CELINE DION PT

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 INFOZONE » MA VIE MON RÊVE EM PORTUGUÊS

  Epílogo

 

Ás vezes enquanto eu estava grávida, eu imaginei que estava carregando uma menina. Mas era num menino em que  eu pensava mais vezes. Eu imaginei-o parecido com o pai. Eu via-o com os olhos, o sorriso e a voz do homem que eu amo. E eu ficava feliz por pensar que ele teria o seu nome, que eu acho tão lindo, tão musical, tão angélico: Angélil.

Por isso, a 24 de Agosto de 2000, quando o médico nos disse que esperavamos um menino, eu não fiquei surpreendida.

Nós estávamos em Montreal a ajudar Anne-Marie a preparar o seu casamento. Eu estava feliz. E a ideia de talvez vir um dia a ter outra criança já estava pairando na minha mente. Um dos meus óvulos fecundados por um espermatozóide do René continua conservado numa clínica de fertilidade. Assim, daqui a um ano ou dois, será possível colocá-lo de volta ao meu útero. Se tudo correr bem e se Deus permitir, a minha barriga vai voltar a ser a casa para um filho do homem que eu amo.

Eu nem tenho palavras para dizer o quanto amei todas as fases dessa gravidez. Eu posso dizer que René era um homem feliz durante esse período. Ele ficou muito mexido quando soube que ia ter outro filho. Mas eu conheço-o, eu sei o que ele estava pensando quando o doutor nos falou a notícia.

Ele não me disse para não me fazer sofrer mas eu quase o escutava falando no meu ouvido:

− Quando eu não estiver mais aqui, Céline, esse filho que se parece comigo estará do seu lado para te proteger, para te fazer feliz, para você se lembrar de mim.

Desde há uns dois anos, que cada vez que falavamos do futuro, ele pensa sempre que é possível não estar mais entre a gente na hora de ver realizar os nossos projectos. Ele diz isso. Não a mim mas aos outros, aos seus amigos.

− Dentro de três anos? Mas dentro de três anos eu nem sei se estarei mais aqui!

Eu o escuto, eu sei o que ele pensa. Ele, sem dúvida, tem muito medo. Mas ele não o impõe a ninguém, muito menos a mim. Ele vive com o medo, controla-o, como ele controla muitas outras coisas em volta dele e dentro dele. Eu sei que ele está em perigo mas também sei que ele é forte e que, juntos, vamos atravessar essa provação. E mais, quanto mais o tempo passa, mais a sua cura se torna durável e certa, mais do que provável, definitiva. Mas ele não toma nada como adquirido. Os médicos falaram que é preciso esperar cinco anos e ele vai esperar os cinco anos antes de se considerar curado.

Eu não acho que esse filho venha tomar o seu lugar do meu lado. René é e sempre será insubstituível no meu coração. Mas eu digo a mim mesma que, de certa forma, ele não será mais o único homem da minha vida. Essa ideia perturbava-me no dia do casamento de Anne-Marie. Eu estava desejando que outro homem viesse entrar na minha vida, esse pequeno ser que viria tomar a minha atenção, também seria o meu amor.

Nenhuma cerimónia me comove mais do que um casamento. Eu choro. E, a cada vez, eu caso-me de novo, eu digo em voz alta "Sim, eu aceito". Nesse dia, 25 de Agosto de 2000, enquanto Anne-Marie e Marc trocavam os seus votos, eu casei-me de novo, na presença do meu filho.

Eu via a felicidade de Anne-Marie e do homem com quem ela casou nesse dia, Marc Dupré, o amor da sua vida. Eles formam um casal magnífico. Marc é um jovem humorista, capaz de fazer imitações surpreendentes, mesmo uma de mim, cantando "My Heart Will Go On", a canção tema do filme Titanic. Nós gostamos muito dele, pelo seu humor, pela sua inteligência e, acima de tudo, pela felicidade que ele nos trás.

Nós vivemos no seio de uma família muito unida. Foram precisos muitos eventos, eu acho, e muito tempo, muita dedicação, muita energia, muita vontade, para criar ligações capazes de unir verdadeiramente uma família. Mas, a partir de agora, nada mais nos pode separar.

Quanto mais eu penso, mais eu digo a mim mesma que foi para isso que trabalhámos durante anos: para essa grande família que nos importa mais do que tudo, que é a nossa maior realização. Ela é constituída pelos filhos de René, pelos meus pais, pelos meus irmãos e irmãs, mas também por muitos amigos que fazem praticamente parte do nosso quotidiano. Sem esquecer essa rede de contactos que nós estabelecemos anos após ano nas nossas tours. Nós formamos um clã de verdade, uma tribo.

Nesse dia, estávamos todos reunidos nos jardins do Ritz, para acolher Marc, que entraria para sempre na nossa tribo. Eu via-os, Anne-Marie e ele e sentia-me cheia de felicidade. Eu passei todo esse dia com as lágrimas nos olhos. Isso acontecia-me cada vez mais, por causa do meu estado, sem dúvida. Eu não estava triste, pelo contrário, eu tive uma gravidez extraordinária, sem problema algum. Mas, em alguns dias, durante algumas horas, eu me sentia com vontade de chorar. E, nesse dia, no Ritz, toda a beleza e toda a felicidade que eu via em minha volta deixava-me feliz e mexia comigo ao mesmo tempo. A decoração sumptuosa, os casais abraçados, os olhares apaixonados, os vestidos das mulheres, as flores por todo o lugar, a música… E eu deixei-me chorar, docemente…

Mas eu não era a única. Teve momentos em que todo o mundo ficou comovido. Por exemplo, quando René apareceu, com Anne-Marie no seu braço, quando eles avançaram para o altar num tapete de pétalas de rosas. René olhou para ela, levantou o seu véu delicadamente e beijou a sua filha no rosto. Eu pensava no meu casamento, cinco anos e meio antes, subindo no altar da igreja de Notre-Dame, dizendo a mim mesma: "Dentro de alguns minutos eu serei a mulher do homem que eu amo, diante de Deus e diante dos homens, para toda a minha vida, para o melhor e para o pior". E eu desejava que Anne-Marie fosse tão feliz quando eu.

Com o tempo, eu e ela tornamo-nos verdadeiras amigas. Quando René e eu nos apaixonamos, claro que não foi fácil para ela. Ela ainda era uma criança. Não só eu roubei o lugar da mãe dela do coração do seu pai como também levei o seu pai comigo, porque ele passava o tempo todo em estúdio ou em tour. Se ela alguma vez teve raiva de mim, ela nunca deixou transparecer. Anne-Marie é a doçura em pessoa.

Eu tinha descoberto, graças a ela, a grande cumplicidade entre uma filha e o seu pai. Eu via René interagindo com ela. Ele era sempre tão carinhoso, tão respeitador, tão fascinado e maravilhado pela sua filha. Ele ama os seus filhos também, até hoje. Ele fala muito com eles, ele quer saber o que eles fazem, o que eles pensam, se eles estão felizes, apaixonados. Ele ama ter os seus filhos por perto.

Com Anne-Marie, eu acho que é diferente, é uma relação única. Eu acho que, para os homens, todas as mulheres são um mistério, mesmo a sua própria filha. E eu perguntava-me, olhando para eles, que tipo de mãe eu seria para o meu filho. Eu pensava no que ele se iria tornar e como eu iria me transformar quando ele entrasse na minha vida de uma vez por todas. Eu pensava no mistério que ele seria para mim, o mistério que uma filha nunca teria, eu acho.

Como todo o mundo na minha família, eu amo crianças. Eu sempre adorei os bebés das minhas irmãs, das minhas amigas. Imagine como será com o meu! Eu tenho que fazer um esforço para não dominar demais, para não ser uma mãe muito intrometida ou possessiva. Eu sei que terei vontade de o mimar, de dar tudo, de ceder aos seus caprichos, de o proteger demais.

E René, como será? Ele terá 59 anos quando nascer o nosso bebezinho. Ele sempre foi, com a sua filha e com os seus filhos, um bom pai, muito atencioso. Eu lembro-me, quando a gente ia em tour, ele tinha dezenas de fotos deles, ele ligava todos os dias, comprava muitos presentes, lembranças, brinquedos, roupas.

Um dia, sem dúvida, vamos partir em tour mais uma vez. Mas eu nunca me separarei do meu filho. Hoje em dia viajamos em condições ideais, em aviões privados e limusinas. Em qualquer que seja o continente, temos sempre um lugar base, um grande e lindo hotel onde ficamos e para onde voltamos todas as noites para dormir. René e eu queremos ver esse filho crescer, cada dia da sua vida.

Depois da sua doença, René aprendeu a delegar. Ele trabalha menos porque ele quer aproveitar a vida. Eu tenho certeza que ele será um jovem pai extraordinário. Ele queria esse filho, ele quer ver ele entrar na nossa vida de vez, de escutar ele chorar e rir… Todo o mundo na família está impaciente.

Mas eu não. Eu não posso dizer que tenho vontade. Eu estou tão bem, feliz demais no meu estado, no meu corpo e na minha alma de mulher grávida. Eu acho mesmo que está passando depressa demais. Eu quero saborear esses momentos de plenitude, de pura felicidade. Quem sabe é um pouco egoísta da minha parte, porque, de facto, eu tenho esse filho, ele está dentro de mim.

Uma noite de Setembro, eu o senti pela primeira vez mexendo no meu ventre. Foi o primeiro sinal que ele me deu, vindo directamente dele. Até ai, claro que eu senti o meu corpo se transformando, as curvas aparecendo, o meu ventre crescendo. Eram sinais indirectos de que ele está aqui, dentro de mim. Mas quando ele começou a mexer, era como se ele estivesse fazendo um sinal para mim, pessoalmente. Ele entrou de verdade na minha vida.

Ele mexe muito mas também dorme. E eu sei que ele me escuta cantar canções para adormecer. Eu sei que eu sentirei dor no momento de me separar dele. E como ele vai ser quando a gente se separar? Que tipo de alegrias e de preocupações ele me vai trazer?

A minha mãe, que teve 14 filhos, sempre nos disse que não tem favoritos. "Vocês são todos diferentes", ela dizia. E acho que ela desenvolveu uma relação diferente com cada um de nós. Mas, até hoje, em que somos todos adultos e autónomos, quando ela sabe que um de nós não está bem, que pegou uma gripe, que tem problemas sentimentais ou financeiros, ela fica toda mexida, de cabeça para baixo, como ela diz.

A minha mãe sempre ocupou um grande lugar na minha vida. Junto com René, ela é uma das maiores figuras da nossa tribo. Mas, por causa desse filho que estou carregando, acho que a nossa relação vai mudar. Eu sei que ela esta extraordinariamente feliz de ver que a sua filha, essa criança inesperada que ela teve tarde demais, vai finalmente ser mãe também. Vamos partilhar experiências em comum. Ela é muito animadora e ficou perto de mim durante quase toda a minha gravidez.

Tudo está acontecendo com todas as condições ideais. Eu estou em plena forma física e psicológica. Estou bem na minha cabeça e no meu coração. Sentimentalmente, eu estou realizada. E René está muito presente. Eu vejo o meu médico regularmente. Tudo o que eu tenho feito nesses meses é preparar esse bebé. Eu só penso nele, na gente.

Na Primavera passada, as noticias da minha gravidez empolgaram os tablóides. A meio do Verão, os helicópteros e os pequenos aviões vieram regularmente sobrevoar a nossa casa de Rosemère na esperança de tirar uma foto minha. A minha irmã Linda, que eu via todos os dias, leu numa revista francesa ou americana que tinham oferecido 50 mil dólares por uma foto minha. Muitas pessoas vieram bater na minha porta, com a câmara na mão, para me tirar uma foto… Tivemos que contratar um serviço de segurança que, noite e dia, vigiava a nossa casa.

Eu nunca senti como agressão a solicitação dos fãs. Pelo contrário, são testemunhos de amor e de reconhecimento que me comovem muito. Eu sempre fui com vontade e com grande prazer nas sessões de autógrafos e milhares de vezes deixei-me fotografar com os fãs que vinham no meu camarim depois do show ou que vinham na porta do meu hotel. Eu não estava surpresa por saber que essas pessoas estavam interessadas na minha gravidez.

Mas parecia-me que estavam indo longe demais. Eu compreendo que me queiram fotografar no palco. Mas grávida, eu queria apenas paz e sossego. Eu estava surpresa por as pessoas não perceberem isso. Com helicópteros voando sobre a minha cabeça eu não tinha a menor vontade de passear no jardim ou de passear na Ilha de Gagnon, que tínhamos comprado no Rio Mille-Îles, onde a nossa casa estava em renovações. Durante semanas eu vivi como uma reclusa. Eu passei muito tempo com maman e Linda. Saíamos pouco, ou nem saíamos durante dias. Os médicos tinham-me dito que eu podia jogar golfe mas eu preferi não jogar, para ter todas as chances do meu lado. Mas também porque eu sentia a pressão da media e dos paparazzi, que se escondiam no mato em volta do Mirage, o nosso campo de golfe.

Quando viu que todo esse circo me preocupava e stressava, René ficou completamente furioso durante dias. Ele avisou a toda a media do Québec que eu queria ficar sossegada:

− A minha mulher está grávida, ela precisa de paz.

E, rapidamente, o assédio acabou. Em Setembro eu pude passear na cidade com as minhas irmãs e amigas. As pessoas cumprimentavam-me gentilmente. Nunca mais me senti agredida.

Todos os dias, pensando no nosso bebé, eu acaricio o anjinho de madeira que Eddy Marnay me ofereceu quando fiz os concertos do Stade de France. É uma magnífica estatueta de madeira que veio de uma igreja espanhola. Emana uma doçura, uma serenidade, uma energia muito apaziguadora, muito animadora.

Eu li muitas coisas sobre gravidez e parto, eu fiz mil perguntas aos médicos que me seguem, eu fiz religiosamente todos os exercícios que eles me propuseram. Eu sei que o parto será um momento difícil e sério fisicamente. Mas eu sei que estou bem cuidada com tanto afecto e atenção. Eu tenho a impressão que esse filho não é carregado apenas por mim mas pelo universo inteiro, por todas as pessoas da família que pensam muito nele.

Em Outubro, quando chegámos a Jupiter, uma bela surpresa esperava-nos. Johanne tinha preparado o quarto do bebé. É magnífico, um lugar tão lindo que fez com que René e eu ficássemos lá durante horas para admirar o jogo de cores, de luz, as mobílias, os tecidos, os enfeites, os lustres que Johanne tinha encontrado em antiquários e nas boutiques da Florida, Paris e de Milão. Ela tinha criado para o nosso filho um ninho de beleza.

O nosso filho já transformou o nosso ambiente. Eu imagino-o nessa casa, no jardim, na cozinha, em volta da piscina, nas palmeiras… E eu vejo-nos, maman, papá, Patrick, Jean-Pierre e Anne-Marie, Linda e Alain, todos em volta dele, olhando ele, extasiados. Ele será o centro do nosso universo.

Desde o começo do Verão que sabíamos que, no Outono, René teria que fazer exames importantes. No começo, logo depois da operação e dos tratamentos, ele fazia exames a cada três meses, depois a cada quatro meses e depois a cada seis meses.

Todas as vezes acontecia a mesma coisa. Nos dias precedentes ficávamos terrivelmente ansiosos. Eu observava René. Quando ele assistia televisão, por exemplo, ou na mesa, eu via que ele não seguia a acção nem a conversa.

René é um homem que fala pouco, que não se abre facilmente, que não expõe os seus estados de alma, muito menos os seus medos e as suas agonias. Ele só fala quando o perigo for afastado, quando está tudo resolvido, tudo em ordem. Então ele liga para todo o mundo, para os seus filhos, para os seus amigos, para dizer que está tudo bem, que ele está bem.

Eu aprendi a ir procurá-lo. Eu não quero que ele se afaste de mim, mesmo para não me fazer sofrer. Essa dor e esse medo, eu também os sinto, seja como for. Eu quero partilhar com ele, como partilhamos as nossas alegrias. Eu repito que, no dia do nosso casamento, jurámos fidelidade "para o melhor e para o pior". É isso a vida de casal.

Esse último exame em Novembro parecia pior do que os outros. Quem sabe foi por causa da minha gravidez, porque estávamos tão felizes que tínhamos medo que tudo se destruísse.

A gente observava-se um ao outro. Quando os nossos olhares se cruzavam, a gente lia o nosso medo. Eu sei no que René estava pensando: "Se os exames forem positivos e a doença voltar, tudo será destruído. O nosso filho vai nascer numa casa infeliz. Quem sabe ele nem vai conhecer o pai."

A bordo do avião que nos levava para a Florida, eu e René, Linda e Alain, eu vi que René estava pensativo e que estava pensando apenas nos exames que teria que fazer no dia seguinte de manhã. Eu via ele fechando-se dentro dele mesmo, com o seu medo e a sua dor.

Na limusina, ele nem estava mais com a gente. Eu disse a mim mesma que eu não poderia deixar que ele se fechasse assim. Assim que chegámos a casa, eu retirei-me com ele e conversámos. Alain e Linda foram preparar as massas que René mais gosta. Mas ele dizia que não tinha fome e queria ficar sozinho e não queria falar. Eu dizia a ele:

− Diga-me os seus medos, meu amor. Eu sei que você tem medo. Vamos ter medo juntos, não cada um do seu lado.

Eu preparei um banho para ele, obriguei-o a vestir um pijama e a vir jantar com a gente. Finalmente, na mesa, a gente conversou e riu. Mais ou menos como de costume. Por momentos, ele esqueceu. Estava passando hockey na televisão, a gente viu o jogo todos juntos até ao fim. E, finalmente, René teve uma boa noite.

Os exames ocupavam quase uma manhã inteira. Primeiro eram dois exames de uma hora, logo de manhã. Depois René deitava-se numa plataforma que entra dentro de uma caixa onde ele ficava durante cinco horas. A gente vê apenas os pés dele. Ele não podia comunicar com o médico nem comigo. Mas ele sabia que eu estaria ali, bem perto, eu não arredaria pé. A máquina faz um barulho insuportável, por momentos tão forte que eu tinha que usar uns fones para proteger os tímpanos. Eu não podia falar com René mas eu falava com a máquina, eu transformava-me na máquina que explorava os órgãos, os músculos, os ossos do meu amor. Eu queria apagar todo o mal.

Durante esse tempo, René tenta ficar relaxado e pacífico, para que o mal não tome conta dele. Ele pensa num campo de golfe, num percurso que ele conheça bem. Ele revê os obstáculos, as distâncias, as armadilhas de areia, os charcos. Ele faz os 18 buracos. Mas, quando o percurso termina, o medo volta. Então ele parte para outro percurso. Ou ele revê, por ordem cronológica, os eventos da sua vida. Ele ocupa o espírito, ele ignora o mal com todas as suas forças, ele renega-o. Até agora, os médicos não acharam nem um vestígio de cancro. Faz quase 2 anos que essa doença apareceu. E a operação foi feita rapidamente. As chances de cura são excelentes.

Nesse dia de Novembro, voltámos para casa às 16 horas. Os médicos tinham dito que ligariam no começo da noite, assim que soubessem os resultados. René não falava, eu muito menos. Alain e Linda prepararam o jantar. Mas a gente não tinha nem fome nem sede. A gente trancou-se no nosso quarto. René estava incapaz de ficar quieto num lugar, ele levantava, andava em todas as direcções, voltava a sentar-me, voltava a levantar-me. Eu estava sentada. Estava com frio e com medo. Eu procurava desesperadamente um jeito de o reconfortar. Ele disse-me:

− Agora eu compreendo os condenados que esperam no corredor da morte pelos resultados dos seus últimos recursos.

O tempo passava lentamente, pesadamente e, ao mesmo tempo, depressa demais. Eram 5 horas, 7 horas, 8 horas já! E os médicos não ligavam. E eu pensava: "Eles encontraram alguma coisa, eles têm notícias ruins e não sabem como dizer."

Eu imaginava que toda a alegria que a gente tinha, essa grande felicidade que nos tinha sido dada, seria destruída para sempre. Estávamos tão perto um do outro que os nossos pensamentos eram iguais. Eu pensava: "Ele não pode mais pensar no nosso filho, ele não pode mais ter projectos nem sonhos."

A gente rezou e chorou.

Do outro lado da casa, Linda e Alain estariam pensando na mesma coisa. E todos os nossos amigos em Montreal, Nova Iorque, Los Angeles e em Paris, que sabiam que René faria exames importantes nesse dia, estavam esperando também.

Eu não sei como as coisas aconteceram de verdade. Só sei que René atendeu, eu nem tinha escutado o telefone tocar. E, logo de seguida, escutei a voz do doutor que dizia muito alto, que, de facto, estava gritando:

− Tudo bem! Está tudo bem, René. Você está bem.

Então o tempo voltou a andar para a frente, eu senti a vida entrando dentro da gente. Eu senti o meu corpo sacudido pelo choro. Ficámos abraçados por um longo momento.

Eu nem sei quanto tempo demorámos até irmos contar a boa notícia a Linda e Alain. O tempo para eles pareceu tão longo por um momento que eles começaram a pensar que as notícias eram ruins.

Quando voltámos para a cozinha e eles viram os nossos rostos em lágrimas, eles ficaram perplexos por um momento. Mas depois choraram de felicidade com a gente.

René ligou aos seus filhos. Ele estava muito calmo. Era uma loucura o jeito como estávamos tão felizes e tão serenos, tanto que quase sentíamos que valia a pena viver essas agonias para conhecer uma felicidade tão grande.

Eu liguei para os meus pais, para alguns amigos. Mas depressa percebemos que a notícia se espalhou muito depressa. Meia hora mais tarde, os amigos para quem ligávamos já sabiam das boas notícias. Na nossa grande família as boas notícias correm depressa.

Eu não me posso impedir de pensar que o filho que estou carregando nos protege. Ele estava lá comigo, na clínica, quando René fez os exames. Ele vai-nos mudar. Eu tenho a certeza que vai reforçar o nosso relacionamento, o nosso amor. E foi isso que eu disse a René nessa noite:

− Você está errado quando fala que esse filho vai ocupar o seu lugar do meu lado e que ele me vai proteger e me fazer feliz. É a nós dois que ele vai proteger. E ele vai-nos fazer feliz a nós dois. Eu sei.

Como todas as noites, rezámos uma pequena oração, para que ele esteja bom e feliz e para que ele saiba fazer os outros felizes. Ele já faz parte da minha vida, da minha história e de todos os meus sonhos.

 

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