Eu não tenho uma boa recordação
do primeiro dos três concertos que eu apresentei no Forum de
Montreal nessa Primavera. O público foi infinitamente
generoso comigo. Mas eu acho que não dei um bom concerto. Eu
estava distraída e ausente.
Eu tinha vários motivos: um
pouco de cansaço e de preocupação que a minha voz, ainda
frágil, fosse quebrar, e por causa da grande felicidade que
René me tinha dado. Eu estava com dificuldade em entrar nas
minhas canções e de as possuir de verdade.
Várias vezes eu quase cedi à
minha pior inimiga, aquela que eu chamo "cantora robô". Ela
faz tudo mecanicamente. Ela tem o meu corpo, a minha voz, o
meu nome. Mas não tem a minha alma. Nessa noite, a minha
alma e o meu espírito estavam longe, fora de mim. Eu estava
rodeada pela família, feliz e realizada, adulada. Eu tinha
no dedo o anel de noivado que o homem da minha vida me tinha
oferecido. Mas eu sentia-me estranha, indiferente, incapaz
de me aproximar das pessoas, de partilhar. Era como se as
canções não me inspirassem. Era como se a música me deixasse
fria e não servia mais para calar a felicidade.
[273] Eu tenho que dizer que cantar a
mesma canção, noite após noite, durante meses, anos, se
torna muito difícil. Muitas vezes repetida, uma canção fica sem sentido e sem emoção. Então, temos que a
procurar no fundo de nós mesmos, cada vez mais longe. Isso
exige um esforço cada dia maior.
Claro que, enquanto intérprete,
eu tenho a sorte de ter um imenso repertório. Dezenas de
compositores e de autores aceitaram trabalhar para mim. E
mais, eu gosto de cantar músicas de todo o repertório em
Inglês e em Francês dos últimos dez, vinte, cinquenta anos.
Eu encontro milhões e milhões de canções que eu amo, como "Calling
You", "All by Myself", "Quando On N’A Que L’Amour", como "The
Power of Love" ou "All the Way". Eu apaixonei-me por todas
essas canções quando as escutei. Eu tive vontade de as
refazer, mesmo que outros antes de mim, homens e mulheres,
as tivessem interpretado de forma magistral.
Então eu posso mudar
regularmente o conteúdo dos concertos, com canções novas e
envolventes. Mas não se constrói um show apenas com o que a
intérprete gosta nem apenas com canções novas. Temos que ter
em conta o gosto do público.
Nós sabíamos, pelas reacções dos
fãs e dos compradores, que "The Power of Love", por exemplo,
era e continua sendo, uma canção que as pessoas adoram. Mas,
em algumas noites, ela parecia-me uma escravatura
aterradora. Eu já a tinha cantado tantas vezes que nem sabia
mais como a fazer levantar, como colocar alma e emoção. Eu
tinha medo que a cantora robô se aproveitasse disso.
A gente vive sempre uma
lua-de-mel com as canções. O primeiro encontro é exaltante e
muito marcante. Eu lembro-me, como uma mãe se lembra do
nascimento dos seus filhos, do dia em que
conheci as minhas canções. Eu lembro-me do lugar: um quarto
de hotel, um estúdio, um avião, uma limusina. E lembro-me das
roupas que vestia nesse dia, da iluminação, do tempo que
fazia, das pessoas que estavam comigo.
Mas as paixões à primeira vista
não duram. Chega um momento em que a magia não funciona mais
tão facilmente como antes. É como se a canção perdesse a sua frescura e sabor,
as suas cores. É então que começa outro trabalho. É um pouco
como o amor, por vezes temos que lutar contra o costume e a
rotina para que seja sempre como a primeira vez, reinventar
a canção como reinventamos o amor, para todas as vezes
encontrar alguma coisa nova, para encontrar prazer. Senão
não vale a pena cantar ou amar.
Nessa famosa noite, no Forum, o
prazer veio devagar. Todas as minhas canções pareciam gastas
e usadas. Tudo o que eu dizia entre elas soava-me vazio e
falso. Mas eu trabalhei como uma condenada até ao fim mas,
na minha opinião, tive um mau resultado.
René não me relatou o concerto,
como sempre fazia. Ele parecia abatido também.
− Você está cansada e a culpa é
minha. Eu fiz-te trabalhar demais. Você precisa descansar.
Você vai tirar o tempo que precisar.
Mas, na segunda aconteceu o
contrário, foi um dos concertos mais lindos de toda a minha
vida. Mas, no começo, eu temi o pior.
Uma hora antes de subir as
cortinas, eu recebi no meu camarim a minha sobrinha Karine,
acompanhada de duas enfermeiras e de um médico de
Sainte-Justine, onde ela estava hospitalizada há várias
semanas. Ver ela partiu-me o coração. Ela estava tão pálida,
tão derrotada, tão pequena, toda atrofiada numa cadeira de
rodas, atrás da qual tinha instalado garrafas de oxigénio.
Os seus pulmões estavam muito fracos, muito congestionados
para que ela pudesse respirar.
[275] Pela primeira vez eu via-a
sorrindo com resignação. Eu achei que ela tinha desistido de
lutar. E que ela tinha vindo para se despedir de mim.
Eu, que tinha sido sempre muito
próxima de Karine desde que ela era criança, não conseguia
mais estabelecer contacto com ela, eu não sabia mais o que
fizer nem como a olhar. Ela percebeu. Então ela procurou-me,
falou comigo como se nada tivesse acontecido, sobre as
canções do meu último álbum, sobre a minha roupa do
concerto, fez-me perguntas sobre Paris, Hollywood, sobre
todas as cidades do mundo onde eu tinha cantado e ela nunca
tinha visto e nunca veria. E sobre a princesa Diana, com
quem eu tinha jantado umas semanas antes em Ottawa. Ela
disse-me, com um sorriso pálido:
− Eu soube que você tem um
namorado. Estou feliz por você.
Eu não podia impedir-me de
pensar em tudo o que eu tinha, em toda a felicidade que eu
esperava na vida. E, para ela, não havia nada. Esse
pensamento partia-me o coração e tirava-me toda a vontade de
subir ao palco e cantar as minhas canções de amor.
Nós sentámo-nos afastadas dos
outros. Eu pude falar com ela, como uma amiga íntima, sobre
a minha carreira, sobre as minhas viagens, das coisas mais
preciosas que eu tinha na vida, e sobre o meu amor, é claro.
Eu sabia que ela nunca teria nada disso: a felicidade de
amar um homem, de o ter na sua vida. Mas eu não tinha mais
medo de a machucar. Ela escutava-me e repetia:
− Eu estou feliz por você,
Céline.
Eu fiquei muito emocionada e
perturbada. Quando subi no palco eu senti a cantora robô aproximando-se. Mas eu sabia que Karine estaria lá, num dos
camarotes que René tinha reservado para a família e para os
amigos. Pensando nela, eu senti-me invadida por uma grande
paz, por uma grande alegria e por uma força, a força de Karine. Eu cantei para ela. Eu sentia que ela me apoiava. Eu
sentia que ela estaria sempre aqui, perto de mim, que ela não morreria. Eu queria quase
dizer à multidão inteira do Forum, e a ela especialmente:
− Você não vai morrer, Karine,
você não vai morrer.
Eu não a vi de novo depois do
concerto. O seu médico e as enfermeiras acharam-na bastante
cansada para enfrentar a multidão. Na tarde seguinte ela ligou-me para me dizer o quanto tinha amado o concerto. Eu
disse que também tinha gostado muito. Tinha sido um bom
concerto, eu tinha-me envolvido até ao fundo, com toda a
minha alma. Nem por uma fracção de segundo a cantora robô
tinha saído da sombra. Eu interpretei as minhas canções,
mesmo a mais antiga, como se fosse a primeira vez…
Eu parti para a Europa uns dias
mais tarde, onde eu fiz promoção e alguns concertos. Quando
eu voltei para casa, no dia 3 de Maio, Karine estava muito
mal. A sua voz ao telefone parecia cada vez mais fraca. Ela
tinha parado de me pedir que descrevesse as cidades onde eu
estava ou as roupas de palco que eu vestia ou para falar das
pessoas que eu tinha conhecido.
Mal cheguei, eu foi vê-la ao Sainte-Justine. Liette estava do seu lado. Eu vi que ela
tinha chorado muito. Eu sentei-me na cama e ficamos as três
um momento, sem dizer nada. Havia ternura e serenidade entre
nós.
René estava de pé no fundo da
cama. Eu lembro-me dele, muito comovido, sem palavras. Ele
sempre sabe o que fazer e o que dizer. Mas, por uma rara vez
na nossa vida, eu via-o impotente e desarmado. Nesses
momentos ele parece um garotinho e isso deixa-me sempre
comovida.
Os médicos tinham dado morfina a
Karine. Ela respirava com muita dificuldade.
[277]
Eu perguntei se podia fazer
alguma coisa por ela.
− Eu gostaria de ter um pijama
novo.
Era domingo. René teve que ligar
para o dono de uma boutique de roupas de noite, que aceitou
abrir a sua boutique. Ele comprou dois pijamas. Ele contou-me que chorou enquanto escolhia. Nós sabíamos que Karine
se tinha resignado em morrer e que a iríamos vestir para a
sua última viagem. Era como uma cerimónia, um ritual.
Eu ajudei a minha irmã a
lavá-la, a trocá-la, a penteá-la. Seguramos as lágrimas.
Karine escolheu o pijama branco e vermelho. A sua mãe e eu
pegávamos ela nos braços para a embalar. Liette falava
docemente para ela e alisava os seus cabelos.
Ela fez uma lista de todas as
coisas que ela mais tinha gostado na vida. Eram coisas sem
ligação umas com as outras, mas muito precisas: o paté de
salmão da minha mãe, duas ou três canções minhas, o rio de
Repentigny, os vestidos que ela tinha gostado mais de
vestir. Era como um inventário, um testamento, ela preparava
as bagagens com recordações para a viagem que ia fazer. Era
como se ela apenas quisesse levar com ela as coisas bonitas
que ela tinha conhecido. E esquecer todo o resto.
Tinha passado da meia-noite
quando ela morreu. Ela tinha 16 anos.
Eu fiquei profundamente marcada
por Karine, um fantasma sorridente, sempre presente na minha
memória. Ela foi a primeira criança de quem eu fui próxima,
com quem tive uma verdadeira cumplicidade. Ela não era uma
criança como as outras. A doença impediu-a de ser criança
mas ela amadureceu rapidamente… e ela tinha uma força e uma
luz muito fortes. A vida é injusta, mas as pessoas como Karine, as magoadas, as que perdem, as doentes, não estão
nesse mundo sem motivo, eles trazem-nos alguma coisa. Eu
tento ver, entender o quê.
Nas semanas e meses depois da
sua morte, eu pensava nela e sentia uma grande dor mas
também uma grande confusão e muita revolta, emoções que eu
não gosto. Karine tinha partido sem ter conhecido o amor,
depois de uma pobre vida passada procurando a sua
respiração, sempre esmagada pelo cansaço, submetida a
regimes e a tratamentos horríveis…
Contra a morte, não podemos
fazer nada. Contra as injustiças da natureza e da vida,
muito menos. Ou muito pouco. Mesmo o amor não é suficiente.
Seria lindo demais e muito fácil se amor fosse suficiente
para resolver todos os problemas do mundo, se amor fosse
suficiente para fazer felizes as pessoas que amamos.
Temos que ver a realidade. Temos
que agir, temos que lutar. Quem sabe temos que nos resignar
um dia, como Karine. Resignar a quê? Eu não sei. Eu acredito
e espero que haja uma outra vida. Eu acho mesmo que a emoção
que sai das canções, como o perfume de uma flor ou como o
suco das frutas, vêm de outra vida. A função dos artistas é
trazer essa emoção para a nossa vida.
[279] Na nossa casa de Jupiter, eu
acendo velas e candeias em todos os quartos da casa, dezenas
e dezenas de pequenas chamas. Eu amo a luz doce que elas
espalham. Antes de deitar, quando eu me aproximo para soprar
sobre a última chama, eu penso quase sempre em Karine. E na
morte. Eu sinto sempre um pouco de medo…
Karine fez-me descobrir e
explorar um outro mundo de emoção que, sem ela, eu nunca
teria conhecido. Para mim, ela não está morta, ela nunca
morrerá. Eu sinto-a sempre muito próxima. Ela ajuda-me, inspira-me, ilumina a minha vida. E, quando eu sinto a cantora
robô aproximando-se, eu apenas penso em Karine e ela vai
embora.
Eu não tenho boa memória para
números e datas. Mas o 8 de Novembro de 1993 vai ficar para
sempre gravado na minha memória como um dos dias mais lindos
da minha vida. Lançamos, esse dia, The Colour of my Love,
o meu terceiro álbum em inglês, gravado no verão nos
Estados Unidos. Eu tinha um novo look, pela primeira vez na
vida eu tinha os cabelos muito curtos. Mas não é por isso
que o dia 8 de Novembro de 1993 se tornou memorável. Foi
porque nesse dia eu disse ao mundo inteiro que René Angélil
e eu íamos casar.
Eu disse a uma multidão super
empolgada do Metropolis e diante das câmaras de televisão de
Montreal, em francês e em inglês. Eu tinha escrito no
encarte do álbum um texto de algumas linhas no qual eu
falava directamente a René, dizendo que eu tinha guardado
segredo sobre o nosso amor durante tempo demais e que eu
queria agora que ele aparecesse à luz do dia. Eu terminava
dizendo: "René, você é a cor do meu amor. L.V."
Nunca dissemos a ninguém o que
esse L.V. significa. Las Vegas? Não. Love and Victory? [Amor
e Vitória] Não! Cinquenta e cinco em números romanos? Não
mesmo.
É um segredo entre nós dois, é
um símbolo. Quando eu quero falar com René durante um
concerto ou quando estou na televisão, eu faço esse sinal,
desenhando um L com o dedo indicador e o polegar e o
clássico V da vitória e da paz.
Muitas pessoas entram muito
profundamente na nossa intimidade. Especialmente desde o 8
de Novembro, eu falo disso muito livremente diante da media.
René também. Falo sobre o nosso amor, sobre as nossas
dúvidas, as nossas alegrias e as nossas dores, os nossos
estados de alma, até mesmo as nossas brigas. Quase tudo o
que fazemos acaba por ser sabido, de um jeito ou de outro.
Achamos que esse é o melhor jeito de evitar o assédio dos
paparazzi, é sendo mais rápidos do que
eles, de tirar o tapete debaixo dos pés deles…. Só somos bem
servidos por nós mesmos. Nós nossos os nossos próprios
paparazzi.
A media acha que o grande
público é fascinado pelas celebridades. Sem dúvida que é
verdade. Mas eles tentam-nos fazer acreditar que o público
quer saber o que as celebridades têm: quantos banheiros,
quantas casas, qual o tamanho da piscina, como é o avião
privado, quanto dinheiro eles ganham, etc.
Eu acho que a media está
enganada, engana as pessoas e cria falsas relações entre as
estrelas e os seus públicos. Eu estou convencida que as
pessoas se interessam mais sobre as pequenas coisa da vida.
[281] Nos meus concertos, entre as
canções, eu sempre falei de alguma coisa que estava vivendo
ou de alguma coisa que eu gostava. Cada vez que eu falava em
fazer compras, por exemplo, e do prazer que tinha em vestir
vestidos novos, calçar sapatos, usar novos cremes de beleza,
todas as meninas na sala começam a rir e a aplaudir. Cada vez
que eu descrevia a felicidade que uma mulher sente ao
preparar uma refeição para o seu maridinho, eu tinha a mesma
reacção. Quando falo do cuidado maníaco que eu tenho ao
colocar em ordem as minhas gavetas e os meus guarda-roupas,
a mesma reacção. As coisas mais simples e banais da vida, é
isso que as pessoas querem ouvir.
Quando me vêm ver depois de um
concerto ou nas cartas que me escrevem, as pessoas contam-me
os seus sonhos. E nunca eram viagens de Concorde, nem noites
no Bristol ou no Beverly Hills Hotel, nem noites com Barbra
Streisand ou com o Principie Charles. Elas sonham ser
felizes no amor, sentir-se bem na sua pele, serem pessoas
melhores… No fundo somos todos iguais. É isso que temos em
comum e é isso que interessa.
Alguns cantores e cantoras fazem
a sua profissão provocando. Eles querem mudar o mundo. Isso
está certo. Mas eu não sou assim. Eu não estou tentando
mudar o mundo. Eu quero apenas cantar. Eu não tenho raiva
dentro de mim, ódio ou insatisfação. Eu nunca tive. Eu não
sou uma alma torturada. E não tenho nada a esconder.
Mas isso não me impede de ter
necessidade de ter um pequeno jardim íntimo onde apenas o
homem que eu amo pode entrar. Sem isso um relacionamento não
pode existir. Precisamos ter segredos, precisamos de espaço
e de palavras, sinais como LV, que é só nosso.
Nessa noite, eu cantei algumas
canções diante da multidão do Metropolis. Durante os
aplausos que seguiram "The Colour of My Love", René subiu no
palco e tomou-me nos seus braços. Ele passei a mão atrás da
cabeça dele, puxei-o para perto de mim e limpei uma
lágrima que corria pelo rosto. Depois eu beijei o homem que
eu amo na boca, na frente de duas mil pessoas e todas as
câmaras de televisão…
Ouvi gritos e aplausos. Sobre a
tela gigante, eu vi pelo canto do olho um grande plano do
nosso beijo.
No dia seguinte, diante da
reacção unânime da media, eu cantei vitória. Por uma vez,
René Angélil estava errado. Durante anos ele tinha tido medo
que as pessoas achassem o nosso relacionamento errado, que
os acusassem de me manipular. Foi o contrário que aconteceu.
A reacção de simpatia foi enorme e as pessoas continuaram
fiéis. O público nunca duvidou que nos amávamos.
René sempre teve imenso afecto
pelo público do Québec. Onde quer que estivéssemos no mundo,
ele tinha sempre o público informado do que nos estava
acontecendo. Nesse dia, o respeito dele aumentou mais ainda.
Nós iríamos descobrir em breve
que o acolhimento tinha sido igualmente caloroso por todo o
lugar. O público e a media pareciam fascinados pelo nosso
relacionamento. Tanto quanto tentamos esconder antes, agora
estávamos vivendo tão publicamente. Esse amor, o nosso amor,
iria ser o tema central da minha vida, de todos os meus
shows, da minha imagem, a minha marca. Eu podia finalmente
viver o que nós vivíamos sem fingir, sendo sincera.
Depois do lançamento de The
Colour of My Love, eu parti em tour de promoção através da
América do Norte. Para grande desespero das pessoas da Sony,
eu mal falava do meu novo disco ou do concerto.
[283] Em
vez disso falava de René
e da nossa felicidade. No Arsénio Hall, no Johnny Carson, na
Oprah Winfrey, eu dizia que ele era a minha inspiração. Eu
contava a nossa primeira noite em Dublin, os anos passados
vivendo o nosso amor em segredo. Eu dizia que iríamos casar
em breve.
− Quando?
− Um dia, quando tivermos tempo.
No passado verão, nós tínhamos
comprado uma grande casa em Rosemère e nós tínhamos, muito
meses antes de falar em público o nosso amor, começado a
viver juntos como marido e mulher. No alto da escada que
levava ao nosso quarto, René tinha pendurado uma enorme foto
nossa, tirada durante uma gala ou uma festa. A gente vê a
multidão em nossa volta, mas estamos de frente um para o
outro, olhos nos olhos, cada um com um grande sorriso de
felicidade.
René parava várias vezes diante
dessa foto.
− Todo o mundo devia saber – me
dizia ele, rindo. – Basta ver as nossas caras.
− Foi isso que eu cansei de te
falar, meu amor. O amor não se pode esconder. É como a luz.
O turbilhão da nossa vida nunca
foi tão poderoso como nos meses que precederam o nosso
casamento. Eu estive em Osaka com a Orquestra Sinfónica de
Tóquio, estive no palco do MGM Grand de Las Vegas com
Michael Jackson. Estive num grande anfiteatro do Midwest
diante de 20 mil pessoas. E estive em promoção em Londres.
Gravei um videoclip em Praga, gravei canções novas em Nova
Iorque. Eu dava um salto a Montreal. Passei três dias em
Paris. Depois voltei a Tóquio.
Eu nunca tinha compreendido tão
bem a expressão "não pertencer mais a mim mesma". Nós não
conseguíamos parar, nós nem pensávamos nisso, nem o
queríamos. Estávamos os dois perfeitamente felizes por estar
assim, levados, propulsionados para esse turbilhão.
Nós fazíamos curtas pausas, a
maior parte das vezes na Florida, onde acabamos comprando
uma casa em Palm Beach, num campo de Golfe. Nos
encontrávamos com outros casais amigos: Murielle e Marc
Verrault ou Coco e Pierre Lacroix e outros amigos de golfe
de René. Eu aproveitava o sol, repousava, fazia compras na
Worth Avenue com as meninas, caminhava um pouco.
Eu não gostava dos campos de
golfe e não jogava. Eu achava que as roupas de golfe eram
insignificantes. Mas, o motivo pelo qual eu fugia dos campos
de golfe, era porque eu não me sentia à vontade de férias.
Quando eu parava, eu sentia-me frágil, inquieta, ameaçada.
Era como se eu tivesse sido arrancada do meu meio. Eu
procurava logo alguma coisa com que ocupar o meu tempo e o
meu espírito.
Um dia, no jardim dos Breakers,
o magnífico e famoso velho hotel de Palm Beach, ficámos
falando sobre o nosso casamento com Pierre e Coco Lacroix.
René queria que fosse simples e convencional. Ele queria que
a gente se casasse numa pequena igreja. Era uma ideia muito
romântica, para mim, faltava brilho.
[285] O casamento que eu queria tinha
que ser fabuloso, inesquecível. Um verdadeiro casamento de
princesa. Eu queria grandes pompas, nada pequeno. Não havia
nada de comum e de pequeno na minha carreira, eu queria a
mesma coisa para o nosso amor, que fosse em grande.
− Tá fora de questão, meu amor,
casar-me com uma festa pequena.
No fundo, eu sou muito mais
extrovertida do que ele, muito mais excêntrica e
exibicionista. Eu queria criar um evento único, muito
espectacular. Eu queria que o meu casamento fosse uma
proclamação, professar o nosso amor e os votos de
fidelidade. E o grande público seria testemunha, parceiro e
cúmplice.
A minha amiga Coco compreendia
perfeitamente o que eu queria criar. E, desde o começo, ela
associou-se a essa aventura.
Eu tinha primeiro pensado num
cruzeiro para o Caribe. A gente alugaria barco de cruzeiro e
levaria todo o mundo. A gente se casaria em alto mar, numa
noite de lua cheia.
− Mas a gente não pode impor a
200 ou 300 pessoas um casamento que dura três dias – dizia
René.
− Você quer dizer 500 ou 600...
Ele ria. Tudo o que eu propunha
parecia exagerado, caro demais, irrealista. Mas foi isso que
o seduziu no meu projecto: o exagero, o risco e a loucura.
Ele disse-me mais tarde que
achava que, na época, não tínhamos os meios para pagar um
casamento assim tão sumptuoso. Nós já vendíamos milhões de
discos mas isso que eu estava preparando com Coco ia sair
muito caro. Foi antes de D’Eux e Falling Into You, os álbuns
e as tours que nos levaram a entrar no clube das maiores
fortunas do show-business. Mas René deixou-me tomar conta
desse projecto. E dizia a ele mesmo que haveria de encontrar
uma solução apostando no futuro.
− Tudo o que eu peço é que
aconteça no Québec.
Eu estava de acordo. É aí que a
maioria dos nossos amigos vive. É lá que vive o meu primeiro
público, a minha família, as minhas raízes e as de René.
Então nós iríamos casar, diante
de Deus e do Homem, com uma cerimónia grandiosa, como nunca
se tinha visto antes. Ele amava isso também. O "nunca visto"
é a sua paixão. Temos que fazer sempre o que nunca foi
visto, cantar como nunca se cantou, viver como nunca se
viveu.
Quanto mais doidas eram as
minhas ideias, mais empolgada ficava a minha querida Coco.
Contactamos Mia, que vivia na época entre Montreal e Paris.
Durante a primavera e o verão, nós trocamos ideias por
telefone e por fax…
Por causa dos meus compromissos,
tivemos que adiar de mês em mês a data do grande dia.
Esperando, eu passava todos os pequenos momentos que tinha,
todas essas horas passadas no avião, por exemplo, e todos os
meus momentos de silêncio e solidão preparando o meu
casamento. Eu via na minha cabeça a cerimónia, eu via
a decoração, eu desenhava vestidos de noiva. Eu examinava
centenas de revistas de moda.
Como todos os filmes que eu
sempre fazia na minha cabeça, eu já tinha imaginado um
guarda-roupa inteiro: vestidos de noite, vestidos de palco,
muitos vestidos de noiva… até mesmo o vestido, todo branco,
que eu gostaria de usar no meu caixão e no momento em que me
apresentarei no céu, porque estou contando ir para lá um
dia, claro.
Eu fiz um inventário rápido dos
vestidos que gostava mais. Depois fiz uma triagem. Eu
sentia-me atraída por vestidos de outra época, vestidos de
marquesas e de princesas, elaborados e pesados, tipo Sissi,
espectaculares, todos brancos, cheios de pérolas, lantejoulas
e bordados, uma cintura muito fina, um grande véu, tafetá e
transparências e uma longa cauda, evidentemente. Sobre os
meus ombros um casaco de peles branco. Na cabeça um diadema
ou uma tiara cheia de pedras.
Eu descobria que tinha um gosto
retro e nostálgico.
[287] Eu
não resisti. Eu queria que o meu vestido de noiva fizesse
sonhar, a mim primeiro, mas ao público inteiro, o mundo
inteiro. Eu acho que os vestidos muito modernos, apesar de muito lindos, não fazem sonhar como os
antigos.
Mas entre o meu sonho e a
realidade havia muito caminho. Mil e um detalhes escapavam-me. Eu enviava a Mia todo o tipo de desenhos e de
esboços num papel, dezenas de recortes de revistas também.
Pouco a pouco a imagem do meu fabuloso vestido de noiva
ficava mais precisa.
Durante o verão, em Nova Iorque,
em Los Angeles, em Londres, em Paris, eu fiz várias sessões
de prova de vestidos. Eu vi e provei todos os vestidos mais lindos do mundo
que existiam na época. Fomos também ver todos os grandes
fabricantes de sapatos, de espartilhos, de jóias e de peles.
Mia chegou, um dia, com duas
fitas com dois filmes: Ligações Perigosas, de Milos Forman e
A Idade da Inocência, de Martin Scorsese. Michelle Pfeiffer
e Glenn Close vestiam nesses filmes vestidos muito
semelhantes ao que eu procurava. Eram lindos, comoventes,
elegantes. Era um sonho! Mas eu queria mais tafetá, mais
pérolas e mais brilhos, mais sonho.
Então seguimos nessa direcção.
No final do verão, quando
anunciámos oficialmente a data e o lugar do nosso casamento,
17 de Dezembro de 1994, na basílica de Notre Dame de
Montreal, eu já tinha uma boa ideia de como seria o meu
vestido de noiva.
Eu tinha agora que fixar as
formas exactas, concretas, primeiro em papel e depois fazer
esse vestido que tinha sido inspirado por todas as imagens
que eu tinha juntado. Mas nem Mia nem ninguém dos seus
numerosos contactos em Nova Iorque ou Paris conhecia um
costureiro disponível que pudesse rapidamente formar uma
equipe de especialistas em pérolas, brilhantes, bordados,
rendas, capaz de criar um algumas semanas um monumento desse
tipo.
Foi Pierre Lacroix, director
gerente do clube de hóquei Colorado Avalanche, contador de
piada crónico, grande urso simpático, que encontrou. Ele
conhecia, não sei como, uma costureira de Montreal que fazia
coisas magníficas, Mirella Gentile. Mia e eu fomos
encontrá-la no seu atelier em Saint-Leonard, a este da
cidade. E ficamos fascinadas com a experiência dela.
Durante horas, nós falamos do
vestido que queríamos e que chamávamos entre nós "Idade da
Inocência". Nós mostrámos os nossos desenhos e os nossos recortes de
revistas. Eu acho que Mia até a fez assistir aos filmes de
Scorsese e de Forman…
Em Setembro, quando eu parti
para Paris para dar uma série de concertos no Olympia, um
manequim com as minhas medidas exactas ficou no meio do
atelier de Mirella. Muitas mãos já se mexiam em volta dele.
O tecido, as pérolas, os botões, as lantejoulas e as pedras,
os tafetás, tudo tinha sido escolhido e encomendado. O sonho
estava a caminho.
Eu tinha encontro marcado com o
público de Paris mas também com o autor-compositor
Jean-Jacques Goldman, que tinha manifestado o desejo de me
escrever um álbum, uma dezena de canções, letra e música. A
ideia deixava-nos muito felizes. Goldman é um grande
compositor de melodias. Ele saberia levar-me para um
universo musical completamente diferente daquele que eu
tinha explorado com os produtores americanos.
[289] Ele
era considerado em França uma anti-celebridade. Milhões de
jovens tinham um culto por ele mas ele recusava
sistematicamente em falar dele mesmo
nas revistas ou de participar nas coisas mundanas do show-business. Ele quase nunca dava entrevistas. Era o
contrário de mim.
A gente encontrou-o pela
primeira vez num pequeno restaurante, perto da Ópera, numa
tarde de Setembro. Estava um lindo dia quente. Ele chegou
primeiro, com jeans e blusa, capacete e botas de motoqueiro.
Eu não sei como mas depressa
falámos os três sobre as nossas famílias. Jean-Jacques fez-nos rir muito quando ele se lançou num resumo muito
detalhado da minha biografia: a nossa casa de Charlemange,
os meus irmãos e irmãs, dos quais ele conhecia a maioria dos
nomes, todos os eventos da minha carreira por ordem
cronológica… A Sony tinha passado todos esses documentos para ele, assim como
recortes da imprensa. Ele tinha estudado tudo
minuciosamente.
Discutimos muito pouco sobre o
nosso projecto de álbum. Tínhamos primeiro nos conhecido.
René gostou muito dele porque ele tinha falado das coisas
mais importantes: da família, da vida e da felicidade.
Nós encontramos-nos de novo
alguns dias antes da minha estreia no Olympia, num
restaurante marroquino e libanês que René conhecia. Dessa
vez, Jean-Jacques parecia distraído e nervoso. Apenas a meio
da refeição ele tirou do bolso grandes folhas sobre as quais
ele tinha escrito, à mão, as letras das suas canções. Ele estendeu-as para mim. Mas depois mudou de ideias:
− Eu vou ficar com elas até
amanhã. Vocês virão no estúdio e vão escutar a música junto
com a letra.
No dia seguinte, ele estava
confiante e relaxado como todos os músicos em estúdio. Ele
sentou-se no piano, com uma guitarra nos joelhos. Nós
estávamos bem perto dele. Ele deu-nos as mesmas folhas da
véspera. E começou a cantar "Pour que tu m’aimes
encore".
A três quartos da canção, René e
eu estávamos de mãos dadas, chorando. Jean-Jacques não nos
olhava. Ele cantou "J’attendais". E depois "Je sais pas".
Depois ele parou e virou-se para nós. Ele ficou muito sem
jeito quando viu que tínhamos chorado. Ele sorriu com tanta
felicidade que nós começamos a chorar de novo, rindo ao
mesmo tempo. Durante um bom momento ninguém falou. Depois Jean-Jacques arrancou-me as folhas das mãos, dizendo-me que
tinha outra canção na qual ele queria trabalhar de novo.
Ele fez uma cara de catástrofe
quando René lhe disse que apenas tínhamos duas semanas, no
começo de Novembro, para a gravação. Eu tinha que
participar, em Washington, numa emissão especial em honra de
Bill e Hillary Clinton, "A Gala for a
President". Eu tinha também um último show no Forum de
Montreal, uma dezena de dias de promoção no Japão e uma
passagem no "Tonight Show". Sem contar com as provas do
vestido "A Idade da Inocência".
Jean-Jacques queria ter
trabalhado comigo alguns dias antes de entrar em estúdio.
Certos efeitos e tiques de voz que eu tinha desenvolvido
irritavam-o. Ele achava, por exemplo, que eu fazia bastante
floreados.
[291] Ele não amava o meu jeito de enrolar os "R" ou de
molhar os dentes… Ele disse-me muito francamente o que ele
gostava e o que ele não gostava. Ele queria que eu tivesse
tido tempo de corrigir o que ele considerava maus hábitos.
− Ela entendeu bem – dizia René.
– Você não precisa de trabalhar com ela durante dias. Eu conheço-a. Confie em mim.
É verdade, eu tinha entendido
por causa dele. Porque ele tinha um jeito, ao mesmo tempo
autoritário e ao mesmo tempo meigo de explicar o que ele
queria, porque a sua música exigia, eu sentia isso, uma voz
mais sóbria, mais controlada.
Mesmo assim, ele parecia
preocupado quando fomos embora. Ele prometeu-nos que os
instrumentais estariam prontos. Quando eu entrasse no
estúdio, em Novembro, depois da minha série de concertos no Olympia, eu teria apenas que juntar a minha voz à música.
E essa voz, eu nunca a tinha
sentido tão flexível e tão poderosa. Ela nunca me tinha dado
tanto prazer. Eu estava confiante nela, a minha companheira,
a minha irmã, a minha melhor amiga, a minha cúmplice. Ela
não podia mais trair-me como ela já tinha feito. Eu falava
com ela, fazia elogios, agradecia.
Essa voz que eu amo é, com
certeza, o caminho mais curto entre o que tem dentro de mim
(as minha emoções, a minha alma, os meus pensamentos, os
meus sonhos) e os outros.
Quando eu canto, eu sinto-me
ligada com o mundo. É uma grande felicidade que me foi dada…
O Doutor Riley tinha tido razão.
Eu tinha precisado de cinco anos para desenvolver essa voz.
Mas tinha valido a pena.
No dia da minha estreia no
Olympia, quando subi no palco para fazer testes de som, eu
vi o meu irmão Michel. Ele tinha-se juntado à nossa equipa
há algum tempo. Ele era, como ele mesmo dizia, "o pastor dos
músicos". A ocupação dele era planificar as suas viagens, as
reservas dos hotéis, dos restaurantes, o transporte dos
instrumentos, das roupas de palco, etc.
De pé atrás do meu microfone,
ele olhava, com um ar de reflexão, as filas de poltronas e,
no fundo, a penumbra, o vazio tão aterrorizador mas tão
sedutor. Eu vi-o a inclinar-se, com uma mão no coração, como
se saudasse o público.
Depois ele veio para perto de
mim e disse-me que tinha realizado um velho sonho, não como
ele tinha desejado, mas ele tinha pisado o palco do Olympia.
Isso algumas horas antes que eu, sua irmãzinha, sua
afilhada, sua antiga fã, triunfasse nele.
− Eu hoje tomei a decisão de não
sonhar mais. Eu aceito finalmente que não vou entrar no
show-business.
− Mas faz tantos anos que você
não canta mais.
− Eu todos os dias sonhava
recomeçar. E isso estava destruindo a minha vida. Hoje,
finalmente, eu decidi que acabou. Nem todo o mundo tem, como você, a chance de realizar
os seus sonhos. Quando a gente não chega aí, o melhor é
deixá-los de lado e fazer a sua vida de outro jeito.
Eu estava no momento mais alto
dos meus sonhos. Eu cantaria numa das salas mais
prestigiosas de Paris, eu vendia milhões de discos e,
dentro de semanas, eu casaria com o homem da minha vida.
No dia seguinte ao meu último
concerto no Olympia, Jean-Jacques deu-me a demo da canção
"Vole". Quando escutei eu compreendi porquê ele tinha
preferido que eu não escutasse algumas horas antes de entrar
no palco do Olympia.
[293] Ele sabia que eu ficaria emocionada
demais. "Vole" é um pouco como o seguimento de "Mélanie",
que Eddy Marnay me tinha escrito alguns anos antes, uma
canção que se dirigia a Karine, morta na primavera do ano
anterior.
"Vole" iria reavivar essa
recordação dolorosa. E faria da minha sobrinha, de certa
forma, a madrinha desse álbum, como se ela o tivesse
inspirado do começo até ao fim.
Eu sempre considerei D’Eux como
o meu álbum mais bem sucedido, mais bem realizado, em todos
os pontos de vista. Eu redescobri com Goldman o prazer de
cantar em francês. Em inglês, eu quase sempre canto um tom
mais alto, espontaneamente, dou tudo o que tenho, muitos
floreados e muito poder, por causa da estrutura das canções,
por causa da textura dos sons e, claro, por causa do gosto
dos produtores e do público. Os americanos adoram os
floreados e as piruetas vocais. Na França é tudo mais
contido, mais sóbrio, mais pessoal também… As letras são
muito mais importantes.
D’Eux, no fundo, é a nossa
história, de René e eu. "Pour Que Tu M’aimes Encore", a
primeira canção que escutei, a primeira canção que gravei, fez-me pensar logo em
"L’Hymn à L’amour", que cantava Edith Piaf. É o mesmo tema,
a mesma estrutura, é a mesma mulher devorada pelo amor. É um
hino ao amor louco, possuído, possessivo, definitivo, como o
meu. Eu sabia, no dia da gravação, que essa canção faria
para sempre parte da minha vida.
− Essa canção, eu sinto que você
a vai cantar por muito tempo – dizia-me René.
– E pelo mundo inteiro.
Eu cantei-a por todo mundo, de
Seul até Estocolmo, passando por Memphis, Dublin, Munique e
Edmonton. Eu a amo ainda hoje.
Quando voltámos a Montreal para
casar, nós tínhamos D’Eux numa fita, um tesouro único que
guardámos para nós. Nós escutávamo-lo em casa ou no carro de
René, sozinhos, egoístas. Quando eu encontrava amigos,
jornalistas, músicos, a todos eu tinha vontade de dizer:
"Nós temos um tesouro, um álbum fabuloso".
Mas Sony tinha decidido que
D’Eux apenas sairia dentro de alguns meses, para não mexer
com as vendas ainda activas dos álbuns precedentes. René e
eu prometemos não deixar ninguém escutar. Mas ele estava
dentro de nós, dentro dos nossos corações, sentíamos as
vibrações, ele fazia-nos felizes.
Dois dias antes do nosso
casamento, nós passámos os dois algumas horas no convento
das carmelitas. Depois eu fui dormir na casa dos meus pais.
Eu passei o dia seguinte no spa com a maman e as minhas oito
irmãs, que seriam as minhas damas de honra. Uma armada de
massagistas, manicuras e depiladoras e outras pessoas do
género ocuparam-se da gente.
[295] Eu sei que não é politicamente
correcto pensar assim mas eu acho que, por vezes temos que
sofrer para ficarmos bonitas. Quando eu comecei a usar sapatos de salto alto das minhas
irmãs, eu tinha dores na barriga da perna, nos calcanhares,
nos joelhos, nas costas.
− Azar seu – dizia-me maman. –
Você pode usar saltos altos enquanto você quiser. Mas não
se venha queixar. A escolha é sua. Assuma-a.
No dia do meu casamento, eu
tinha, sem dúvida, razões para me queixar. Mas eu estava
empolgada demais. Eu acordei de madrugada, com a minha mãe
as minhas irmãs. Estava nevando em Montreal. O tempo estava
cinzento e gelado. Eu maquilhei-me sozinha. Para me vestir e
pentear, uma nuvem de mãos agitou-se durante horas. O meu
cabeleireiro teve que queimar os neurónios e mesmo colocar
um coque falso no meu cabelo para instalar solidamente na
minha cabeça uma tiara de pérolas que Mirella Gentille tinha
feito.
− É pesada demais. Você vai-se
machucar.
− Eu não quero saber. Mesmo se
você tiver que enfiar espinhos no meu crânio, eu vou levar
essa tiara. Eu assumo.
Eu sabia que eu não estaria
verdadeiramente feliz naquela festa se não desse o melhor de
mim, como num concerto ou numa canção. Para estar feliz e
realizada, eu tenho que me entregar. Está na minha natureza.
Eu acredito que não temos nada sem esforço, o que vem sem
esforço e sem sacrifício não vale a pena.
A festa foi grandiosa,
uma coisa nunca vista no Québec. Foi um sonho, elegante e romântico,
num cenário sumptuoso, na igreja e no hotel.
Havia milhares de pessoas ao
longo do caminho para ver as limusinas que saíam do hotel
Westin, escoltadas por motos da polícia, para chegar na
basílica Notre-Dame. Um tapete
azul com as nossas iniciais entrelaçadas começava na rua,
atravessava o adro e a nave central até no altar onde René
me esperava, rodeado pelos seus padrinhos. Eu entrei pelo
braço do meu pai, as minhas oito irmãs levando a minha
cauda. Foi magnífico, brilhante e comovente.
Eu pensava, avançando ao som do
órgão para o altar, no caminho que tinha percorrido desde
que esse amor tinha nascido. Eu sabia que nunca voltaria
atrás. Eu iria até ao fim, para o melhor e para o pior.
No hotel, tentamos preparar o
clima para dar aos nossos convidados a impressão de que eles
estavam em outro lugar, fora do mundo e fora do tempo, como
num sonho. A gente caminhava sobre tapetes de pétalas de
rosas. A gente entrava numa sala com as paredes e os tetos
todos brancos. Brancas também eram as grandes gaiolas onde
voavam as pombas imaculadas. A gente passava por uma sala
que parecia As Mil e Uma Noites, um bistrô de Paris, um bar
de sushi, um saloon do western, um bar de tapas. Havia
champanhe e flores por todo o lado. Havia mágicos, músicos,
um quarteto de cordas numa sala, uma banda rock noutra… Um
casino também, claro, com mesas de blackjack e roleta. E
todas as pessoas que amávamos.
Enquanto os convidados entrevam
na sala do banquete, ramos de flores caíam lentamente de um
céu de estrelas para pousar delicadamente num centro de cada
mesa…. Os meus treze irmãos e irmãs rodearam-me e cantaram-me "Que c’est beau la vie" ["Como é bela a vida"].
[295] No Québec, falaram muito sobre
esse evento, antes, durante e depois, e com todo o tipo de
tom. Alguns disseram que eu fiz demais, que eu estava
gastando a minha riqueza, que era uma vulgar operação de
marketing.
Mas eu acredito nos sonhos, nos
meus e nos dos outros. Se eu pude fazer as pessoas sonhar
com essas imagens, melhor. Eu era uma garotinha de Charlemagne com dois grandes
dentes caninos que me impediam de sorrir para o mundo. Eu
cheguei muito longe, levada pela minha voz, pelo amor da
minha família, de René e do público do Québec. Mostrar e
partilhar com os outros não é marketing, é gratidão.
Nós devíamos ficar, de seguida,
dois ou três meses sozinhos em Palm Beach sem fazer nada. Ou
tentar não fazer nada, o que não me parecia nada fácil. Nós
sabíamos que estávamos drogados pelo stress e pela pressão.
Mas a meio de Janeiro, apenas um
mês depois do nosso casamento, eu já estava em Londres para
fazer promoção, de livre e espontânea vontade. Eu tinha tido
a grande felicidade de ficar sozinha com o meu querido
marido, mas eu não podia ignorar o pedido de Paul Burger,
agora chefe da Sony-UK.
O álbum The Colour of my Love,
que, há um ano, fazia sucesso no mundo inteiro, mesmo no
Japão e na Coreia, não vendia bem naquele território.
Paul ligou para René para lhe
dizer que podia conseguir que eu fosse no programa mais
importante do Reino Unido, o "Top of the Pops". Se eu
aceitasse cantar "Think Twice", por exemplo, ou "The Power
of Love", o álbum poderia subir muito nos tops.
René tinha recusado. Mas ele
habilmente falou desse assunto comigo. Estávamos na cozinha
preparando o jantar.
− Paul ligou… Eu disse que não
ia dar… a gente tinha prometido que íamos tirar umas férias…
Eu reflecti um momento. E pedi a
René para ligar a Paul falando que eu iria. Eu vi no olhar e
no sorriso dele que era isso que ele esperava de mim.
Esse homem, René Angelil, sabe-me enrolar. E o que eu mais quero é que ele seja sempre
assim, porque eu sei que ele quer, acima de qualquer coisa,
a minha felicidade. Apenas a minha felicidade. Eu nunca
duvidei disso.
Eu percebi, semanas depois do
meu casamento, que eu tinha-me tornado tanto ou mais
ambiciosa do que ele. Eu tinha que admitir que eu não tinha
a menor vontade de parar. Nós dois queríamos ir mais longe,
mais alto. A viagem era apaixonante, a estrada era linda e a
paisagem magnífica.
E mais, cada vez que eu tinha a
ocasião de viver um momento tranquilo, eu sentia medos e
agonias até no fundo da alma. Eu desenvolvia gripes,
problemas de garganta, uma bronquite, um mau jeito na
coluna.
Por exemplo, quando eu e René,
junto com Pierre e Coco Lacroix, fomos em uma viagem de
lua-de-mel, seis meses depois do nosso casamento e depois de
uma dura campanha de promoção na Europa e uma esgotante tour
na Austrália. A minha principal actividade, naquele lugar
fabuloso, certamente um dos lugares mais bonitos para passar
férias em todo o planeta, foi espirrar, assoar o nariz,
tossir, tentar respirar e limpar a garganta. Eu devia ter
dado a mim mesma uma momento de preguiça. Mas eu não era
capaz. A pausa e o repouso angustiavam-me. Porquê? Não sei.
Eu devia ter horror do vazio, medo do desconhecido, ou do
que havia dentro de mim e eu não tinha tempo de ver enquanto
estava mergulhada na acção. Essa acção é que era o meu lar, o
meu refúgio.
Existe dois tipos de pessoas: as
que olham para trás, para o passado, que reflectem muito, que
se interrogam sobre o sentido da vida, que pensam na morte e
no tempo que passa. E existem aquelas que olham para a
frente, as pessoas de acção, que avançam.
Por natureza, e pela força das
circunstancias, por deformação profissional, sem dúvida, eu
sempre fui daquelas pessoas que olha para a frente. Eu não digo que é
melhor, eu constato apenas que raramente olho para trás. Eu
não sou o tipo de mulher que sente prazer em analisar tudo,
a fazer introspecção, que se interroga sobre a existência.
[299] Voltando das Fiji, eu parei em
Calgary em plena época de Stampede, uma imensa feira popular
que propõe uma série de atracções. Era poeirenta,
desarmoniosa, excitante, cheia de vida. Do nada passou a
minha gripe e o meu esgotamento. Eu voltava a gostar da
vida, encontrava o meu equilíbrio, a minha energia. Eu amava
o clima de festa que reinava no Stampede e eu tinha acabado
de conhecer muitas pessoas estimulantes.
Mego, o meu maestro, tinha
criado uma nova banda que iria me acompanhar em tour. Ao
guitarrista André Coutu, que já estava com a gente há dois
anos, se juntavam o baterista Dominique Messier, o baixista
Marc Langis e o percussionista Paul Picard. A música era a
minha profissão, a minha paixão. Os encontros com os
verdadeiros músicos sempre foram marcantes para mim. Esse
encontro em Calgary foi também marcante.
A gente não se conhecia. Nunca
tínhamos imaginado tocar juntos. Mas, entre nós, a alquimia
funcionou desde o começo. Depois de alguns minutos de
ensaio, às oito horas da manhã, num palco ao ar livre, na
confusão dos preparativos de Stampede, nós encontrámos no
nosso ritmo e muito prazer também. Nós sabíamos os seis que
faríamos juntos um lindo caminho.
David Foster, que tinha
assistido a esse encontro e ao nosso primeiro ensaio, subiu
ao palco e pediu aos meus músicos que viesse comigo gravar
em estúdio uma nova versão de "All By Myself".
Foi no Record Plant, em Los
Angeles. No dia anterior, David informou-me que tinha mudado a
orquestração da última parte da canção. Eu devia cantar um pouco mais alto,
até ao fá, que fica quase no limite do meu registo.
Pior, ele queria que eu segurasse aquela nota por algum
tempo. Honestamente, eu morria de medo. Eu sabia que eu não
podia fazer duas gravações sem me arriscar a quebrar a voz.
David viu o meu medo.
− Se você não conseguir, não tem
problema – disse ele – Voltamos para os arranjos originais.
No dia da gravação, René e eu
brigamos por uma coisa de nada. A gente sempre briga por
coisas insignificantes e depois não nos conseguimos lembrar
porquê. Por vezes eu fico amuada durante algumas horas, por
vezes durante alguns dias. René mais raramente fica assim.
Ele não gosta de ser frio comigo. Ele tenta sempre fazer-me
rir.
Nesse dia ele decidiu ficar
seriamente amuado e decidiu não ir comigo ao estúdio. Eu
parti sozinha, "All By Myself", para o Record Plant, onde
encontrei um David Foster frio, condescendente, quase
metido, que nem perguntou porque René não estava comigo.
Eu percebi que isso era um jogo.
Eu decidi jogar até ao fim. Eu já tinha visto os tons, já
tinha feito as vocalizações e o aquecimento da voz. Enquanto
os técnicos acabavam de mexer na orquestração, eu andava às
voltas pelo estúdio. Eu acho que o David fez de propósito para
atrasar tudo, para me desestabilizar mais ainda. Num
momento, ele veio para perto de mim e, inocentemente, disse-me:
− Eu sei que você está
preocupada mas não se preocupe com esse fá. Se você
não conseguir, tem solução. Eu posso pedir à Whitney para o
fazer.
[301] Whitney
Houston estava gravando nesse dia no estúdio ao lado.
− Eu sei que ela é capaz de
chegar até ao fá e de o segurar o tempo necessário –
disse ele.
Eu não disse uma palavra. Eu
entrei no estúdio, eu cantei "All By Myself" com todas as
minhas forças, com toda a minha alma. Quando chegou o
momento de subir no famoso fá, eu empurrei a minha voz até
ao máximo, até doer, e segurei a nota muito tempo, sem
falhar. Quando voltei a mim, os músicos do outro lado do
vidro estavam levantados para me aplaudir.
Eu saí sem me despedir de David
Foster, sem mesmo perguntar ao técnico se estava tudo bem,
se era preciso gravar de novo. Eu sabia que tinha conseguido
um momento perfeito, um eagle, como se diz no golfe.
A noite estava doce. Eu não estava mais brava, eu deixava-me
levar pela adrenalina e pela euforia. Eu pensava em René. Eu
tentava lembrar-me do motivo da nossa briga. E, do nada, eu
percebi.
Quando eu entrei na limusina
para voltar ao hotel, eu sabia que David estaria no telefone
com ele. E eu imaginava a conversa deles:
"Está feito, René. Foi uma boa
ideia você não ter vindo. Ela estava cheia de raiva. Quando
ela segurou a nota, a voz dela tomou uma textura que eu
nunca tinha escutado. É melhor do que eu poderia ter
esperado. Eu envio-te uma fita."
Quando cheguei no hotel, René esperava-me no hall, sorrindo, emocionado. Um motoboy já tinha
entregado a ele uma fita dessa gravação, que ele tinha tido
tempo de escutar. Eu joguei-me nos braços dele.
Mais uma vez, ele tinha elevado
um pouco mais a fasquia, para me dar novos desafios, para me
forçar a ir mais além.
Eu tornei-me também mais
exigente. Eu não estava satisfeita, por exemplo, com a
primeira gravação que tínhamos feitos, dias mais tarde, de
"Falling Into You". É uma canção cheia de nuances,
meios-tons. Eu achava os arranjos muito violentos e a
minha voz pouco fluida. Mas todo o mundo, os técnicos e os
autores, mesmo René e David, parecia satisfeito. Eu não
disse nada. Mas René viu na minha cara que eu não estava
feliz. Nós estávamos no hotel. Ele estava assistindo ao seu
golfe na televisão, eu pintava as unhas, quando ele me
perguntou o que estava acontecendo.
Eu expliquei. Ele parecia
surpreso. Eu então cantei "Falling Into You", descrevendo
cada arranjo que eu faria. Ele depressa concordou com a
minha opinião. Ele parecia maravilhado, como se ele tivesse
feito uma descoberta.
− Mas você tem razão – dizia
ele. – Você tem toda a razão. Você devia ter dito!
− Eu não me atrevi. Eu achei que
iria ser necessário refazer todos os arranjos e toda a
orquestração.
Ele apertou-me nos seus braços.
Eu empurrei-o, rindo, porque as minhas unhas não estavam
secas.
− Você tem que aprender a se
atrever, meu amor. Você tem que aprender a dizer o que você
acha.
[303] Ele estava orgulhoso de mim
porque eu tinha tomado essa decisão, porque, pela primeira
vez na nossa vida profissional, eu tinha-o feito mudar de
ideias e, também, porque eu tinha tido uma ideia artística
muito boa.
Eu também estava orgulhosa. Eu
mesma liguei para o produtor, para o técnico dos arranjos,
para explicar como eu via a minha canção, o tipo de
mudanças. Eles disseram-me que estavam de acordo e ficaram
contentes.
Então voltámos para o estúdio e
refizemos "Falling Into You". Essa canção nunca foi uma boa
canção de palco, é bastante doce e subtil para envolver uma multidão. Mas é, na
minha opinião, uma das mais comoventes do álbum. E eu adoro
a letra.
Essa canção marcou uma etapa na
minha emancipação. Depois dela eu passaria a ter uma
participação muito mais activa nas decisões artísticas. René
estava sempre no comando e elevava a fasquia mas ele iria escutar-me cada vez mais. David também. E as pessoas da Sony.
Eu estava tornando-me uma artista madura, adulta, autónoma…
Alguns dias mais tarde, voltámos
ao Québec para ensaiar o meu novo concerto. Eu parti logo
depois para a Europa, sem René, que voltou para Los Angeles,
onde, com David Foster, passou semanas a trabalhar no
nosso novo álbum.
A gente falava todos os dias ao
telefone, de amor e de música. Ele fazia-me escutar as
nossas canções novas, mixadas. Ele escutou do começo ao fim
os meus primeiros shows pelo telefone. Ele criticava-me
severamente, proponha-me ou imponha mudanças na ordem das
canções ou nos meus textos entre as canções.
Por toda a Europa, as canções de
D’Eux e de The Colour of My Love disputavam os primeiros
lugares dos tops. As pessoas da Sony decidiram até atrasar o
lançamento de Falling Into You, que eles consideravam o meu
melhor álbum em Inglês.
Foi nesse preciso momento que
entramos na riqueza, como se entra num país onde tudo se
torna possível e acessível. Eu, num sentido, tinha a
impressão de ter sempre morado nesse país. Nunca me faltou
nada. Eu via bem o nosso ritmo e o nosso nível de vida
mudando. Eu viajava sempre em primeira classe e, desde há
vários anos, havia sempre uma limusina à minha disposição,
eu ficava nos hotéis mais luxuosos.
Alguns anos mais cedo, quando eu
li numa revista que era milionária, eu fiquei francamente
surpresa.
− Isso é que é ser milionário?
Não é não!
Na realidade, o dinheiro era
importante para mim na medida em que me permitia dar um bom
concerto ou de fazer uma boa preparação. Isso era o mais
importante. Se fosse preciso, eu teria viajado em classe
económica e vivido em hotéis de segunda classe.
Mas o dinheiro impôs-se. De
certa forma, ele fazia parte da minha profissão. Não podemos
vencer no show-business sem nos tornarmos ricos. Demais? Não
faço ideia. Eu espero apenas nunca perder o sentido dos meus
valores.
Um dia, uma jornalista perguntou-me que tipo de vestido eu gostava. Eu respondi
espontaneamente:
− Os caros!
Era uma brincadeira, claro. Mas
havia um fundo de verdade na minha resposta. Muito depressa
eu comecei a gostar das coisas bonitas… que são, geralmente,
caras. Eu tive vontade de fazer loucuras. Queria construir a
casa dos meus sonhos, uma casa que se pareceria com René e
eu. Eu daria o nome de Casa da Felicidade.
A ideia não agradou nada a René.
Ele estava perfeitamente feliz na nossa casa de Palm Beach.
Ele preferia que eu me convertesse ao golfe ao invés de me
lançar num projecto que iria ocupar todo o pouco tempo livre
que eu tinha.
− Porque mudar de casa? Estamos
bem aqui.
Mas eu já me tinha envolvido.
Desde que essa ideia nasceu, não parou de crescer e, no fim,
ocupou muito lugar, mais do que eu teria imaginado.
Durante a tour europeia que eu
comecei no sul de França e que me levaria para uma dezena de
países, eu comecei a cortar imagens de revistas de
arquitectura e a olhar à minha volta, nos palácios e nos
hotéis, onde eu ficava. Eu observava tudo: as mobílias, as
portas, as molduras, as toalhas, os talheres, as janelas… Eu
juntava as coisas que, na minha opinião, René gostaria.
[305] Eu
conhecia os gostos dele, os lugares que ele gosta com o Ceasar’s Palace, em Las Vegas. Eu queria que ele encontrasse
esse clima na nossa casa nova.
Eu juntava as minhas descobertas
numa pasta com separadores: torneiras, telhas, pavimentação,
tapeçarias, fechaduras, cobertas de cama, lustres. Era a
beleza que eu carregava comigo para todo o lugar. Isso dava-me um novo sentido e um
objectivo à minha vida, à minha
profissão, ao meu amor…
Eu estava feliz e em forma. Eu
amava a minha nova paixão devoradora. Eu amava o meu
concerto, tão bem estruturado. A minha voz nunca tinha
estado tão flexível e sólida. Entre os músicos e eu só havia
felicidade e amizade. E em breve René viria para perto de
mim, Paris, onde preparávamos uma gravação do meu concerto
no Zenith, uma sala que eu adorava.
Mas, na primeira noite no
Zenith, sem nenhum sinal, sem nenhuma dor, a minha voz cedeu
e caiu completamente. Foi o vazio total. Eu chorei. Toda a
equipe estava em risco por minha causa. A menor falha dois
dias depois e tudo estaria perdido.
Quando eu perdi a voz, anos
antes, eu sabia que era culpa da inexperiência e de técnicas
vocais desadequadas. Eu tinha treinado as minhas cordas
vocais como um atleta treina os músculos, muito seriamente e
muito regularmente. Mesmo quando eu fazia silêncio um dia ou
dois, eu pensava nelas, eu cuidava delas, eu acariciava-as.
Eu via regularmente especialistas e treinadores. Eu segui à
letra os conselhos deles.
Eu cheguei à conclusão que isso
não era suficiente. Os factores exteriores podiam ser a
causa. Não chovia há semanas em Paris. O ar estava seco e a
menor ventania levantava nuvens de poeira na rua… Nada pior
para as cordas vocais. Eu devia ter sabido. De facto, eu
sabia. Eu não tinha nada que ter saído para ir em todas as
boutiques da cidade. Isso magoava-me. Era tudo culpa minha,
minha grande culpa. Eu não tinha sido prudente, nem
paciente. E agora estava sendo castigada.
Ninguém entrou em pânico. Tudo
deu certo, por milagre, porque Deus me ama, porque as minhas
cordas vocais estavam em boa forma. A minha voz rapidamente
melhorou. Eu rezei, eu agradeci. E eu jurei que isso nunca
mais iria acontecer.
Mas eu iria viver mais do que
nunca como uma reclusa, longe do mundo, muitas vezes muito
sozinha. Eu não tinha medo, eu tinha o meu amor, eu tinha o
meu projecto para a casa nova, eu tinha a minha música…
No começo do verão de 1997, eu
fiz a minha primeira tour nos grandes estádios da Europa,
oito concertos em sete cidades: Dublin, duas vezes em
Londres, Amesterdão, Copenhaga, Bruxelas, Berlim e Zurique.
Era a última parte da tour "Falling Into You", que tinha
começado no início de 1996.
Essa tour devia, no começo,
durar apenas 6 meses. Mas muitas vezes a remarcamos e
alongamos, para terminar em Zurique, mais de um ano e meio depois da estreia que tinha tido
lugar no outro lado do mundo, em Sydney, ou em Perth, eu
acho.
Essa longa tour, cheia do começo
até ao final de imprevistos e surpresas, ficará para sempre
entre as minhas melhores recordações. Nós vivemos altos e
baixos, nós vivemos verdadeiros dramas mas também momentos
inesquecíveis, extraordinário.
[307] Nós aprendemos e crescemos
muito.
Para mim, essa tour foi
igualmente a história de uma cura. Eu fiz algumas
descobertas importantes que iriam mudar a minha vida, o meu
ritmo.
No começo, na Austrália, no
leste dos Estados Unidos e no oeste do Canadá, eu cantava em
arenas com 15 a 20 mil pessoas. Depois nos palcos abertos,
por todo o sul, centro-oeste e oeste dos Estados Unidos,
onde cabem de 20 a 40 mil pessoas, por vezes mais.
Finalmente veio a proposta de fazer os estádios da Europa,
de 40 a 60 mil pessoas em cada. Era cada vez maior. A equipe
que me acompanhava no começo era de quarenta pessoas
(músicos, técnicos, catering, publicistas) e, para a grande
final europeia de 1997, já eram perto de 100.
Ao longo do caminho, tivemos que
adaptar o palco, o som, as iluminações, todos os aparelhos
técnicos. E o show foi adaptado também, a certo ponto. Ao
mesmo tempo, eu tinha que fazer trabalhos extra, como a
canção tema dos Jogos Olímpicos de Atlanta, participações nos
Óscares, Grammys, Victoires, ADISQ, World Music Awards. E tinha
que começar a preparar a gravação de um novo álbum, gravar 3
ou 4 videoclipes, participar em programas especiais, fazer
promoção em todo o lugar, dar dezenas de entrevistas,
concertos privados também, em Las Vegas, Atlantic City,
diante do Sultão do Brunei ou em
Montreal, todos os anos, um pouco antes do Natal, para
angariar fundos para a Fibrose Cística, etc.
Até aos jogos de Atlanta, tudo
estava maravilhosamente bem. Nesse dia, estávamos muito
nervosos. Como sempre, eu decidi ignorar, de negar o meu
medo, de esconder o medo de todo o mundo, mesmo de mim,
especialmente de mim. Se eu tivesse deixado transparecer,
esse medo teria-me esmagado.
Eu escutava René dizendo aos
seus amigos ao telefone que eu estava em plena forma, que
nada me assustava. É mentira. Eu tinha medo, medo terrível.
Subir num palco num estádio gigantesco, diante de todas as
câmaras de televisão do mundo, é sempre assustador. É como
saltar para o vazio. E quanto mais gente e mais câmaras,
maior é o vazio e maior é o medo.
O estádio estava cheio até
arrebentar, 85 mil pessoas, mesmo durante os ensaios e
testes de som. Ao telefone, maman disse que não tinha
desejado vir porque tinha sentido muito medo, ela preferia
ver-me na televisão. Isso contribuiu para aumentar o medo e
a pressão.
Há muita música em Atlanta e
vozes magníficas. O coro que me acompanhava era um dos
melhores que já escutei. É a terra do gospel, de Martin
Luther King e do famoso "I have a Dream" [Eu tenho um
sonho].
[309] Não era por acaso que a canção que David Foster
tinha escrito para a ocasião falava desse tema do sonho,
"The Power of the Dream".
Quando eu a interpretei, no
começo da noite, ao longo da cerimónia de abertura, eu
estava, e tinha consciência, do público mais vasto alguma
vez reunido. Falávamos de quatro bilhões de pessoas pelo
mundo inteiro, mais de metade da humanidade.
Quando comecei a cantar, o meu
medo desapareceu. Eu senti-me muito bem, muito leve. Durante
muitos dias, eu vivi na euforia dessa experiência formidável
mas eu sentia também um grande cansaço e, por momentos, eu
ficava sem respiração. Eu estava dolorida, como um jogador
de boxe, mesmo um vencedor, depois de um longo combate.
Duas ou três semanas mais tarde,
e tive os primeiros sintomas de um mal que iria ocupar o meu
corpo e a minha alma durante vários meses. Eu achei que isso
fosse passar dentro de alguns dias. Eu não falei disso a
ninguém. Mas em Las Vegas, uma noite, eu comecei a preocupar-me.
Eu cantava "Quand On N’A Que
L’Amour" diante do público do Ceasar’s Palace. Uma equipa da Rádio-Canadá veio de Montreal para gravar essa canção que
seria inserida no dia seguinte num grande programa
apresentado no Centre Molson para angariar fundos para os
sinistrados de Sanguenay. Algumas semanas antes, durante a
cerimónia de abertura dos jogos de Atlanta, enquanto eu
cantava "The Power of the Dream", essa região do Québec
tinha sido inundada. Os rios e os lagos tinha transbordado,
as barragens tinham cedido, as pontes, as estradas, as ilhas e
as casas tinha sido levadas pela água. Québec e o Canadá tinham-se mobilizado para ajudar as vítimas.
Eu tinha preparado um pequeno
texto de compaixão e encorajamento que eu queria oferecer
depois da minha canção. Mas, enquanto cantava, eu senti um
enorme peso, como uma mão de ferro apertando o meu coração.
A minha voz começou a tremer. Eu consegui terminar a minha
canção mas tive que encurtar o meu discurso, com medo de me
desfazer em lágrimas ou de começar a soluçar.
Eu estava comovida, é claro,
como fico sempre quando falo de tão longe das pessoas da
minha província. Mas eu estava cansada e percebia, com
terror, que esse mal que eu sentia há algum tempo durante a
noite, agora vinha-me incomodar até no palco, debaixo das
luzes. Eu disse a mim mesma que isso iria acontecer por
muito tempo.
Em Denver, na semana seguinte,
foi pior do que em Las Vegas. De pé eu estava constantemente
atordoada. Eu não conseguia engolir o que quer que fosse. Eu
nem ia mais na cozinha, o menor cheiro de comida enjoava-me.
Quando eu me deitava, eu ficava com refluxo gástrico e
náuseas. Se eu conseguia dormir, eu tinha pesadelos
horríveis. Eu sou do tipo de pessoas que tem sonhos
recorrentes, eu vejo a mesma sequência várias vezes.
Quase todas as noites eu sonhava
que tinha engolido uma maçã que ficava presa na minha
garganta. Uma grande maçã dura e fria que não me deixava
engolir nem respirar. Eu acordava aterrorizada. Ficava
horas sem dormir, com a sensação da maçã na garganta. Eu
nunca me tinha sentido tão vulnerável e impotente. Eu sentia
sempre esse peso, essa pressão, como uma tristeza dentro de
mim.
[311] Eu não engolia mais do que biscoitos de água e sal. Eu
dizia a mim mesma que, em breve, eu não teria mais energia
para dar um bom concerto.
Uma manhã, em S. Francisco, as
coisas pioraram bruscamente. Suzanne e Manon ligaram para
René, que estava numa clínica no Arizona, onde tentava curar
os seus maus hábitos alimentares. Ele cancelou três ou
quatro shows que eu devia fazer nos próximos dias na costa
Oeste americana. E eu fui hospitalizada.
Os três médicos que me viram
descobriram logo a origem do meu mal: excesso de stress, sem
sombra de dúvida. Eles informaram-me que os medicamentos que
me dariam não fariam efeito sem que eu repousasse.
O que faz uma menina quando ela
se sente esgotada e precisa de repousar? Ela chama a sua
maman.
− Maman, maman, o seu bebé
precisa de você.
A minha mãe veio encontrar-me na
Florida. Não estava nada preocupada, estava determinada.
Durante quase um mês ela cuidou de mim como uma loba. Eu
soube mais tarde que ela foi intratável. Ninguém me podia incomodar quando eu descansava, entre 12 a 15 horas por dia.
Mesmo René não tinha o direito de me falar de trabalho
durante esse tempo. Nem uma palavra sobre a tour
interrompida, sobre os projectos adiados, sobre a promoção, o
álbum em francês e em inglês em preparação…
Maman deitava-me na cama de
noite, levava-me para passear depois da minha sesta da
tarde, ela preparava-me sopas, tisanas, saladas de fruta…
Ficámos sozinhas durante horas,
dias. Mesmo papá saía com os amigos para nos deixar
sozinhas. Ela falava-me da sua infância, da qual eu conhecia
pouco. E depois da minha, que ela me tinha contado pelo
menos cem vezes mas eu adorava escutar. Todos os filhos dela
são assim, eu acho.
Eu não sou do tipo de pessoa que
se agarra a velhas recordações mas eu sempre tive vontade de
escutar a história do meu nascimento e a minha infância. Eu
gosto quando a minha mãe me conta vezes sem conta a briga
que ela teve com o meu pai quando soube que estava grávida
de mim. E como ela derreteu quando a enfermeira me colocou
nos braços dela.
A minha mãe teve uma vida bem
diferente da minha. Ela nasceu a 20 de Março de 1927, numa
pequena vila de pescadores situada do norte de Gaspésie. O
seu pai era sacristão e corista na igreja. Ele tinha obtido
do governo uma terra de colonização, longe, a uma grande
distância do mar. Com os seus filhos, ele abriu o
caminho, construiu uma casa de madeira, um estábulo e um
porto. Durante os primeiros nevões ele voltou para pegar a
família.
Numa carroça puxada a cavalo,
eles instalaram pacotes com roupas, de cortinas, de cobertas
e de lençóis, algumas mobílias, barris com peixe seco,
toucinho salgado, melaço, farinha e chá, seis galinhas numa
gaiola, uma vaca seguia.
[313] A minha mãe tinha 5 anos, foi
sentada em cima das peles com as suas irmãs: Jeanne, Annette
e Jacqueline. Ela ficou maravilhada.
− Eu tinha 5 anos, foi a viagem
mais linda da minha vida.
Escutá-la falando da sua
infância, da floresta e do céu de Gaspésie, da vida tão
calma que eles viviam lá, da música que o seu pai fazia, os
seus irmãos também, do seu primeiro violino, tudo isso me
relaxava, me fazia esquecer o meu mal. Ela teve uma infância
e uma juventude felizes, prova de que o conforto material e
a riqueza não criam a felicidade, ela vem do fundo de nós…
No final de Setembro, quando eu
parti para a Europa, eu estava bem melhor. Eu ainda sentia
aquela tristeza lá dentro mas estava mais forte. Eu comia
com apetite. O mal, pouco a pouco, afastava-se de mim, não
vinha mais me incomodar quando eu cantava. Cada vez que eu
estava no palco ou num estúdio de televisão, eu sentia-me
perfeitamente bem. Nada de tristeza nem peso no coração.
Quando eu saía do palco, eu via que ele me esperava. Mas não
era mais forte, era apenas um pequeno aperto que me fazia
cócegas timidamente. Eu conseguia-o esquecer por longos
momentos.
Eu comunicava com a minha mãe
todos os dias, depois eu passava ela a Manon, Suzanne e
René. Sobre as suas ordens, eles mimavam-me, preparavam-me chás e sopas e
saladas de legumes e frutas e forçavam-me a repousar mais do
que eu precisava.
Até que, um dia, a bordo do
avião que nos levava através do céu da Europa, eu voltei-me
de repente para Manon e Suzanne, muito empolgada, e
assinalei (porque estava num dos meus dias de silêncio) que
o peso tinha ido embora de vez. Fazia já algum tempo, alguns
dias, quem sabe uma semana, que eu não pensava mais nisso,
que eu tinha esquecido completamente. Eu estava dormindo
bem, eu estava comendo bem e estava cantando bem.
Eu estava aliviada. Eu tinha
esquecido o meu mal e ele tinha ido embora. Eu pensava no
que o meu pai dizia, quando eu era criança e mostrava um
dói-dói que eu tinha:
− Não penses mais, minha querida,
e não vai doer mais.
Eu já era grande o suficiente
para saber que as coisas não acontecem assim. Esquecemos a
nossa dor quando ela se faz esquecer, não antes. Quando está
dentro de nós, pensamos nela sem parar, querendo ou não.
Quando não pensamos mais é porque acabou.
Alguns dias mais tarde, em
Estocolmo, eu fiz um teste. Eu, que nunca bebo álcool, fiz
uma festa com os músicos. Comi comida pesada e temperada e
depois fomos num bar onde bebi tequila, muita tequila... sem
sentir nada de mal. Nem mesmo no dia seguinte de manhã. Eu
estava curada e feliz.
A tour continuou num ritmo
infernal, voltámos para a América, depois a Ásia no inverno…
e, para acabar, de novo na Europa, essa inesquecível tour
dos estádios, foi mágico.
Fomos em Junho. Fazia frio e
chovia tanto que se podia beber quase todos os dias, de um
lado ao outro do continente. Mas, onde quer que fossemos,
duas horas antes do show, a chuva parava e o sol vinha secar
e aquecer os assentos. Sistematicamente. Por causa disso, e
por todo o tipo de motivos, nós estávamos todos num estado
eufórico.
[315] Preso
no Québec ou nos Estados Unidos por causa de negócios, René
não nos acompanhou à
Austrália, nem ao Japão, nem à Coreia, nem ao Brunei. Mas,
pela tour dos estádios da Europa, ele juntou-se a nós. Eu
acho que nunca nos tínhamos sentido tão felizes. Eu não falo
apenas de nós dois mas também de todas as pessoas à nossa
volta, os músicos, os técnicos, a centena de pessoas da
nossa tribo nómada. A atmosfera era genial.
Nós sabíamos que essa tour
estava chegando ao fim, que em breve voltaríamos para casa,
rever os rostos e as paisagens familiares. Apesar da chuva e
do frio, essa longa viagem terminou em beleza. Os estádios
estavam cheios de lindas multidões, calorosas e felizes
também. Por todo o lugar era uma festa.
René disse a um jornalista
francês que nos encontrou em Amesterdão que o nosso sonho,
pela primeira vez, estava-nos escapando. Era mais rápido do
que nós, mais louco do que nós, mais maravilhoso do que
tínhamos imaginado. Não precisávamos mais forçá-lo, agora
nós éramos levados por ele.
René não tinha previsto essa
tour dos estádios, nem nos seus cenários mais ousados. Eu
muito menos, evidentemente. Tinham sido jovens produtores
(Belgas ou Holandeses) que tinham insistido junto de René
para que ele aumentasse essa tour. Segundo ele, isso marcava
uma mudança na nossa vida, na minha carreira. Tínhamos
chegado ao outro lado do sonho…
Nessa primavera a nossa vida
mudou, deu a volta… E tudo aconteceu tão depressa que mal
tínhamos tempo de perceber o que estava acontecendo.
Há pouco tempo eu via Madonna,
Whitney Houston ou Tina Turner em tour por estádios por todo
o mundo. Eu invejava-as por estarem lá no topo. E agora eu
estava lá também, nesse clube muito restrito que a media
chama "divas da pop". Eu viajava num avião privado. Eu vivia
nos palácios mais magníficos. Estávamos no topo.
− O que vamos fazer agora? Para
onde vamos?
Eu não fazia a menor ideia. Eu
apenas sentia que teríamos que parar um dia para completar o
ciclo, para olhar para o caminho percorrido, para levar para
a frente a ideia da casa dos meus sonhos. Esperando, eu deixava-me embriagar pela velocidade, pelas grandes multidões…
Fora as compras, eu tinha poucos
divertimentos quando estava em tour. Nos meus dias de
silêncio eu podia passar horas vendo revistas de moda. Eu
cortava várias imagens e mandava por fax para a Annie Horth,
a minha estilista. Ela inspirava-se para me criar roupas de
palco.
Para mim, a moda tornou-se,
pouco a pouco, num mundo quase tão vasto e apaixonante como
a música. Cada um de nós, todos os dias canta o seu "refrão
da roupa". Uns cantam mal, outros cantam bem. Mas todos,
querendo ou não, banham-se na moda, todos somos marcados por
ela.
Desde há quatro ou cinco anos
que Annie Horth tem sido a minha colega e cúmplice. Ela vê
todos os desfiles, todas as colecções, ela conhece todo o
mundo, ela entra nas boutiques de todos os costureiros da
Europa e da América, ela sabe sempre o que vamos vestir
amanhã e depois de amanhã, ela sabe o que eu gosto e o que
me fica bem.
De vez em quando ela aparecia.
Ela chegava a Amesterdão, a Los Angeles, a Chicago com um
monte de roupas que ela tinha escolhido das últimas
colecções
de grandes costureiros. Passávamos horas e horas, ela e eu,
vendo tudo, experimentando, comentando.
Eu amava de verdade a vida de
tour, mesmo se, em alguns dias, não aguentamos mais e tudo o
que queremos é ir para casa pelo caminho mais curto. Em cada
tour há sempre altos e baixos, surpresas… Mas sempre se cria
um espírito, um clima extraordinário. Por vezes, algum tempo
depois de voltarmos a casa, a gente sente saudade da vida de
nómadas, desse clima que, especialmente no final, reinava
entre a gente.
René sempre sabe fazer a festa.
Eu também, é de família. E eu sou muito mais doida do que
ele. Eu amo fazer palhaçadas, mesmo quando estamos os dois
sozinhos, pelo simples prazer de fazer ele rir. Se alguém da
minha família está presente, Michel, Dada, Ghislaine, Manon
ou Claudette, a gente pode improvisar durante horas
teatrinhos completamente absurdos. René não participa mas
ele é um óptimo público.
Antes de um concerto importante,
quando todo o mundo morria de medo, Manon e eu cavamos
sempre um jeito de desencadear torrentes de risada. Em
Atlanta, por exemplo, alguns minutos antes de entrar no
palco para cantar "The Power of the Dream", diante de
bilhões de pessoas, ela começou a falar do concerto que eu
tinha feito, dez anos antes, no Vieux-Port do Québec, quando
milhares de besouros me entravam na boca e no nariz e
entravam debaixo da minha saia. Num dia normal, teríamos sem
dúvida achado isso engraçado. Mas todo o mundo estava tão
tenso no camarim e nos bastidores… bastava imaginar-me
mordendo asas de besouros ou contorcendo-me porque eles me
faziam cócegas nas coxas, fez com que umas risadas loucas
tomassem conta de mim e de Manon, até que nos vieram dizer:
"Madame Dion, dois minutos".
[317] Cada dia, não importa onde
estamos, precisamos da nossa dose de risadas. E, em tour,
René prepara momentos em que estamos todos juntos. Ele
achava que a camaradagem é necessária e agradável, é o
coração da vida, é para reforçar os laços entre todos nós.
Na véspera dos dias em que eu
não cantava, ele organizava verdadeiros banquetes, fosse num
hotel da cidade, fosse na nossa suite ou em outro lugar, num
chalé nas montanhas, perto de Zurique, uma cabana que ele
alugava para quinze pessoas que constituíam o que
chamávamos, a nossa tribo. E passávamos a noite no Sena, no
porto de Amesterdão ou na baía de Hong Kong.
Estavam sempre presente Suzanne,
a minha directora da tour, a minha irmã Manon, minha
confidente e cabeleireira, Éric, meu guarda-costas, os
quatro ou cinco braços direitos de René, responsáveis pela
organização da tour, os publicistas, por vezes pessoas da
Sony, a nossa editora, pessoas da produção local…
Várias vezes, especialmente
durante as duas últimas tours, amigos do Québec vinham
passar alguns dias com a gente. Alguns deles, claro, eram os
parceiros de golfe de René: Marc, Paul, Rosaire, Guy… Por
vezes, especialmente em Paris, em Nova Iorque, na Florida,
em Las Vegas, os meus pais vinham… E a Anne-Marie também, a
filha querida de René. Por vezes Jean-Pierre também se
juntava a nós por alguns dias. Ele encontrava o seu pai, a
sua irmã e o seu irmão mais velho, Patrick, que trabalhava
com a gente como assistente de produção. Nós formávamos uma
tribo feliz e René, como bom chefe, ocupava-se de nos
divertir e de nos alimentar.
Durante o dia, ele pedia os
menus dos bons restaurantes da cidade onde estávamos:
chineses, indonésios, japoneses, italianos, franceses,
libaneses, marroquinos, tailandeses. Ele
lia todos, com muita atenção, como quem lê romances ou
poemas.
Para René, uma refeição é um
espectáculo, uma cerimónia. É um jeito de reunir todo o
mundo no mesmo comprimento de onda e de criar laços.
Ele ama comer. Tudo. E demais.
Ao ponto de às vezes isso se tornar perigoso para a sua
saúde. É mais ou menos como o jogo. Quando ele começa ele
não sabe parar, mesmo sabendo que, quando ele acabar de
jogar ou de comer, ele vai ter remorsos e preocupação e
mesmo doenças.
Depois do seu ataque cardíaco,
em Los Angeles, eu fiquei habituada a vigiá-lo. Isso tornou-se um jogo entre nós dois.
[319] Ele é o rato e eu sou o gato.
Eu vejo-o inventar todo o tipo de truque para escapar à
minha vigilância. E eu vejo-o também procurando a companhia
de outros grandes gulosos.
Não é surpresa que ele depressa
se tornou amigo de Luciano Pavarotti. Alguns dias depois da
gravação do dueto "I Hate You Then I Love You", Luciano convidou-nos a jantar no seu apartamento de Nova Iorque. Ele
mesmo tinha preparado os antipasti, as massas, a carne…
Entre René e ele, foi um verdadeiro torneio. Eles falaram
durante horas. Pavarotti viaja com o seu azeite, com os seus
queijos, com o seu vinho, etc. Em Nova Iorque, em Modena ou
em Roma, ele mesmo faz as suas compras, escolhe as suas
carnes, as suas frutas. René ficou maravilhado.
Eu tenho a certeza que ele ainda
se lembra, dois anos depois, de tudo o que ele comeu naquela
noite. Ele tem uma memória fenomenal para essas coisas. Eu
lembro-me da surpresa de Pavarotti quando René lhe disse
que, depois de um copo ou dois de vinho, ele prefere
Coca-Cola Light. René não gosta de vinho, nem de cerveja,
nem de álcool algum.
O seu médico recomendou que ele
bebesse um copo de vinho tinto de vez em quando. Ele faz
isso, mais à tarde do que de noite, ele engole o seu copo
como se fosse um medicamento. Depois disso, mesmo que a
gente esteja num restaurante Chinês ou num bistrô Francês ou
num deli de Nova Iorque, ele pede sempre uma Coca-Cola Light
ou duas, com muito gelo.
De vez em quando ele vai passar
uns dias numa clínica para pessoas que comem muito… Muitas
vezes ele vai acompanhado por um amigo, Marc Verrault ou
Pierre Lacroix, ou o seu primo Paul Sara. E, durante uma
semana, eles se encorajam uns aos outros.
Ele conta-me pelo telefone que
acordou às 6 da manhã, que foi caminhar no deserto com Marc, que eles comeram fruta
ao almoço e peixe ao jantar
(250 gramas) e uma dúzia de feijões verdes, nada de
Coca-Cola Light, nada de manteiga… Durante a tarde eles
assistem a conferências sobre a nutrição. Gurus da motivação
tentam incutir neles boas ideias.
René adora essas conferências.
No ano anterior, num Spa de Arizona, ele ficou fascinado
pelas teorias de um psicólogo especialista em nutrição, que
dizia: "É você que decide. Ou é o seu corpo." René ficou
seduzido por essa ideia.
Ele seguiu o seu regime
religiosamente durante algum tempo. Depois ele esqueceu e
voltou a comer. Contrariamente a mim, ele não é muito
disciplinado nem perseverante nesse tipo de coisas. Quando
os seus amigos lhe lembraram da fórmula do psicólogo, René
respondeu, rindo, que era ele quem estava decidindo.
− Eu tenho que aprender a
delegar. Eu decidi deixar o meu corpo tomar conta dessa
parte. Eu tenho outras coisas para me ocupar.
Depois de um momento de
reflexão, ele dizia:
− No fundo, eu não estou muito
orgulhoso da minha decisão.
Todo o mundo ria. Eu era a
primeira. Mas eu também não estava orgulhosa. Eu tenho uma
atitude muito especial com o meu marido quando o assunto é a
gula dele. Ele é um pouco gordinho mas é lindo. A barriga fica
bem nele. Eu apenas acho que ele come demais. Mas, ao mesmo
tempo, o prazer que ele tem ao comer deixa-me comovida.
Mesmo sabendo que é para o bem dele, é penoso para mim
privar o homem que eu amo desse prazer, do mesmo jeito que
não gosto de o arrancar das mesas de jogo.
Pessoalmente, eu não faço
excessos na mesa. Não é difícil para mim, eu não tenho
prazer nenhum em comer quando não tenho mais fome.
Várias vezes escreveram que eu
tinha anorexia e que eu me alimentava de folhas mortas, de
tofu, de sementes e pevides. Isso irritou-me muito. Eu
preferia não ter lido isso na media: mulher
maníaco-depressiva e psicótica.
Eu nunca entendo a necessidade
de inventar essas histórias. Para quê atribuir às
celebridades do show-business, do desporto e da política,
características que elas não têm? Para quê dizer que elas
viveram coisas que elas não viveram nem têm a menor vontade
de viver? Eu acho que a realidade e a vida de seja quem for
é mais interessante do que esses rumores infundados e dessas
mentiras evidentes e hipóteses cada uma mais bizarra do que
a outra.
Eu não penso, nem por uma
fracção
de segundo, que a anorexia seja uma doença vergonhosa. Mas
eu detesto ser rodeada de rumores e mentiras, não ser
percebida como eu sou. Mesmo não sendo uma rainha de beleza,
eu sempre tive orgulho do meu corpo.
O meu corpo é flexível,
musculoso, sólido e tem boa saúde. Eu sei do que estou
falando, vivo dentro dele há 32 anos. Eu não me acho magra.
Eu sinto-me bem nesse corpo. Eu acho
que a disciplina existe por um motivo. A disciplina cria
conforto, bem estar, dá boa forma e boa saúde.
Um trabalho como o meu exige boa
forma física. Eu não poderia fazer 100 concertos por ano e
viajar pelo mundo inteiro se tivesse comido demais ou pouco
ou se, como alguns falavam, me fizesse vomitar depois das
repetições. Eu cheguei a comer por dois, especialmente
no final da tour "Falling Into You". No começo eu sentia-me
frágil mas acabei sólida e em excelente forma.
[321] A nossa tour foi além das nossas
esperanças. Tínhamos falado seriamente de parar um ano, uma
grande pausa que René e eu faríamos, na nossa casa,
tranquilos. O meu projecto da casa nova apaixonava-me mais a
cada dia. Eu pensava nisso sem parar.
Eu sabia de cor todos os
projectos que tinha dado aos meus arquitectos. Eu mandava
regularmente pastas cheias de recortes de revistas de
arquitectura a Johanne Dastous, a mulher de Paul Sara, a
minha conselheira na decoração. Ela tinha passado uma parte
do inverno vendo essas imagens, lendo os comentários que eu
tinha escrito:
"Eu adoro essa poltrona mas não
gosto das cabeças de leão no encosto" ou "Eu acho que a luz
dessa sala é boa mas não gosto das cortinas" ou "Eu gostaria
de ter estátuas iguais a essas no meu jardim mas sem a cara
idiota que essas têm."
Pouco a pouco, como o meu
vestido de noiva, a imagem da decoração da minha casa tornava-se precisa. De vez em quando, Johanne reunia na minha
casa um monte de objectos que ela encontrava em antiquários e
passávamos horas vendo e tocando. Eu aprendi o nome dos
estilos, a distinguir o verdadeiro do
falso, o belo do banal. Era como voltar à escola. Eu adorei
isso.
Através desse trabalho, eu
aprendi um pouco mais sobre mim e desenvolvi o meu gosto,
exprimi o meu gosto. Eu gosto de decorações românticas, o
rococó, o estilo Louis XV. Eu preciso de um clima suave,
cores quentes e mobílias antigas. Eu acho que temos que
respeitar os nossos gostos, senão escolhemos os dos outros e
nunca nos sentimos em casa. Eu quero casas que se pareçam
comigo.
Eu perguntava várias vezes a
Johanne o que ela achava das minhas escolhas. Ela respondia-me lembrando-me que eu gosto de sobremesas muito
açucaradas. Eu percebo o que ela quer dizer. Eu gosto de
decorações carregadas, muito pesadas, envolventes, macias.
− No fundo, você gosta de um
casulo – dizia-me ela. – Você não é muito moderna.
Um dia chegarei ao moderno. Mas
não dentro da casa onde vou viver. Se eu tivesse um
apartamento em Nova Iorque, por exemplo, onde eu vivo para
trabalhar em estúdio ou para gravar videoclipes ou para
fazer compras, eu iria bem longe na modernidade. Mas para a
vida de todos os dias, é um universo que me parece frio e
desconfortável. Pode ser bonito mas não é caloroso ao meu
gosto.
Eu não gosto que os objectos
funcionais, que geralmente encontramos nas casas modernas,
estejam à vista. Na minha casa, as televisões estão sempre
escondidas atrás dos armários, atrás de quadros ou de telas.
Eu sei que uma cozinha é quase como uma fábrica. Mas eu não
quero panelas ou utensílios pendurados por todo o lugar. Nem
gosto de geladeiras com portas transparentes que deixam ver
o que tem dentro.
O meu projecto de casa nova que
eu adorava tanto parecia irritar René. Ele gostava muito da
nossa casa de Palm Beach e, eu acho, ele ficaria feliz lá
até ao fim dos nossos dias. E mais, ele tinha comprado no
outono anterior, um imenso terreno de golfe, Le Mirage, em
Basses-Laurentides, a uma meia hora do centro da cidade de
Montreal. Ele já tinha mandado começar os trabalhos de
renovação. Ele falava em construir lá uma casa para passarmos
a nossa velhice. Mas, contrariamente a mim, ele não se
implica de verdade nesses projectos.
Ele não compreendia essa mania
que eu tinha, desde há um ano, de quebrar a cabeça com
projectos que eu poderia confiar a outros. Era exactamente
como o meu vestido de noiva. Eu procurava a minha casa nas
revistas, nas boutiques, nos antiquários, nos hotéis, nas
casas dos nossos amigos quando os visitávamos.
Eu perguntava de onde tinha
vindo esse ou aquele enfeite, quem tinha pintado as paredes,
etc. Muitas vezes as pessoas não sabiam responder. Essas
pessoas viviam em decorações que já tinham sido compradas
prontas, que tinham custado fortunas mas que não tinha nada
a ver com eles. Eu não queria nada disso. Eu estava
totalmente presa no meu projecto que me dava muito prazer.
Apesar da falta de interesse de
René, compramos um grande terreno em Jupiter, no norte de
Palm Beach, ao longo de um canal que dá para o mar.
[323] Não
havia nada lá, apenas ervas e mato. De cada lado tinha um
palácio, com um porto atrás, com um iate de vinte metros lá
preso…
Johanne formou uma equipa de
arquitectos e artistas, que fizeram planos a partir de todos
os documentos que eu tinha juntado. No começo do verão,
quando voltámos a Montreal, eu compreendi que o meu trabalho
estava terminado. O trabalho de Johanne
e dos seus arquitectos tinha começado. Eu apenas tinha que
esperar. E por isso fui ter aulas de golfe.
Quando acabamos a tour, eu
comecei a jogar golfe intensivamente, quase excessivamente.
Todos os dias, com bom tempo ou com mau tempo.
René considerava isso uma
vitória pessoal. Há anos que ele tentava converter-me a esse
desporto, uma verdadeira religião para ele.
− O golfe foi feito para você.
Você tem tudo o que é preciso. Você é alta e flexível, você
tem um excelente poder de concentração, muita disciplina. E
mais, é um desporto bom. Você passa o tempo em jardins bem
cuidados, tem sol, água e tudo o que você ama.
Eu vivi perto dele, eu fui
formada por ele. Por isso eu fui marcada pelo espírito do
golfe muito antes de segurar um taco na mão. Eu entrei nesse
universo como se eu voltasse para casa depois de uma longa
ausência. Eu não sabia até que ponto esse desporto iria tornar-se numa grande paixão e mudar a minha vida.
O golfe é mais do que um
desporto, é uma forma de vida, uma disciplina que exige muita
determinação e rigor. É uma busca constante pela perfeição,
pelo equilíbrio, uma reflexão sobre a felicidade. Antes de
mais, é aprender sobre nós mesmos. Como o canto, a música,
como qualquer arte, qualquer profissão que façamos com
seriedade e paixão.
No golfe existe uma ordem e um
ritual muito forte, um conjunto de regras que cada um deve
respeitar… eu não conhecia muito bem as religiões mas eu
diria que o golfe se aproxima do zen. É tipo uma meditação,
uma concentração. É a busca pela beleza, a beleza dos
lugares mas também a beleza e a harmonia dos nossos
movimentos e dos nossos estados de alma.
Cada um deve aprender a
controlar, a dominar as suas emoções, gestos, força. É esse
o jogo. Temos que lidar com o vento, com os acidentes do
terreno, com o sol… mas também, e acima de tudo, com os
nossos humores, as nossas preocupações, os seus entusiasmos
de alegria, fazer com tudo isso alguma coisa harmoniosa.
Cada partida de golfe é uma viagem no espaço e no interior
de nós.
Bater numa bolinha branca é como
lançar uma nota no grande espaço de um estádio. É preciso
ter imensa concentração, temos que estar bem preparados,
temos que visualizar, marcar bem o alvo…
O golfe mudou-me. Eu durante
muito tempo detestei as manhãs. Ou então elas tinham que ser
muito calmas e silenciosas.
Eu ainda não sou do tipo de
pessoa de amar as manhãs. Eu não tenho vontade de rir ou de
falar, nem de ouvir outros falando como
máquinas. Mas estou acordando muito mais cedo. Eu começo a
gostar das manhãs, a alvorada, o canto dos pássaros e o
cheiro da grama molhada.
No outono, foi uma maníaca do
golfe que partiu para Nova Iorque e para Los Angeles gravar
as canções de Let’s Talk About Love. René tinha planificado
a agenda das minhas gravações para que pudéssemos passar
pelo menos um dia a cada dois no golfe. Mas, depois de uma
semana de trabalho, a música venceu. A cantora apanhou a
golfista… prometendo que elas voltariam a encontrar-se em
breve.
[325] Eu ficava sozinha no hotel, eu tinha que proteger a
minha voz, evitar o frio e o calor, o ar cheio de pólen. Eu
devia, acima de tudo, fazer as minhas vocalizações, ficar em
silêncio, ensaiar, aprender as minhas canções uma a uma.
Eu amava o clima dos estúdios
tanto quando antes. Mas, dessa vez, amei mais do que nunca,
porque conheci pessoas apaixonantes. Carole King ofereceu-me
uma canção, Sir George Martin, o homem que fez o som dos
Beatles, produziu "The Reason". Os Bee Gees vieram gravar
comigo "Immortality" e eu cantei com Barbra Streisand.
A ideia de cantar com Streisand,
eu sempre a tinha tido e sempre tinha tido medo. Aos cinco
anos, eu já a via como um dos meus ídolos mais
impressionantes. É perigoso aproximarmo-nos dos nossos
ídolos. Um nada pode destrui-los… ou esmagar-nos.
Tudo tinha começado no ano
anterior, durante a Gala dos Óscares. Eu tinha cantando "I
Finally Found Someone", a canção tema do filme que Barbra
tinha produzido, The Mirror Has Two Faces.
De facto, era Natalie Cole que
devia cantar essa canção. Mas ela ficou presa em Montreal
com
uma grande gripe. Na véspera da gala, os organizadores tinham-me pedido para a substituir. Então eu cantei a canção de Barbra e a minha, "Because You Loved Me", do filme Up Close
and Personal, igualmente nomeado. Isso nunca tinha sido
feito antes. Nunca, na história dos Óscares, uma artista tinha
cantado duas vezes na mesma gala.
René celebrava. Aos seus olhos,
não há nada mais empolgante do mundo, especialmente no
maravilhoso mundo do show-business, do que fazer o que mais
ninguém fez.
Estávamos os dois um pouco
desgastados nessa época. Eu lembro-me que, uma noite, no
Hotel de Beverly Hills, nós dissemos:
− O que poderia acontecer agora
que nos surpreendesse de verdade?
Nós tínhamos vivido meses num
ritmo infernal, nós estávamos quase sempre em tour, nós
participávamos em todas as galas importantes. Eu fazia
todos os programas de televisão,
cantava nos maiores palcos, os maiores concertos tanto na
Europa como na América e na Ásia. E, no fim, nada mais nos
empolgava de verdade.
Então, preparar uma nova canção
em 24 horas, cantar duas vezes nos Óscares e diante de Barbra
Streisand, era aterrorizante, stressante e estimulante. Eu
trabalhei muito.
Mas Barbra Streisand tinha saído
da sala quando eu cantei a sua canção. Ela tinha ido no
banheiro durante a pausa para os comerciais e as portas já
estavam trancadas quando ela quis voltar para a sua
poltrona. Ninguém pode circular na sala durante a cerimónia
do Óscar. René ficou muito desapontado e bravo. Eu fiquei
triste, claro, mas não deixei isso estragar o prazer que eu
tinha sentido. Eu tinha vencido um grande desafio.
Dois dias mais tarde, no Ritz
Carlton de S. Francisco, eu recebi um enorme ramo de flores
com um bilhete escrito pela mão de Barbra. Ela dizia que
tinha assistido à gravação da cerimónia e que achava que eu
tinha cantado "magnificamente", que eu era uma "cantora
incrível" e que tinha pena de não poder ter estado na sala…
e que ela desejava um dia cantar em dueto comigo.
Eu liguei para René, que se
encontrava numa clínica no deserto, e li o bilhete de
Barbra. Ele pediu que eu lhe oferecesse o bilhete e ele
guardou-o na sua carteira durante meses. Cada vez que ele
tinha ocasião, ele lia aos seus amigos ou aos jornalistas
que ele encontrava. Ele contactou rapidamente Marty
Erlichman, o manager de Barbra. E pediu a David Foster para
escrever uma canção que poderíamos cantar em dueto.
Uma das maiores qualidades do
meu amor é que ele continua a ficar maravilhado. Eu posso
nomear montes de pessoas que ele admira de verdade, estrelas e pessoas perfeitamente
desconhecidas, todos aqueles que fazem bem aquilo que eles
têm que fazer. Ele sabe encontrar pessoas de qualidade,
confia nelas e ama-as.
Foi David Foster que nos ligou e
nos propôs a canção "Tell Him", da qual ele tinha escrito a
música.
[327] Barbra cantou a sua parte em Los
Angeles. Alguns dias mais tarde, em Nova Iorque, eu juntei a
minha voz à dela. As nossas duas vozes harmonizam-se
magnificamente bem. Por momentos elas quase se confundem.
Os técnicos e os responsáveis
pelos arranjos mexeram e trabalharam na nossa canção e, numa
linda noite, escutamo-la juntas, Barbra no Record Plant de
Los Angeles e eu no Hit Factory de Nova Iorque.
Quando a canção terminou, o
silêncio caiu no estúdio. Olhámos todos o telefone. Eu acho
que ele demorou uma eternidade para tocar. David atendeu.
− Céline, é para você.
Era Barbra que estava ligando-me
do outro lado do continente para me dizer o quanto ela tinha
amado a minha interpretação.
− Você consegue fazer coisas
maravilhosas com a sua voz. Como você faz para conseguir se
misturar tão bem com a música e com a minha voz?
Eu não ousei responder que tinha
cantado em dueto com ela centenas e centenas de vezes diante
do grande espelho do meu quarto, na Rua de Notre Dame, em
Charlemagne. Eu apenas disse que trabalhava muito e que me
treinava como uma atleta.
− Você tem que me ensinar –
disse ela.
− Ensinar o quê?
− A ter disciplina.
− Você não tem que aprender nada
comigo. Você é a melhor cantora do mundo!
− Temos todas coisas a aprender
uns com os outros. Mas você aprende mais depressa do que
todos nós porque você tem uma grande voz e uma grande alma.
Eu estou verdadeiramente orgulhosa de você.
Eu fiquei paralisada. Ela tinha
tanta confiança, ela dizia-me coisas tão lindas! Eu sentia-me incapaz de dizer até que ponto ela tinha sido
importante na minha vida, de dizer o que eu tinha sentido
quando a minha voz se misturou com a dela. Era como se as
nossas vozes, depois de se terem procurado durante tanto
tempo, se tivessem finalmente encontrado. E elas eram irmãs
gémeas.
Mas eu dizia a mim mesma que
Barbra devia saber bem que ela era o meu modelo, que eu
tinha aprendido muito com ela, isso devia transparecer na
minha voz.
Mas, em vez de falar, eu comecei
a chorar.
René, também comovido, pegou o
telefone.
− Você sempre foi um modelo para
Céline, um ídolo. Ela está muito impressionada, sabia?
− Eu compreendo – disse Barbra.
– Eu senti a mesma coisa na primeira vez que cantei com Judy
Garland.
Ela tentou falar comigo de novo.
− Eu quero conhecer-te melhor.
Venha-me ver em Malibu quando você puder. Amanhã mesmo, se
você quiser.
Mas, no dia seguinte, eu
prepararia "I Hate You Then I Love You" com Luciano
Pavarotti.
− Posso ir terça-feira, se você
puder.
− Fica para terça-feira. Eu vou-te mostrar o meu jardim de rosas e vamos caminhar na praia.
Ser convidada a jantar pelo seu
ídolo, ser abraçada por ela, são momentos de grande
felicidade. Mas aproximarmo-nos dos nossos ídolos é muito
preocupante. Não há nada mais frágil. E eu não quero
destruir os ídolos que eu tenho, do mesmo jeito que nunca
mais quero deixar de sonhar.
Nessa época, eu achava que todos
os meus sonhos estavam se realizando depressa demais, mesmo
antes que eu tivesse tempo de os sonhar.
Diante ou atrás de mim, dentro
ou fora de mim, a vida e o sonho eram semelhantes, o mesmo
cenário, os mesmos rostos, a mesma felicidade. Era
vertiginoso e, ao mesmo tempo, assustador.
Com Pavarotti, eu iria entrar
dentro de outro Universo. Ele é imponente. E ele tem
presença.
[329] Mas, para mim, ele não tinha nada de intimidante.
O clima era, desde o começo, muito relaxante. Mas assim, nós
tentámos muito tempo até achar o tom certo.
Pavarotti cantou a sua parte e
depois eu cantei a minha. O resultado ficou bom mas não
tinha nada demais. Fizemos o contrário. Eu cantei, ele
misturou a sua voz com a minha. A mesma coisa. Ficou bem.
Mas banal.
Mas, desde o começo que eu
estava pensando numa coisa:
− Eu gostaria que cantássemos
juntos.
− Eu também estava pensando
nisso.
Ele pegou a minha mão, entramos
no grande estúdio e cantamos, olhos nos olhos, "I Hate You
Then I Love You". Cantar em duo é muito íntimo e mexe com a
pessoa. É um jogo muito sério, como os actores nas cenas de
amor. Eu adoro isso.
Em Abril, o compositor James
Horner tinha vindo a Las Vegas propor a René um projecto que
o empolgava muito.
− Eu escrevi a música para o
filme Titanic. O director James Cameron dispõe do maior
orçamento alguma vez visto em Hollywood. É uma grande
história de amor.
Ele tinha escrito com Will
Jennings uma canção que ele queria colocar no final do
filme.
− É uma das mais lindas que já
fizemos juntos.
René não estava confiante. Nos
últimos anos, os grandes filmes de Hollywood com grandes
orçamentos tinham sido verdadeiros desastres.
Mas Horner insistia. Segundo
ele, Titanic marcaria a história do cinema.
− Por agora, Cameron não quer
saber de uma canção – disse ele. – mas eu tenho a certeza
que ele mudaria de ideia se Céline aceitasse cantar a canção
que escrevi com Will.
Alguns anos antes, nós tínhamos
tido uma triste história com Horner e Jennings. Eles já
tinham vencido uma dezena de Óscares para música e canções de
filmes. Algum tempo depois do lançamento do meu primeiro
álbum em Inglês, quando eu era quase desconhecida nos
Estados Unidos, eles tinham-me visto na gala dos Junos em
Vancouver e tinham desejado que eu cantasse a canção tema do
filme de desenho animado An American Tail: Fievel Goes West,
produzido por Steven Spielberg. Eu adorava a canção deles,
"Dreams to Dream". Até hoje ela aparece-me na cabeça de vez em
quando. Mas houve todo o tipo de complicações e de brigas
entre gravadoras e o projecto foi pelo ar. René ficou muito
magoado. Com Titanic, ele queria a sua vigança.
Mas tinha que se conciliar os
interesses das gravadoras…
− Primeiro tenho que convencer
Cameron – disse Horner.
− Primeiro você tem que
convencer Céline – corrigiu René. E tem que me convencer
também.
Nos encontrámo-lo na nossa suite
do Caesar’s Palace. Horner sentou-se no piano para tocar "My
Heart Will Go On". Coitado! Ele é, quem sabe, um dos mais
brilhantes autores que conheço mas a voz dele é mole,
apagada e seca. Não ficava bom.
Pelas costas dele, eu fazia
sinais a René, expressões com o rosto, com os olhos, para
que ele entendesse que eu não queria essa canção. Eu adorava
a letra mas a música parecia-me sem brilho.
[331] Nós
não tínhamos chegado a meio da
canção e René já fingia que não me estava entendendo. Quando Horner se virou para a gente, René disse:
− Dentro de um mês, vamos estar
em Nova Iorque, no Hit Factory, onde Céline vai gravar o seu
próximo álbum. Se você nos der a orquestração, ela pode fazer um demo para você
levar a Cameron. Isso será o melhor jeito de o convencer.
Horner não esperava tudo isso.
Ele ficou nas estrelas. Mas eu estava furiosa. E estava preparando-me para brigar seriamente com René Angélil assim que
ficássemos sozinhos.
Mas foi ele que me deu uma
lição.
− Você ficou presa na voz de
Horner, que eu sei que não é boa. Mas você não escutou a
canção direito. Eu estou te dizendo, a melodia é
extraordinária e você pode fazer dela um dos seus maiores
sucessos.
Um mês mais tarde, James Horner
estava no Hit Factory de Nova Iorque com a sua orquestração.
Ele chamou-me à parte e contou-me, com muitos detalhes, a
história do filme. Eu fiquei impressionada. Eu escutei a
orquestração e tive que admitir que René tinha razão: era
uma melodia extraordinária, muito comovente.
Nesse dia eu estava incubando
uma gripe. A minha voz não estava muito segura, ela tinha um
pouco de fragilidade que, eu acho, deu à canção o seu lado
romântico. Eu deixei as palavras subir desde o fundo de mim.
Estavam presentes todos os grandes patrões da Sony: Tommy
Mottola, John Doelp, Vito Luprano… e todos souberam, desde a
primeira gravação, que seria um grande sucesso.
Algumas semanas passaram e, num
lindo dia, James Horner ligou-nos para dizer que James
Cameron tinha escutado a nossa canção e tinha-se deixado
levar. Melhor ainda, ele viria a Nova Iorque para nos
mostrar o seu filme.
Quando chegámos à sala de
projecção essa noite, René não tinha comido a tarde inteira.
Coisa rara para esse grande guloso! Eu não quis que ele
jantasse porque, às vezes, ele come demais e depois adormece
em frente da televisão, mesmo quando temos amigos em casa.
Eu não conto mais os filmes que
ele não viu até ao fim. Eu sabia que o filme que íamos ver
tinha mais do que três horas. Eu tinha mandado preparar
saladas de legumes e de frutas que o servirem no começo
da tarde. Depois disso ele só tinha bebido água. Na sala
onde aconteceu a projecção, havia um grande lanche. René olhou-o longamente, como conhecedor de comida, mas não tocou
em nada. Ele foi realmente admirável. Titanic é um dos raros
filmes que ele pode contar que viu do começo ao fim.
Nós nem voltámos para o estúdio.
O demo que gravámos no Hit Factory iria dar a volta ao
planeta e tornar-se, segundo dizem, a canção mais vendida da
história da música.
No Natal, quando o filme Titanic
saiu em milhões de telas pelo mundo inteira, o meu novo
álbum Let’s Talk About Love já estava no topo. A nossa
história de sucesso iria continuar por mais tempo. Tudo o
que a gente tocava transformava-se em ouro, ou em platina ou
em diamante. Nós estávamos ricos, famosos e solicitados por
todo o mundo.
Quando nos tornamos em
celebridades importantes, muitas pessoas manifestam-se e propõem-nos os seus serviços. Se eu dizia na televisão que
queria construir a casa dos meus sonhos, uma multidão de
arquitectos, de decoradores e de empresas ligava para os
nossos escritórios ou para a Sony para nos oferecer planos,
conselhos. Correu o rumor (falso) que eu tinha ido numa
clínica especializada em problemas de fertilidade. Vinte
médicos ou impostores faziam-me saber que eles tinham
soluções. Outros queriam vestir-me, pentear-me, curar-me, maquilhar-me, ler as cartas, analisar a minha letra, escrever músicas para mim,
claro, escrever a minha biografia, as minhas memórias…
Aprendemos depressa a fugir
dessas solicitações. Mas haviam muitas obras de caridade
que, muito mais discretamente e delicadamente, nos lembravam
que tínhamos o poder e o dever de ajudar os pequenos, os
fracos, os doentes. Nós não podíamos ficar indiferentes.
− Isso agora faz parte da nossa
vida – dizia René. – Eu e você recebemos muito.
[333] Demais até,
se você quer a minha opinião. Agora temos que aprender a
dar.
Para ele, isso não era uma
questão de imagem ou de marketing. Ele acreditava
verdadeiramente, como bom supersticioso que ele é, que temos
que dar de volta. Um pouco como a minha mãe achava que não
temos nada sem esforço e que o que se conquista facilmente
não se aproveita de verdade.
René tem uma natureza
profundamente generosa. Tanto quanto ele adora brincar com
os negócios, ele adora oferecer. Mesmo quando não éramos
ricos, ele convidava sempre todo o mundo sem pedir nada de
volta. Assim que ele ficou na frente de uma enorme fortuna,
ele começou a considerar os pedidos das fundações e das
obras de caridade que se aproximavam da gente.
Ele tinha como prioridade a
Associação Quebequense da Fibrose Quística. Estaremos sempre
ligados a eles. Também ajudámos outras organizações, depois
de René examinar os pedidos. Mas há tanta miséria e tantos
dramas no mundo inteiro!
Eu vi na televisão, há uns anos,
uma reportagem com umas imagens que continuam-me
perseguindo. Num orfanato chinês, uma menina quase cega
estava morrendo sozinha atrás de uma porta. Nunca até ao fim
da minha vida eu vou esquecer o seu
rosto, os seus olhos, a sua dor. Eu não quero esquecer.
Não podemos esquecer. Os responsáveis dos orfanatos tinham-na
abandonado porque estavam impotentes, sem meios. Se um dia
eu tiver uma fundação, será para ajudar crianças.
Nós ganhámos o hábito de ir dar
cestas de mantimentos no Natal a famílias pobres de Charlemagne e de Repentigny. As pessoas reconhecem-nos mas
sentem-se envergonhadas.
Com as pessoas mais próximas,
com os meus irmãos e irmãs, por exemplo, é muito delicado.
Alguns sem dúvida precisam de dinheiro. Outros, eu sei,
nunca me pedirão nada. Foi René que, um dia, me sugeriu:
− Esse Natal, você deveria
oferecer cem mil dólares a cada um dos seus irmãos e irmãs.
Eu achei uma óptima ideia. Pelo
Natal eu reuni os meus irmãos e irmãs na minha suite de um
hotel de Montreal, o mesmo onde tínhamos celebrado o nosso
casamento. Eu dei um pequeno envelope a cada um deles. Nós
rimos e chorámos. Eu sabia com certeza que estava trazendo
muita felicidade. Mas, ao mesmo tempo, uma tristeza e um
constrangimento instalaram-se entre a gente. Esse gesto
criou, forçosamente, um distanciamento entre eu e eles. Eles
não me tinham pedido nada mas eu tinha mudado a vida deles.
E eu tinha medo que eles ficassem com a impressão de me
dever alguma coisa.
Mas foram eles que me ensinaram
tudo. Esse sonho que tínhamos realizado, René e eu, nós
devíamo-lo a eles. E eu queria ter dito isso a eles, naquela
noite, se tivesse encontrado as palavras. Mas estávamos
comovidos demais, eu acho…
Acabamos por cantar todos
juntos, como nos bons velhos tempos, formando coros...
Nós inaugurámos a nossa casa de Jupiter à meia noite e cinco minutos, dia 28 de Julho de
1998.
− Vinte e dois é 2 mais 8, que
faz 10. E 10 dividido por 2, porque somos dois, faz 5 a cada
um. Podemos ir.
Há uma barreira e um guarda na
entrada de Admiral’s Cove, o condomínio residencial onde se
situa a nossa casa. Estávamos uns dez minutos adiantados.
René pediu ao motorista para esperar um pouco e depois fomos
muito lentamente para casa. Eu tinha um medo terrível. Eu
tinha vindo ver a construção de vez em quando. Mas, nos
últimos três meses, por minha vontade, eu não tinha vindo.
Eu perguntava-me se encontraria na realidade as imagens de
sonho que eu tinha guardado no coração esse tempo todo.
Eu conhecia a planta da casa, o
aspecto geral de cada quarto, a maioria dos objectos que
deviam estar lá. Johane e os arquitetos tinham-se inspirado
nas milhares de imagens que eu tinha mandado durante três
anos. A limusina atravessava o magnífico terreno de golfe e
aproximava-se da rua cheia de palmeiras e árvores em flor.
Eu perguntava se me iria encontrar a mim mesma lá dentro.
Abriram o portão. À meia-noite e
cinco minutos, nós batemos cinco vezes na porta principal.
Na nossa esquerda havia uma gardénia em flor. Eu amava as
suas folhas. Dizem que o seu perfume muda a natureza dos
nossos sonhos.
[335] Foi a luz que me alcançou
primeiro, uma luz muito clara, doce e quente. Centenas de
velas iluminavam cada quarto da casa. Depois escutámos
violinos e uma harpa cristalina lá em cima. Eu pensei: "É
exactamente como os primeiros versos da "Ce N’Était Qu’Un
Rêve"."
Dentro de um grande jardim encantado
De repente encontrei-me
Uma harpa e violinos tocavam
Nós dois chorámos. Mimos
perfeitamente imóveis imitavam as nossas estátuas de
mármore, por vezes não conseguíamos distinguir. Uma
empregada, vestida exactamente igual às do Caesar’s Palace
veio trazer uma Coca-Cola Light ao René.
Ele estava tão feliz. Apesar de
nunca se ter interessado por essa casa, ele encontrava aí
objectos familiares, que o lembravam Las Vegas ou as
nossas casas antigas. E, claro, para esse maníaco da
televisão, havia 33 televisões, além de uma grande sala de
cinema.
Quase todos os quartos da casa,
9 quartos de dormir, salas de jantar, cozinhas, salas de
estar, mesmo o atelier de costura que fizemos para a minha
mãe e para a minha tia Jeanne, estão voltados para o jardim,
abrigados de olhares indiscretos. Há uma imensa sala a céu
aberto, com muitos recantos: um canto inglês, um canto
chinês, pequenos jardins, uma piscina no fundo da qual se
pode ver as nossas iniciais entrelaçadas… Uma casa de sonho.
A casa da felicidade. E do amor.
Plantámos árvores grandes,
palmeiras reais mais altas do que a nossa casa, árvores com
cinco troncos (o nosso número da sorte), plantas
trepadeiras, muitas flores também. Eu jurei a mim mesma que
aprenderia o nome delas.
Até amanhecer, caminhei de um
quarto para o outro como num sonho. Eu encontrava em todos
os lugares objectos familiares que eu só tinha visto em
fotos. Eles tinham uma dimensão, uma presença diferente do
que eu tinha imaginado.
Para mim, não era apenas tomar
posse da casa onde iríamos morar. Era uma conquista. Eu
tinha a impressão de ter conquistado alguma coisa, de ter
criado um lugar que não se parecia com mais ninguém, mas que
se inspirava em tudo de lindo que eu já tinha visto.
Eu iria finalmente estar em
casa, numa casa que se parecia comigo e de quem eu seria a
dona. Eu iria aprender a gerir esse espaço, a dar vida.
Eu pensava no filho que eu
criaria aí um dia. O meu ginecologista tinha-me avisado que
eu teria dificuldade em engravidar enquanto estivesse em tour. A pressão, o stress, os fusos horários, o turbilhão
permanente e as frequentes separações físicas tornavam as
coisas difíceis. Mas eu sabia que, mais dia menos dia, a
gente iria parar de verdade, um ano, quem sabe dois, nessa
casa. E então, quem sabe, eu poderia realizar esse sonho, o
mais lindo de todos: ter um filho…
Há dois meses que a minha irmã
Linda vivia perto da gente. Eu contava com a sua experiência
para me ajudar a cuidar do nosso filho, se Deus quisesse me
dar um. Quanto a Alain, o marido dela, ele teria muito com
que se ocupar.
Na noite em que chegámos, ele
tinha preparado a refeição. No dia seguinte ele fez-nos
crepes de salmão fumado, omeletes… Depois perguntou o que a
gente queria comer de noite. René disse:
− Quem sabe Osso Buco?
De noite, nós tínhamos um
excelente Osso Buco no nosso prato. Alguns dias mais tarde,
propusemos a Alain ser o nosso cozinheiro. A nossa vida
organizava-se com Linda, Alain e três empregadas. Eu tinha
agora que aprender a cuidar de uma casa, eu que vivia de
hotel em hotel há anos.
Mas antes eu tinha que voltar
para a estrada.
[337] No final desse verão de 1998 eu começaria
uma nova tour, com material da Let’s Talk About Love e do
novo álbum que eu tinha feito com Goldman, S’il Suffisait
D’Aimer. Eram canções magnificas, músicos que eu adorava,
meios técnicos formidáveis…
Mesmo assim, pela primeira vez
na vida, eu partia com o coração pesado, mesmo sem vontade…
A estreia de Let’s Talk About
Love, no Fleet Center de Boston, foi precedido por um dos
piores pesadelos da minha vida de artista. Eu já estava
esperando. Mas a gente nunca sabe como as coisas vão
acontecer. Por vezes parece que tudo vai dar errado e,
quando o concerto começa, a magia opera. Por vezes é o
contrário.
Nunca na minha vida eu
esquecerei, por exemplo, o concerto que eu dei em Seul,
durante a tour "Falling Into You". Desde manhã que tínhamos
a certeza que ia ser uma catástrofe. Tudo ia mal. Estávamos
cansados. Desde a nossa chegada que tínhamos ficado presos
em engarrafamentos monstruosos. Eu tinha a garganta
irritada. Um dos músicos tinha ferido uma mão. Uma chuva
negra e gelada caía na cidade. No dia anterior, saindo de
Nagoya, o nosso avião tinha feito uma aterrorizante viragem
sobre a asa. René não estava presente. Há duas semanas que
eu estava longe dele.
No Ginásio Olímpico, os camarins
eram verdadeiras prisões, húmidos, sombrios, frios. Durante o
teste de som, sem sabermos bem como, dezenas de jovens
entraram e sentaram-se nas primeiras filas. Os responsáveis da
segurança tinham medo, e com razão, que começassem brigas
quando os donos dos ingressos chegassem.
E mais, por causa de problemas
eléctricos, os técnicos não conseguiam ajustar as iluminações
e o som, o show ia começar com atraso e nós estávamos muito
limitados nos horários. Uma das regras da cidade proíbe que os aviões saiam do aeroporto de
Seul depois das onze e meia da noite. Tinham-nos dito que
era possível haver engarrafamentos em qualquer hora do dia e
da noite. Nós tínhamos a certeza que iríamos entrar em um.
O que aconteceu ninguém poderia
ter previsto. Não houve brigas. A multidão foi
extraordinária, por vezes exuberante, por vezes quieta, mas
calorosa. As iluminações e o som foram impecáveis. A minha
voz estava clara e flexível. Os músicos estavam felizes.
Quase perdemos o avião porque eu estava tão bem que nem
queria sair do palco. Apesar dos sinais de desespero do
director, eu voltei mais do que uma vez ao palco. Eu cantei
mesmo "Twist and Shout" dos Beatles. Quando eu finalmente
saí do palco, faltavam apenas quarenta minutos.
Não teve engarrafamento.
Policiais em motos escoltaram-nos através da cidade. E às
onze e meia em ponto o nosso DC-8 descolava, debaixo de chuva
violenta, do aeroporto de Seul.
Na véspera da estreia da "Let’s
Talk About Love", em Boston, eu só pensava no show de Seul.
Mais uma vez, tudo indicava que seria um fiasco total. Eu
esperava que, como em Seul, um milagre se fosse produzir.
Nós tínhamos começado a produzir
esse concerto há meses. Tínhamos construído um palco em
Montreal, um palco central em forma de coração, um imenso
coração de 200 metros quadrados, que formava o palco
luminoso, tipo um estroboscópio gigante multicolor. Por
cima, em quatro cantos, havia telas gigantes suspensas.
Imagens do show e dos rostos dos Bee Gees e de Barbra
Streisand, com quem eu deveria cantar, iriam ser projectadas.
A minha estilista Annie Horth
tinha falado com vários estilistas para desenharem as minhas
roupas de palco e as roupas dos músicos e das coristas.
Eu coloquei extensões no cabelo…
Metade das canções já eram conhecidas do público, mas eu
nunca as tinha cantado no palco.
Cinco minutos antes de começar o
show, tinham que me fechar numa caixa. Os técnicos
levavam-me para debaixo do palco, onde ficavam os bastidores,
outros técnicos diante dos seus computadores, tranças de
fios e telas, uma maquinaria assustadora. Os músicos estavam
instalados sobre plataformas accionadas por sistemas
hidráulicos. Tudo isso me parecia insuportavelmente frágil.
Eu sabia que entre mim e os músicos tudo iria dar certo,
mesmo nunca tendo cantado metade das canções. Mas o resto,
as iluminações super sofisticadas, o palco luminoso, as
telas, o visual do concerto, tudo poderia dar errado. Um fio
poderia sobreaquecer, uma tela poderia apagar-se.
Estávamos todos em pânico.
Durante horas, tivemos a impressão de ter perdido o
controle. A máquina que tínhamos construído era enorme
demais. Nós éramos aprendizes de feiticeiros ultrapassados
pelas suas invenções.
René reuniu todo o mundo numa
sala do Fleet Center. Paredes de cimento, cadeiras de
plástico. Ele disse-nos.
− Nesse momento, a trinta e duas
horas da estreia, não temos concerto. Temos um plano de
concerto, um sonho, uma construção, grande como o Empire
State Building. Mas ainda não passámos do 7º andar.
Os meus olhos cruzaram os de
Mego. Eu tenho a certeza que ele estava pensando no mesmo do
que eu. Essa frase, "Não temos concerto", nós já a tínhamos
escutado, dois ou três anos antes, em situações tão
horríveis. As recordações ruins, bem como a infelicidade,
vai e volta, de mão em mão.
Tinha sido em Vancouver, numa
noite de estreia. Estávamos mal preparados. Devíamos ter
ensaiado durante duas semanas mas eu estive ocupada não sei mais com o quê.
Deve ter sido promoção. Tenho sempre promoção para fazer. Ou
videoclipes para gravar.
Mego ligava-nos todos os dias. O
responsável pela iluminação e o director também. Finalmente,
ensaiámos no velho Forum de Montreal, recentemente mudado de
proprietário, durante uma tarde, duas ou três horas, apenas
o tempo de perceber que era tarde demais. Partimos para
Vancouver morrendo de medo.
Seria mentira se eu dissesse que
a gente sentiu o menor prazer. O concerto começou mal. Os
músicos tocavam bem mas não havia uma conexão entre eu e
eles. Entre as canções, eu tentava falar com as pessoas,
fazê-los rir, comovê-los. Mas parecia que tudo o que eu
falava não tinha sentido.
René nunca me lê as críticas. As
boas ele depois conta-me. Ele nunca fala das ruins. Mas, no
dia seguinte, eu queria saber. A critica que eu li não devia
ter sido escrita por uma pessoa que vê ou gosta de música.
Não se falava em lugar nenhum de erros técnicos, iluminação,
gafes. O autor apenas falava das letras das minhas canções.
Ele poderia ter escrito isso sem ter ido no concerto.
− Mas, justamente – dizia René –
não havia concerto. Foi erro nosso. Não estávamos bem
preparados. A culpa foi minha.
[339] Se o show tivesse sido bom,
ele teria falado isso. Ele teria falado do concerto, não das
letras das músicas. Como você quer que ele fale do concerto
se não teve concerto?
Nós tínhamos trabalhado muito
mas acabámos por fazer um concerto bom. Levámos pelo mundo
inteiro. Mas tínhamo-nos assustado, tínhamos sofrido. E
agora recomeçava.
− Não temos concerto.
Os técnicos, os engenheiros, os
electricistas passaram a noite no Fleet Center. Eles
trabalharam no visual de cada canção. Durante o dia, todo o
mundo parecia paralisado pelo medo. Estava calor. Eu tinha
quilos de cabelo preso na minha cabeça, os meus e as
extensões que eu começava a arrepender-me de ter colocado.
Eu não estava mais segura do meu visual, que às vezes eu
achava magnífico e às vezes achava ridículo. Eu não estava mais
segura de nada, de facto.
Finalmente, tudo deu certo.
Apesar de problemas técnicos, acho que fizemos um bom
concerto. Dessa vez, as críticas não falaram das letras das
minhas canções nem do meu visual. Elas falaram do concerto,
o seu bom som e do seu bom visual. Mas essa estreia ficará
na minha memória na categoria dos pesadelos e marca, eu
acho, o fim de um capítulo.
Nessa noite, eu disse a René,
pela primeira vez na vida, que eu não queria mais viver um
pesadelo assim.
− Eu não tenho a menor vontade,
está me ouvindo? Há outras coisas na vida.
Isso também foi uma estreia, uma
descoberta, uma novidade. Nunca, cinco anos antes, eu teria
afirmado uma coisa assim. Eu tinha acabado de perceber que
havia uma vida fora do show-business.
René compreendeu perfeitamente.
Acho que ele ficou feliz por eu finalmente descobrir isso.
Ele também já tinha tido stress e medo demais. Então jurámos
um ao outro tirar umas férias no fim da tour. Há meses que
pensávamos nisso mas tínhamos adiado esse momento, sem
dúvida porque não tínhamos tido necessidade de verdade. Mas
as coisas tinham evoluído. A ambição que me tinha levado
tinha mudado de capítulo.
Eu queria paz e sossego. Eu
fazia filmes cor-de-rosa: quase sem nenhuma acção e apenas
dois personagens, o meu amor e eu.
Acontecia quase sempre numa
praia deserta ou no campo de golfe perto da nossa casa. Cem
mil vezes eu revi as nossas noites: nós estávamos sozinhos
em casa, eu preparava massa ou um churrasco enquanto ele
assistia golfe na televisão. Eu preparava a mesa no terraço,
escolhia a toalha, os copos, os talheres, colocava velas e
flores. Era só nós dois. Nem tinha música. Nós falávamos de
tudo e de nada, como sobre o dia anterior e o dia antes
desse. Eu tinha pelo menos cem versões desse jantar e dessa
noite romântica com o homem da minha vida.
O concerto "Let’s Talk About
Love" era ainda mais exigente fisicamente do que os outros
concertos. Eu tinha que encher um palco imenso durante duas
horas, por vezes mais. Eu saía de lá mexida, em transe,
sempre com aquela espécie de euforia que causa um grande
exercício físico. Mas, no dia seguinte, eu via que tinha que
recomeçar tudo. Depois do próximo concerto eu teria outro e
outro, até perder de vista. Eu sentia-me vazia, impotente.
Eu tinha que encontrar a paixão, de um jeito ou de outro.
Mas como? E porquê?
Eu estaria em tour durante um
ano ainda, quem sabe dois. Quando essa grande máquina era
lançada, não era fácil fazê-la parar. Não se monta um
concerto desses para uma pequena tour de alguns meses.
[341] Eu
tinha a impressão de subir uma grande montanha. Mas para ir
para onde? Mais alto? Não há nada mais alto. Quem sabe outro
topo. E, pior, ficamos sozinhos aí. É o deserto, é o vazio.
Cada vez que era possível, íamos
passar uns dias na nossa casa de Júpiter. Eu voltei para a
minha colheita de imagens. Eu preparava outra casa,
no Québec. Eu a via: uma casa de
pedra escura, muito sólida, muito pesada, com madeiras,
tapetes, peles, grandes lareiras, cores muito quentes, um
canteiro onde eu iria cuidar das minhas plantas…
Contrariamente à nossa casa de Jupiter que é um casulo, essa
seria aberta para o exterior. Eu imaginava campos cheios de
neve em volta.
Eu amo o calor do sul, mesmo o
grande calor da Florida em Junho e Julho. Eu não posso dizer
que gosto de frio mas gosto do inverno, o seu cenário
branco, a neve fresca que estala debaixo dos pés…
Nós tínhamos comprado uma ilha
de vários hectares no rio Mille-Îles, a uns vinte minutos do
centro de Montreal e do aeroporto Dorval e a 10 minutos do
campo de Terrebonne. Há lebres e madressilvas por lá, muitas
verduras, é muito tranquilo. Eu precisei sempre de estar
rodeada de água.
− A gente vai parar de vez no
primeiro dia do ano 2000 – disse-me René, um dia.
Por todo o mundo organizavam-se
grandes concertos para celebrar esse evento. Nós tínhamos
recebido várias propostas que René considerava… mas eu sabia
bem que apenas um lugar lhe interessava: Montreal.
Não seria amanhã a virada para o
ano 2000, seguida de um grande repouso. Mas a paixão e o
prazer de cantar voltaram porque eu sabia que o turbilhão
iria, finalmente, acalmar.
Nós tínhamos previsto, para
começar, uma longa pausa no Québec, um mês inteiro, durante
o verão, para jogar golfe e começar a construir a nossa
casa.
Mas uma infelicidade, a maior
que alguma vez tínhamos conhecido, forçou-nos a adiar esse
projecto. |