessa vez vai
ter efeitos secundários pesados e desagradáveis. Mas será o
melhor. Você decide.
Os três filhos de René estavam
em casa nesse dia. René perguntou o que eles achavam. E cada
um respondeu a mesma coisa.
− O doutor tem razão. Você tem
que colocar as chances todas do seu lado. A gente está aqui,
a gente vai-te ajudar.
Eu sabia que eles fariam tudo
para o apoiar. Eles são bons filhos, generosos e cheios de
amor. Mas, mesmo assim, na luta que ele iria lutar, René
estaria muitas vezes muito sozinho. Não podemos partilhar de
verdade a dor e o medo das pessoas que amamos, pelo menos não até
ao limite.
Nessa noite, ao apagar a última
vela do nosso quarto, eu pensei muito em Karine e na morte.
E tive medo. Nós ficamos acordados muito tempo. Eu disse a
René que preferia que isso tivesse acontecido comigo em vez
de com ele.
− Eu sabia que você ia dizer
isso – ele respondeu-me. – E você seria forte, você lutaria
até ao fim, sem se queixar. Eu sei disso. E é isso que me
ajuda mais. No fundo, você está no meu lugar. Eu sei disso.
Eu sinto a sua força.
O médico falou-nos dos efeitos
secundários da quimioterapia. Entre eles, havia o perigo de
René ficar estéril durante algum tempo mais ou menos longo e
que nós não poderíamos mais ter um filho.
[357] Havia uma solução. Não era a
mais agradável nem a mais romântica mas ela dava-nos a
segurança de que, acontecesse o que acontecesse, o nosso
sonho era realizável. Alguns dias antes de René começar os
seus tratamentos, nós fomos num banco de esperma. O nosso
sonho esperaria, congelado, numa proveta.
Nós falámos tanto desse filho
com que eu sonhava que eu tinha a impressão que ele fazia
parte da minha vida. Não havia uma conferência de imprensa
nem uma entrevista sem que me pedissem notícias dele.
Rumores corriam sobre isso.
Disseram que estávamos preparando as coisas para adotar uma
criança na Rússia ou na China. Mesmo no momento pior da
doença de René. A verdade é que nunca pensámos nisso antes
da media o mencionar. Se eu tivesse
que ter um filho, eu queria que fosse do homem que eu amava,
a incarnação do nosso amor…
Eu nunca pensei que a minha vida
não teria sentido se eu não tivesse um filho. Eu nunca disse
isso. Eu não teria ficado "numa dor eterna" como a media
adorava repetir. Eu não queria culpabilizar esse filho que
eu não tinha e o fazer responsável pela minha felicidade.
Mas eu esperava-o, eu procurava-o, ele estava em todos os
meus planos…
Em tour, acontecia a minha
menstruação ficar desregulada. Cada vez que atrasava, eu
fazia várias versões de um filme na minha cabeça: eu via-me
com náuseas, eu fazia um teste de gravidez, depois eu via em
grande plano o rosto de René quando eu lhe dizia que estava
grávida. Ele pegava-me nos seus braços.
Durante muito tempo eu achei que
a gente ia ter uma filha. Eu tinha imagens muito precisas
dela. Eu inventava papéis para ela. Ela estava sempre comigo
no meu camarim, a bordo do avião, ela estava sempre alegre.
Durante os testes de som, ela vinha para perto de mim no
palco. Os músicos e os técnicos eram loucos por ela.
Durante algum tempo, era um
menino que eu via mais vezes. Contrariamente à minha filha,
ele era muito reservado, quase tímido. Ele não vinha ver-me
no palco. Ele esperava-me, muito sossegado, no camarim. Ele
vestia-se sempre como meninos europeus, com meias curtas, bermudas, sempre com muito estilo e muita classe. Ele vinha
comigo nas boutiques e eu comprava muitas roupas. Ele era
independente, muito misterioso. Cada vez que ele se
afastava, ele partia-me o coração. Mas eu amava-o por isso
também, pela sua frieza, pela sua indiferença.
Pouco a pouco, especialmente
depois do primeiro tratamento de quimioterapia, René começou
a dizer que tudo o que engolia tinha gosto de barro, a giz e a ferro. E ele
não quis comer mais. Ele tinha náuseas, momentos de
esgotamento, de grande tristeza. Ele parou de jogar golfe,
ele só saía para ir nos seus tratamentos.
A gente olhava por ele dia e
noite, Anne-Marie, Linda, Alain e eu. Ele às vezes ficava
irritado. Mas a gente forçava-o a dormir, a fazer um pouco
de exercício, a comer quando ele não tinha fome nenhuma, e
isso era novo para ele.
Alain desenvolveu verdadeiros
talentos para preparar refeições ligeiras e variadas, cada
vez menos pesadas. René fazia um enorme esforço todas as
vezes. Pouco depois, ele só conseguia engolir purés. No fim,
o menor odor deixava ele enjoado.
[359] Durante uns dias, ele
apenas conseguiu comer sorvetes "de nada", como dizia Alain,
e beber um pouco de chá muito leve.
Os médicos tinham dito que ele
sentiria, mais cedo ou mais tarde, uma grande fadiga. Quando
essa fadiga anunciada caiu sobre ele, mesmo ele esperando
por ela, foi insuportavelmente pesada e esmagadora.
O que a gente estava vivendo
mudou completamente a minha visão das coisas, as minhas
necessidades e os meus projectos. Eu também já não jogava
golfe. Eu não sentia falta. Um jogo de golfe é como uma
viagem ao fundo de nós mesmos para procurar paz, beleza e
repouso. Vendo René doente e incapaz de fazer essa viagem,
eu não tinha mais vontade também. Temos que estar em forma
para encontrar paz, beleza, força e repouso. Quando estamos
doentes não temos nada disso, ou, pelo menos, muito menos.
Todos os amigo de René tinham
ido embora, os meus pais também. E, durante dias, nem Alain,
nem Linda, nem as empregadas vieram. Nós vivíamos numa ilha
isolada do mundo exterior, sozinhos. Quando a doença de
René se tornou pública, tomamos
a decisão de não ter os jornais. Nós sabíamos que eles se
apressariam a aumentar todos os rumores que pudéssemos
imaginar e colocariam na primeira página coisas alarmantes.
De tempos em tempos, recebíamos
do nosso escritório de Montreal cópias de cartas com votos
de melhoras, que eu lia a René enquanto tomávamos o nosso
chá debaixo da nossa palmeira de cinco troncos.
Nós estávamos mais unidos do que
nunca. A sua doença tinha-se tornado a nossa doença,
o nosso cancro, a nossa luta. Nós lutaríamos
e ainda lutamos juntos, os dois, até ao fim.
Como todos os jogadores, René
acredita.
− Eu escolhi curar-me – dizia
ele. – O doutor disse que o bom humor é excelente para a
saúde, por isso decidi estar de bom humor.
Ele via a vida, a saúde e a cura
como uma aposta. Ele tinha escolhido olhar, em primeiro
lugar, para o lado bom das coisas. Ele dizia que isso que
estava acontecendo com ele era justo e que Deus sabe o que
faz.
− Eu fui muito bem tratado pela
vida, eu tenho que pagar de volta, eu tenho que pagar pela
minha felicidade, é justo isso – era isso que ele dizia aos
seus amigos.
A gente acreditava na cura. A
gente chorou e rezou. E, mesmo nos momentos piores dessa
provação, vivemos momentos verdadeiramente felizes, porque
estávamos juntos, porque nos amávamos.
Eu sou, para a vida e para a
morte, a mulher de um homem só. Eu nunca tive outro amor,
nunca tive outro amante, apenas pequenos flirts
insignificantes quando eu tinha 15 ou 16 anos. Eu lembro-me
vagamente de ter tido uma paixonete por um
jogador de hockey profissional que nem deve ter sabido e eu
nem sei se me lembro do nome dele direito.
Os homens não me cortejam. Isso
não me faz falta nem me causa dor alguma. Eu não sou mulher
de se deixar seduzir. Nunca. Tenho que dizer que é muito
raro eu ficar sozinha com um homem, excepto René, claro. E
também tenho que dizer que sempre proclamei o meu amor por
René o suficiente, para que todos os homens que se aproximam
saibam que eu sou uma mulher preenchida e que não procuro
aventuras. Os que eu encontro bem que podiam fazer-me
algumas sugestões, piscar, mesmo por jogo. Mas não.
Eu não sou, quem sabe, o tipo de
mulher que provoca paixão nos homens.
[361] Eu não sou provocante,
ou pelo menos nunca me apercebi disso. Todo o meu charme
feminino, eu investi para conquistar René Angélil.
Muitas mulheres da minha idade
já tiveram muitos amantes. Eu não as invejo nem as julgo. Eu
escolhi viver de outro jeito. E não é por princípios ou por
moral. É apenas por isso. René e eu amamo-nos pelo que eu
sou e pelo que ele é. Esse amor é o que tenho de maior, de
mais forte e de mais lindo em toda a minha vida. É
indestrutível, inalterável, como eu acredito que o
verdadeiro amor deve ser.
Eu sei que é ingenuidade, que
provavelmente é irrealista e injusto mas que não entendo
como as pessoas que se amam de verdade podem separar-se e
escolher não viver mais juntas. Elas não devem amar-se de
verdade ou um deles amou mal o outro. Quando dois seres se
amam, tem que ser para sempre. É isso o que eu acredito.
Eu fui criada no respeito pelo
amor, na certeza que ele é mais forte do que tudo. Somos
impotentes diante dele, não podemos resistir, mas ele
faz-nos mais fortes, mais sólidos,
invencíveis. Nós acreditamos, René e eu, que o melhor
remédio, mais do que a quimioterapia, a radioterapia ou
todos os medicamentos que os sábios nos possam dar, é o amor
que nós partilhamos.
René nunca aceitou, nem nos
piores momentos da doença, cancelar a tour dos estádios
Europeus, que começava em Junho.
− Quando você for – dizia ele –
eu terei terminado os tratamentos e estarei curado.
Ele tinha reconquistado a sua
confiança. Ele não tinha mais náuseas. Alain preparava purés
cada vez mais consistentes, que ele conseguia engolir. Ele
redescobria os odores, os perfumes.
Quando parti para a Europa, a
meio de Junho, ele estava ainda fraco, mas eu via nos seus
olhos e na sua voz os sinais da cura.
Desde 30 de Março até essa
partida, nós não nos tínhamos afastado, dia e noite, durante
dois meses e meio. Mesmo quando ele ficava no hospital para
os tratamentos de quimioterapia, eu dormia do lado dele. A
gente tinha sempre ficado regularmente longe um do outro
durante alguns dias, por vezes semanas. Ele tinha negócios
para tratar, pessoas para ver e eu tinha concertos para
fazer ou promoção… Eu estava em Estocolmo ou em Tóquio e ele
em Nova Iorque ou em Las Vegas… Nunca, eu acho, em 18 anos,
a gente tinha passado tanto tempo junto como durante a sua
doença. Essa aproximação tinha-nos trazido muita felicidade.
Indo embora, eu quebrava uma magia.
René dizia-me que isso seria um
repouso para mim. Durante dois meses e meio, eu tinha
cuidado dele sem parar, eu via se ele comia bem, via se ele
tomava os remédios, fazia ele descansar quando ele
precisava, levava ele para fazer exercício e, especialmente
ajudava ele a manter a esperança…
René mandou instalar uma ligação
em satélite que permitia que ele seguisse ao vivo na nossa
casa, na sala de cinema, os concertos que eu faria em
Londres, Paris ou Zurique. Eu sentiria a sua presença,
invisível aos outros mas tão preciosa para mim.
Algumas pessoas nunca falam que
se amam. Por pudor ou porque elas não se amam de verdade.
Com a gente é o contrário. Todos os dias René fala que me
ama e que vai-me amar para sempre.
[363] O momento em que fiquei mais
comovida foi durante o Stade de France, diante de 90 mil
pessoas. Eu fiz, eu acho, o concerto mais lindo de toda a
minha carreira. O clima também era caloroso e íntimo, como
se fosse numa sala pequena. Depois de ter cantando "Pour Que
Tu M’Aimes Encore", eu recebi uma ovação ensurdecedora. A
multidão rodeava o palco. Eu agradecia. As pessoas abanavam
cartazes sobre os quais eu podia ler "Nós te amamos, René".
E eu sabia que o meu marido via e escutava tudo isso, em
Jupiter, ao mesmo tempo que eu. Ele tinha pedido a Daniel, o
engenheiro de som, de o ligar aos meus fones. E, do nada, eu
escutei a voz dele no meu ouvido, a sua voz de veludo.
− Eu amo-te, Céline, você é o
meu amor para sempre.
Eu queria tanto poder chorar,
chorar de medo, de dor e de alegria, tudo misturado. Mas eu
não podia. Eu não queria. A minha voz iria quebrar. Eu não
podia, evidentemente, responder que eu também o amaria para
sempre. Nós tínhamos combinado um sinal.
− Quando você me vir tocar a
ponta do nariz, é para dizer que te amo.
A minha mão tremia com o
microfone.
Quando Jean-Jacques Goldman
subiu ao palco, alguns minutos mais tarde, houve uma
trovoada de aplausos que, durante um longo momento, nem eu
nem ele pudemos fazer nada nem dizer nada. Jean-Jacques fala
pouco, ele não é muito comunicativo, nem na vida nem no
palco. Ele caminhou para mim, debaixo dos aplausos. Depois
ele levou o microfone até à boca e falou docemente, sem
elevar a voz. Logo o barulho se acalmou por todo o estádio,
como se todo o mundo quisesse saber o que ele tinha para me
dizer.
Ele agradeceu-me por estar
presente, como se ele falasse em nome da França. E olhávamos
os dois para a multidão, os braços estendidos para a gente,
aqui e ali cartazes com votos de melhoras destinados a René.
Como se ele tivesse lido os meus
pensamentos, Jean-Jacques disse-me:
− Tudo o que eu posso dizer,
Céline, é…
E ele começou a cantar, sem
música, os primeiros versos de "S’il Suffisait D’Aimer".
Dessa vez, mais ainda, eu tive
toda a dificuldade do mundo em segurar as lágrimas. Eu
toquei de novo na ponta do nariz. Eu tinha mais ou menos
vinte segundos para voltar a mim mesma antes de entrar na
canção com Jean-Jacques. Eu fiquei um pouco escondida, na
sombra, respirei muito lentamente e profundamente. Quando
chegou o momento de cantar, eu já tinha de novo o controle
das minhas emoções, avancei para a luz e cantei.
Quando voltei para Jupiter, no
começo de Julho, René estava bem melhor.
Eu teria amado que maman tivesse estado perto de mim. Melhor do que ninguém, ela
saberia animar-me, aconselhar-me, ela era a minha cúmplice,
a minha amiga, a minha protectora. Eu sentia, no entanto, que
nesse combate que eu devia lutar do lado do homem da minha
vida, eu tinha que apelar às minhas próprias forças. As
palavras da minha amiga Coco, quando ela me veio acordar
naquela manhã de Março em Dallas, ficaram no meu coração:
− Céline, minha querida, o seu
marido precisa de você.
Eu sabia que René precisava da
sua mulher. E enquanto ele não estivesse definitivamente
curado, eu não seria mais nada, apenas a sua mulher. Não
seria mais cantora, nem jogadora de golfe, nem decoradora de
casas, nada. Apenas a sua mulher.
Durante dias, a gente não viu
ninguém. A gente preparava as refeições juntos. Eu ainda
vejo a gente na cozinha, em algumas noites, René
descascando, esmagando e cortando legumes. Por vezes ele
chegava perto de mim, ele pegava-me nos seus braços e a
gente dançava, sem música senão a nossa, na cozinha,
sozinhos. E felizes!
E depois, um dia, ele pediu-me massa. Eu compreendi que ele estava no caminho da cura.
Alguns dias mais tarde ele recuperou o apetite.
[365] Então passámos dias, os
primeiros dias em seis meses, sem pensar na doença dele, na
nossa doença…
O nosso único motivo de angústia
era o retorno a Montreal, à vida pública. René tinha mudado,
tinha emagrecido. A sua voz, já aveludada, estava mais rouca
e abafada do que nunca. Por vezes ele sufocava quando
falava. Ele precisava ter sempre uma garrafa de água na mão.
Eu acho que nunca o tinha visto tão nervoso e tenso. Foi
alguns dias antes de um concerto no Centre Molson.
Ele tinha consciência que todos
os olhos estariam sobre ele. Fariam questões sobre essa
maldita doença, sobre a sua voz, sobre os tratamentos que
ele tinha feito, aqueles que ele
ainda teria que fazer. E isso o angustiava mais do que tudo.
A mim também. Ele ainda estava muito cansado nessa época.
Ele tinha medo de sufocar ou começar a chorar ou não saber
responder às questões que iriam fazer.
Para que esse retorno
acontecesse do melhor jeito, a melhor coisa a fazer era,
segundo o nosso método habitual, convocar a media para uma
conferência de imprensa e falar tudo. Assim que ficou diante
das câmaras e dos microfones, René falou:
− Está tudo bem. Céline e eu
atravessámos uma dura prova. Estamos mais próximos e mais
apaixonados do que nunca. E, para não esconder nada, estamos
felizes!
Os jornalistas aplaudiram. E,
durante uma hora, falámos do concerto que preparávamos para
o dia 31 de Dezembro e da pausa que faríamos. E,
evidentemente, do filho que sonhávamos ter…
Alguns dias depois, fomos
para o Coliseu do Québec, onde eu não cantava há 4 ou 5 anos. Eu
sabia que não voltaria tão cedo. Lá, os produtores também
organizaram uma conferência de imprensa. Dessa vez, René
estava calmo e confiante. Era um daqueles dias em que, sem
sabermos direito porquê, tudo é lindo e bom, tudo parece
fácil. Nós tínhamos a intuição que a noite seria mágica.
Durante a conferência de
imprensa, René disse uma coisa que, eu acho, comoveu todo o
mundo. Começando por mim. Uma jornalista muito jovem
perguntou do quê ele estava mais orgulhoso na vida. Ele
respondeu que o seu maior orgulho era que eu tinha
continuado sendo uma mulher capaz de ser feliz, atenciosa
com os outros, forte e autónoma. Isso, evidentemente, comoveu-me muito. Ele disse que a nossa maior realização,
segundo ele, era nós seremos capazes de ser felizes juntos.
− Como manager, é a minha maior
realização − ele disse. Colonel Parker criou um dos maiores
artistas do século, Elvis Presley. Mas falhou no essencial,
eu acho. Ele não soube fazer ele feliz. O desafio de um
manager é levar o seu artista ao topo e segurá-lo lá. Mas o
maior de todos os desafios é fazer o artista feliz, evitar
que ele não se desfaça, nem que ele se transforme num
monstro insaciável.
Eu não sou a pessoa certa para
dizer se sou uma boa mulher, generosa e atenciosa. Mas não
acho que sou um monstro insaciável. Eu não tenho caprichos
de diva e, se reclamo de alguma coisa, é por um bom motivo.
[367] Uma noite, por exemplo, em
Montreal, na véspera de um concerto importante, eu entrei no
meu quarto de hotel, eu deitei-me na cama e percebi que
teria uma noite ruim. O colchão era muito duro, novo demais.
E eu só durmo bem num colchão mole, no qual eu posso afundar-me um pouco.
− Se eu passar a noite aí, eu
não vou dormir bem, não vou descansar direito, a minha voz
vai sofrer e, amanhã de noite, eu não estarei em forma.
Pior, eu tinha que passar um mês
nesse hotel. E eu tinha uns 10 concertos para fazer, em
Montreal, Boston, Ottawa, Québec, etc. René compreendeu logo
a minha preocupação. Ele mandou vir de Rosemère o meu
colchão e os lençóis de linho que eu amava.
Enquanto instalavam a minha cama
no quarto, eu comecei a pensar naquela princesa que sentia
uma ervilha debaixo de 10 colchões. Quando eu era criança,
as minhas irmãs diziam que ela era uma menina impertinente,
caprichosa e mimada, que deviam ter cozido a ervilha e
obrigado ela a engolir. Eu também não gostava dela. E aqui
estava eu, trocando de colchão porque o meu estava duro
demais.
Mas eu não tinha escolha. Eu
tinha que dormir para que a minha voz estivesse no seu
melhor no dia seguinte. E eu estava pronta para passar por
uma menina impertinente, caprichosa e mimada, até por uma
diva.
Em momentos normais, quando a
minha voz não está ameaçada, eu acomodo-me a tudo, eu como
de tudo, eu falo a todo o mundo…
Eu tenho a certeza que, graças ao
homem que eu amo, eu sou capaz de ser uma mulher feliz. E,
por causa disso, eu sei que o meu marido é o manager mais
extraordinário com que uma artista possa sonhar.
Chegar às maiores honras do
show-business não tem nada a ver com realizar-se na vida. O
que conta é saber continuar a ser, apesar do sucesso, das
dezenas de milhões de dólares e de fãs e da insuportável
pressão que pesa constantemente sobre nós, um ser
equilibrado, capaz de se maravilhar, capaz de se
surpreender, de se apaixonar, de ter ídolos e sonhos.
Claro, René é mais do que o meu
manager, ele é o meu amor, o meu marido, o que muda as
regras do jogo completamente. Mas, mesmo no começo, ele
nunca pensou unicamente na minha carreira. Ele sempre teve
em conta, antes de tudo, o meu bem-estar, a minha
felicidade. Ele fazia-me viver a vida que eu amava, tinha a
minha mãe perto de mim o tempo todo, o meu pai e os irmãos e
irmãs perto de mim. A vida tinha que ser sempre, e sempre
terá que ser, bela. É a nossa grande e única prioridade.
Hoje, mais do que nunca.
Nesse dia, no Québec, escutando
o homem da minha vida falando sobre a felicidade em plena
conferência de imprensa, eu disse a mim mesma que o único
fracasso que nos poderia acontecer seria não saber mais ser
feliz. Quanto a isso, eu sabia que estava realizada. Graças
ao homem que eu amo, eu queria ser uma cantora e uma mulher
feliz. E continuar feliz. Isso não é muito fácil.
Aos trinta e dois anos a gente
sabe que a nossa felicidade depende muito dos outros, das
pessoas que amamos, do que se passa no mundo. Aos trinta e
dois anos, uma mulher sabe que não pode ser feliz sozinha no
seu canto. E que há muitos horrores no mundo, guerras,
miséria…
Eu posso ajudar, eu sei.
Financeiramente, claro. Mas também, e acima de tudo, com o
meu trabalho. Eu acho que tenho que cantar o amor para que
ele continue a existir, para que ele ilumine e aqueça de
verdade o mundo. E é isso que eu vou continuar a fazer por
toda a vida, se Deus me emprestar a voz.
[369] Eu sabia que René estava no bom
caminho no dia em que ele voltasse para o golfe e para o blackjack. Em Outubro, enquanto eu terminava a última parte
da minha tour americana, ele jogou nove buracos em Denver
com Pierre Lacroix, Marc e Rosaire. Depois ficámos uns dias
em Las Vegas. Eu nunca soube se ele ganhou ou perdeu no
jogo. Isso não tem importância. Tudo o que contava era que
ele tinha reencontrado o prazer de jogar.
Não foram o golfe e o jogo que o
curaram mas foi no momento em que ele voltou para os campos
de golfe e para as mesas dos casinos que eu soube que ele
estava de verdade no caminho da cura.
Eu acredito hoje em dia que as
coisas ruins nos trazem coisas boas. A doença de René aproximou-nos, mudou as nossas prioridades, os nossos sonhos… Eu
nunca saberei o que aconteceria com a gente se ele nunca
tivesse tido essa doença mas ela deu-nos profundidade e
maturidade. Ela uniu-nos também, tornou-nos mais atenciosos
com os outros e com as coisas boas da vida.
Uma manhã de Primavera,
estávamo-nos preparando para sair para o golfe. René entrou
na cozinha, onde eu tomava o meu café com Linda e Alain,
e ficou extasiado com o jogo de
sombras e de luz que o sol projectava na parede. Antes ele
nunca tinha sido sensível a essas coisas. Ele nunca parava,
como ele pára agora, cada vez mais, para ver ou cheirar uma
flor.
Um dia, há muito tempo, quando
eu era ainda adolescente e estávamos voltando da Europa,
voando sobre o Atlântico, quando nos apercebemos de um
cometa que atravessava o céu para sul. Eu fui falar com os
comissários de bordo para me explicarem o que era um cometa,
a sua cauda e cabeleira. Depois eu fui falar com René, para
que ele visse esse espectáculo. Ele debruçou-se para a janela
e falou:
− Ah, que bom!
E voltou para se sentar, para
continuar lendo a sua revista. Hoje em dia, eu tenho certeza
que ele se interessaria por esse cometa, que ele iria querer
saber quanto tempo ele ficaria no céu, de onde vinha e para
onde estava indo…
Da noite de 1 de Janeiro de
2000, logo depois do concerto do Centre Molson, nós partimos
para Las Vegas com os meus pais, os meus músicos e alguns
amigos.
A bordo do avião, nós estávamos
estranhamente calmos e silenciosos. O concerto que tínhamos
acabado de fazer tinha sido tão cheio de emoção que
estávamos todos vazios, doloridos como os lutadores de boxe
depois de um combate.
A minha voz não tinha estado
muito estável, eu tenho a certeza. Tinha havido tantos gritos
de todos os lados e eu estava tão perturbada que, por
momentos, eu não me escutava nem escutava a música. Várias
vezes eu tive a impressão de cantar fora de tom.
− Ninguém percebeu, apenas você.
Nem a gente te conseguia escutar.
Num dia normal, a ideia de
cantar fora de tom teria-me levado ao desespero. Mas essa
noite tinha sido mágica, porque era a passagem para o ano
2000, é claro, mas também porque era o meu último show. Eu
estava diante do meu público pela última vez em muito tempo,
diante de toda a minha família, do meu país, dos meus
amores. O ciclo completou-se.
Cada uma das canções, eu
interpretei-as com uma dimensão nova. Estávamos vivendo o fim
de um sonho, o fim de um mundo. Era, ao mesmo tempo,
doloroso e maravilhoso. À meia-noite, René subiu ao palco e
nós abraçamo-nos por muito tempo. Eu tinha acabado de
cantar "L’Amour Existe Encore".
[371] À minha volta, 25 mil
pessoas abraçavam-se.
Eu não estava apenas a caminho
de Las Vegas, eu estava a caminho de uma vida nova. Antes de
mergulhar nela, eu iria dar uma grande festa. Diante dos
meus pais e amigos, René e eu iríamos casar de novo. Iríamos
renovar os nossos votos diante de Deus e dos homens.
Assim que soube das minhas
intenções, Arthur Goldberg, proprietário de uma dúzia de
casinos de Las Vegas, entre os quais o Caesar’s Palace,
ligou-nos e exigiu tomar conta disso. No final, eles ofereceram-nos essa festa como "presente de casamento", como ele
disse. Mia e Johanne trabalharam com Anna Dimartino do
Caesar’s Palace para conceber a decoração, organizar a
cerimónia, o banquete, etc.
Eu quis que a decoração, a
música e os cânticos, a cerimónia religiosa, a recepção, o
banquete e todo o desenrolar dessa grande festa lembrassem
as origens libanesas e sírias de René. A estrela e o
crescente, símbolos da cultura do Oriente Médio, estavam
presentes em toda a decoração. A música, a dança, as roupas,
os jogos propostos aos convidados, evocavam diversas
culturas árabes. Havia mesmo camelos e pássaros exóticos…
Parecia um dos contos das Mil e Uma Noites:
René triunfava no seu personagem de Grand Vizir ou de Califa
e eu como Sherazade.
Para a capela onde a cerimónia
teve lugar, a gente inspirou-se na arquitectura e no clima de
uma mesquita árabe. Recriámos, na sala de baile do Caesar’s
Palace, um imenso jardim oriental onde colocamos 6 tendas
berberes, cada uma com decoração digna das Mil e Uma
Noites.
Os convidados sentaram-se do jeito
oriental, sobre almofadas. Eles comeram uma refeição de
cinco serviços, preparada por cozinheiros libaneses, sírios
e marroquinos. Todos os homens se vestiram de preto. Todas
as mulheres vestiram vestidos longos da cor das pedras
preciosas: esmeralda, safira, rubi e diamante. René vestiu-se
de branco, eu tinha um vestido dourado de Givenchy.
Muitas pessoas disseram que
estávamos exibindo a nossa riqueza. Quem sabe. E o que tem?
A riqueza não se esconde. E eu queria que esse evento fosse,
primeiro do que tudo, uma proclamação pública do nosso amor.
Eu queria que o mundo inteiro escutasse a coisas mais
importante que eu tinha para dizer: "René, eu te amo". Era
esse o objectivo. E não podia ser discreto.
A nossa vida juntos é o meu
conto de fadas. Eu preciso contá-la ao mundo inteiro, do
mesmo jeito que preciso falar com as pessoas, preciso
apertar a mão delas, preciso aproximar-me delas e de cantar
para elas. Quanto temos a chance de ser extravagantes, um
pouco loucos, de fazer os outros sonhar ao mesmo tempo que
nós mesmos, não nos devemos privar.
Alguns dias mais tarde fomos
para Jupiter, onde passamos o Inverno mais lindo da nossa
história, muitas vezes sozinhos, outras vezes perto de
amigos queridos.
Por vezes eu ia passear com
René. Para não ser reconhecida, eu usava óculos escuros,
chapéu e cortei os cabelos muito curtos. Muitas vezes, René
era conhecido primeiro do que eu. Ele fazia parte da minha
imagem. E isso deixava-me realmente feliz. Éramos apenas um.
Quando me vêem, as pessoas pensam nele. Quando as pessoas o
vêem, pensam em mim. Estamos unidos para a vida.
Pela primeira vez em anos, a
gente assistiu a gala dos Grammys e dos Óscares na televisão,
sozinhos na nossa sala.
[373] Eu percebi até que ponto participar
nessas coisas podia ser, por vezes, penoso. Eu nunca tinha
dito isso, nem mesmo a René, acho que nunca tinha dito a mim
mesma. Mas eu nunca gostei muito de galas, da falsa alegria
que reina, as punhaladas invisíveis que as convidadas
jogavam umas nas outras junto com os sorrisos falsos… Todo o
mundo quer esmagar todo o mundo. Cada mulher quer ter o
vestido mais bonito, ou pelo menos o vestido mais falado.
René nunca gostou de me ouvir
dizer coisas negativas sobre seja quem for, especialmente
sobre outra cantora ou sobre qualquer pessoa do
show-business, ou sobre uma gala ou uma sala ou um
anfiteatro onde eu tinha que cantar. Apenas quando estávamos
sozinhos, evidentemente. E mesmo assim! Ele acha que falar
mal dos outros é vulgar e pouco produtivo.
Desde que ficámos de férias, nós
invertemos os papéis. Passei a ser eu quem contava as coisas
que tínhamos vivido, como antigamente ele me contava todos
os meus concertos. Todas as noites, depois do jantar, a
gente sentava-se na sala, assistíamos um pouco de televisão
e eu começava a falar de certos eventos que tinham
acontecido numa tour, de uma pessoa que tínhamos encontrado
há dois ou três anos, do tempo em que tínhamos vivido
enrolados naquele turbilhão.
Eu dizia a René que adorava essa
e aquela cidade, que não gostava tanto desse ou daquele
produtor mas aquele outro eu achava adorável. Ele ria muito
porque, no fundo, ele sabia de tudo isso. Mas, na época,
levados por tudo aquilo, a gente não falava sobre essas
coisas, não desse jeito. Nós não tínhamos tempo para isso.
Ou tínhamos muito pouco. E raramente.
Depois, pouco a pouco, com a
Primavera, deixámos de falar do passado e a fazer o balanço.
Olhámos para o futuro. Uma grande felicidade estava desse
lado, fazia-nos sinais, esperava-nos, ainda nos espera, esse
filho, o nosso filho, que virá, mais do que qualquer coisa que já
tenhamos vivido, embelezar e mudar as nossas vidas…
|