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 INFOZONE » MA VIE MON RÊVE EM PORTUGUÊS

  Capítulo 6

 

Eu não tenho uma boa recordação do primeiro dos três concertos que eu apresentei no Forum de Montreal nessa Primavera. O público foi infinitamente generoso comigo. Mas eu acho que não dei um bom concerto. Eu estava distraída e ausente.

Eu tinha vários motivos: um pouco de cansaço e de preocupação que a minha voz, ainda frágil, fosse quebrar, e por causa da grande felicidade que René me tinha dado. Eu estava com dificuldade em entrar nas minhas canções e de as possuir de verdade.

Várias vezes eu quase cedi à minha pior inimiga, aquela que eu chamo "cantora robô". Ela faz tudo mecanicamente. Ela tem o meu corpo, a minha voz, o meu nome. Mas não tem a minha alma. Nessa noite, a minha alma e o meu espírito estavam longe, fora de mim. Eu estava rodeada pela família, feliz e realizada, adulada. Eu tinha no dedo o anel de noivado que o homem da minha vida me tinha oferecido. Mas eu sentia-me estranha, indiferente, incapaz de me aproximar das pessoas, de partilhar. Era como se as canções não me inspirassem. Era como se a música me deixasse fria e não servia mais para calar a felicidade.

[273] Eu tenho que dizer que cantar a mesma canção, noite após noite, durante meses, anos, se torna muito difícil. Muitas vezes repetida, uma canção fica sem sentido e sem emoção. Então, temos que a procurar no fundo de nós mesmos, cada vez mais longe. Isso exige um esforço cada dia maior.

Claro que, enquanto intérprete, eu tenho a sorte de ter um imenso repertório. Dezenas de compositores e de autores aceitaram trabalhar para mim. E mais, eu gosto de cantar músicas de todo o repertório em Inglês e em Francês dos últimos dez, vinte, cinquenta anos. Eu encontro milhões e milhões de canções que eu amo, como "Calling You", "All by Myself", "Quando On N’A Que L’Amour", como "The Power of Love" ou "All the Way". Eu apaixonei-me por todas essas canções quando as escutei. Eu tive vontade de as refazer, mesmo que outros antes de mim, homens e mulheres, as tivessem interpretado de forma magistral.

Então eu posso mudar regularmente o conteúdo dos concertos, com canções novas e envolventes. Mas não se constrói um show apenas com o que a intérprete gosta nem apenas com canções novas. Temos que ter em conta o gosto do público.

Nós sabíamos, pelas reacções dos fãs e dos compradores, que "The Power of Love", por exemplo, era e continua sendo, uma canção que as pessoas adoram. Mas, em algumas noites, ela parecia-me uma escravatura aterradora. Eu já a tinha cantado tantas vezes que nem sabia mais como a fazer levantar, como colocar alma e emoção. Eu tinha medo que a cantora robô se aproveitasse disso.

A gente vive sempre uma lua-de-mel com as canções. O primeiro encontro é exaltante e muito marcante. Eu lembro-me, como uma mãe se lembra do nascimento dos seus filhos, do dia em que conheci as minhas canções. Eu lembro-me do lugar: um quarto de hotel, um estúdio, um avião, uma limusina. E lembro-me das roupas que vestia nesse dia, da iluminação, do tempo que fazia, das pessoas que estavam comigo.

Mas as paixões à primeira vista não duram. Chega um momento em que a magia não funciona mais tão facilmente como antes. É como se a canção perdesse a sua frescura e sabor, as suas cores. É então que começa outro trabalho. É um pouco como o amor, por vezes temos que lutar contra o costume e a rotina para que seja sempre como a primeira vez, reinventar a canção como reinventamos o amor, para todas as vezes encontrar alguma coisa nova, para encontrar prazer. Senão não vale a pena cantar ou amar.

Nessa famosa noite, no Forum, o prazer veio devagar. Todas as minhas canções pareciam gastas e usadas. Tudo o que eu dizia entre elas soava-me vazio e falso. Mas eu trabalhei como uma condenada até ao fim mas, na minha opinião, tive um mau resultado.

René não me relatou o concerto, como sempre fazia. Ele parecia abatido também.

− Você está cansada e a culpa é minha. Eu fiz-te trabalhar demais. Você precisa descansar. Você vai tirar o tempo que precisar.

Mas, na segunda aconteceu o contrário, foi um dos concertos mais lindos de toda a minha vida. Mas, no começo, eu temi o pior.

Uma hora antes de subir as cortinas, eu recebi no meu camarim a minha sobrinha Karine, acompanhada de duas enfermeiras e de um médico de Sainte-Justine, onde ela estava hospitalizada há várias semanas. Ver ela partiu-me o coração. Ela estava tão pálida, tão derrotada, tão pequena, toda atrofiada numa cadeira de rodas, atrás da qual tinha instalado garrafas de oxigénio. Os seus pulmões estavam muito fracos, muito congestionados para que ela pudesse respirar.

[275] Pela primeira vez eu via-a sorrindo com resignação. Eu achei que ela tinha desistido de lutar. E que ela tinha vindo para se despedir de mim.

Eu, que tinha sido sempre muito próxima de Karine desde que ela era criança, não conseguia mais estabelecer contacto com ela, eu não sabia mais o que fizer nem como a olhar. Ela percebeu. Então ela procurou-me, falou comigo como se nada tivesse acontecido, sobre as canções do meu último álbum, sobre a minha roupa do concerto, fez-me perguntas sobre Paris, Hollywood, sobre todas as cidades do mundo onde eu tinha cantado e ela nunca tinha visto e nunca veria. E sobre a princesa Diana, com quem eu tinha jantado umas semanas antes em Ottawa. Ela disse-me, com um sorriso pálido:

− Eu soube que você tem um namorado. Estou feliz por você.

Eu não podia impedir-me de pensar em tudo o que eu tinha, em toda a felicidade que eu esperava na vida. E, para ela, não havia nada. Esse pensamento partia-me o coração e tirava-me toda a vontade de subir ao palco e cantar as minhas canções de amor.

Nós sentámo-nos afastadas dos outros. Eu pude falar com ela, como uma amiga íntima, sobre a minha carreira, sobre as minhas viagens, das coisas mais preciosas que eu tinha na vida, e sobre o meu amor, é claro. Eu sabia que ela nunca teria nada disso: a felicidade de amar um homem, de o ter na sua vida. Mas eu não tinha mais medo de a machucar. Ela escutava-me e repetia:

− Eu estou feliz por você, Céline.

Eu fiquei muito emocionada e perturbada. Quando subi no palco eu senti a cantora robô aproximando-se. Mas eu sabia que Karine estaria lá, num dos camarotes que René tinha reservado para a família e para os amigos. Pensando nela, eu senti-me invadida por uma grande paz, por uma grande alegria e por uma força, a força de Karine. Eu cantei para ela. Eu sentia que ela me apoiava. Eu sentia que ela estaria sempre aqui, perto de mim, que ela não morreria. Eu queria quase dizer à multidão inteira do Forum, e a ela especialmente:

− Você não vai morrer, Karine, você não vai morrer.

Eu não a vi de novo depois do concerto. O seu médico e as enfermeiras acharam-na bastante cansada para enfrentar a multidão. Na tarde seguinte ela ligou-me para me dizer o quanto tinha amado o concerto. Eu disse que também tinha gostado muito. Tinha sido um bom concerto, eu tinha-me envolvido até ao fundo, com toda a minha alma. Nem por uma fracção de segundo a cantora robô tinha saído da sombra. Eu interpretei as minhas canções, mesmo a mais antiga, como se fosse a primeira vez…

Eu parti para a Europa uns dias mais tarde, onde eu fiz promoção e alguns concertos. Quando eu voltei para casa, no dia 3 de Maio, Karine estava muito mal. A sua voz ao telefone parecia cada vez mais fraca. Ela tinha parado de me pedir que descrevesse as cidades onde eu estava ou as roupas de palco que eu vestia ou para falar das pessoas que eu tinha conhecido.

Mal cheguei, eu foi vê-la ao Sainte-Justine. Liette estava do seu lado. Eu vi que ela tinha chorado muito. Eu sentei-me na cama e ficamos as três um momento, sem dizer nada. Havia ternura e serenidade entre nós.

René estava de pé no fundo da cama. Eu lembro-me dele, muito comovido, sem palavras. Ele sempre sabe o que fazer e o que dizer. Mas, por uma rara vez na nossa vida, eu via-o impotente e desarmado. Nesses momentos ele parece um garotinho e isso deixa-me sempre comovida.

Os médicos tinham dado morfina a Karine. Ela respirava com muita dificuldade. [277]  Eu perguntei se podia fazer alguma coisa por ela.

− Eu gostaria de ter um pijama novo.

Era domingo. René teve que ligar para o dono de uma boutique de roupas de noite, que aceitou abrir a sua boutique. Ele comprou dois pijamas. Ele contou-me que chorou enquanto escolhia. Nós sabíamos que Karine se tinha resignado em morrer e que a iríamos vestir para a sua última viagem. Era como uma cerimónia, um ritual.

Eu ajudei a minha irmã a lavá-la, a trocá-la, a penteá-la. Seguramos as lágrimas. Karine escolheu o pijama branco e vermelho. A sua mãe e eu pegávamos ela nos braços para a embalar. Liette falava docemente para ela e alisava os seus cabelos.

Ela fez uma lista de todas as coisas que ela mais tinha gostado na vida. Eram coisas sem ligação umas com as outras, mas muito precisas: o paté de salmão da minha mãe, duas ou três canções minhas, o rio de Repentigny, os vestidos que ela tinha gostado mais de vestir. Era como um inventário, um testamento, ela preparava as bagagens com recordações para a viagem que ia fazer. Era como se ela apenas quisesse levar com ela as coisas bonitas que ela tinha conhecido. E esquecer todo o resto.

Tinha passado da meia-noite quando ela morreu. Ela tinha 16 anos.

 

Eu fiquei profundamente marcada por Karine, um fantasma sorridente, sempre presente na minha memória. Ela foi a primeira criança de quem eu fui próxima, com quem tive uma verdadeira cumplicidade. Ela não era uma criança como as outras. A doença impediu-a de ser criança mas ela amadureceu rapidamente… e ela tinha uma força e uma luz muito fortes. A vida é injusta, mas as pessoas como Karine, as magoadas, as que perdem, as doentes, não estão nesse mundo sem motivo, eles trazem-nos alguma coisa. Eu tento ver, entender o quê.

Nas semanas e meses depois da sua morte, eu pensava nela e sentia uma grande dor mas também uma grande confusão e muita revolta, emoções que eu não gosto. Karine tinha partido sem ter conhecido o amor, depois de uma pobre vida passada procurando a sua respiração, sempre esmagada pelo cansaço, submetida a regimes e a tratamentos horríveis…

Contra a morte, não podemos fazer nada. Contra as injustiças da natureza e da vida, muito menos. Ou muito pouco. Mesmo o amor não é suficiente. Seria lindo demais e muito fácil se amor fosse suficiente para resolver todos os problemas do mundo, se amor fosse suficiente para fazer felizes as pessoas que amamos.

Temos que ver a realidade. Temos que agir, temos que lutar. Quem sabe temos que nos resignar um dia, como Karine. Resignar a quê? Eu não sei. Eu acredito e espero que haja uma outra vida. Eu acho mesmo que a emoção que sai das canções, como o perfume de uma flor ou como o suco das frutas, vêm de outra vida. A função dos artistas é trazer essa emoção para a nossa vida.

[279] Na nossa casa de Jupiter, eu acendo velas e candeias em todos os quartos da casa, dezenas e dezenas de pequenas chamas. Eu amo a luz doce que elas espalham. Antes de deitar, quando eu me aproximo para soprar sobre a última chama, eu penso quase sempre em Karine. E na morte. Eu sinto sempre um pouco de medo…

Karine fez-me descobrir e explorar um outro mundo de emoção que, sem ela, eu nunca teria conhecido. Para mim, ela não está morta, ela nunca morrerá. Eu sinto-a sempre muito próxima. Ela ajuda-me, inspira-me, ilumina a minha vida. E, quando eu sinto a cantora robô aproximando-se, eu apenas penso em Karine e ela vai embora.

 

Eu não tenho boa memória para números e datas. Mas o 8 de Novembro de 1993 vai ficar para sempre gravado na minha memória como um dos dias mais lindos da minha vida. Lançamos, esse dia, The Colour of my Love, o meu terceiro álbum em inglês, gravado no verão nos Estados Unidos. Eu tinha um novo look, pela primeira vez na vida eu tinha os cabelos muito curtos. Mas não é por isso que o dia 8 de Novembro de 1993 se tornou memorável. Foi porque nesse dia eu disse ao mundo inteiro que René Angélil e eu íamos casar.

Eu disse a uma multidão super empolgada do Metropolis e diante das câmaras de televisão de Montreal, em francês e em inglês. Eu tinha escrito no encarte do álbum um texto de algumas linhas no qual eu falava directamente a René, dizendo que eu tinha guardado segredo sobre o nosso amor durante tempo demais e que eu queria agora que ele aparecesse à luz do dia. Eu terminava dizendo: "René, você é a cor do meu amor. L.V."

Nunca dissemos a ninguém o que esse L.V. significa. Las Vegas? Não. Love and Victory? [Amor e Vitória] Não! Cinquenta e cinco em números romanos? Não mesmo.

É um segredo entre nós dois, é um símbolo. Quando eu quero falar com René durante um concerto ou quando estou na televisão, eu faço esse sinal, desenhando um L com o dedo indicador e o polegar e o clássico V da vitória e da paz.

Muitas pessoas entram muito profundamente na nossa intimidade. Especialmente desde o 8 de Novembro, eu falo disso muito livremente diante da media. René também. Falo sobre o nosso amor, sobre as nossas dúvidas, as nossas alegrias e as nossas dores, os nossos estados de alma, até mesmo as nossas brigas. Quase tudo o que fazemos acaba por ser sabido, de um jeito ou de outro. Achamos que esse é o melhor jeito de evitar o assédio dos paparazzi, é sendo mais rápidos do que eles, de tirar o tapete debaixo dos pés deles…. Só somos bem servidos por nós mesmos. Nós nossos os nossos próprios paparazzi.

A media acha que o grande público é fascinado pelas celebridades. Sem dúvida que é verdade. Mas eles tentam-nos fazer acreditar que o público quer saber o que as celebridades têm: quantos banheiros, quantas casas, qual o tamanho da piscina, como é o avião privado, quanto dinheiro eles ganham, etc.

Eu acho que a media está enganada, engana as pessoas e cria falsas relações entre as estrelas e os seus públicos. Eu estou convencida que as pessoas se interessam mais sobre as pequenas coisa da vida.

[281] Nos meus concertos, entre as canções, eu sempre falei de alguma coisa que estava vivendo ou de alguma coisa que eu gostava. Cada vez que eu falava em fazer compras, por exemplo, e do prazer que tinha em vestir vestidos novos, calçar sapatos, usar novos cremes de beleza, todas as meninas na sala começam a rir e a aplaudir. Cada vez que eu descrevia a felicidade que uma mulher sente ao preparar uma refeição para o seu maridinho, eu tinha a mesma reacção. Quando falo do cuidado maníaco que eu tenho ao colocar em ordem as minhas gavetas e os meus guarda-roupas, a mesma reacção. As coisas mais simples e banais da vida, é isso que as pessoas querem ouvir.

Quando me vêm ver depois de um concerto ou nas cartas que me escrevem, as pessoas contam-me os seus sonhos. E nunca eram viagens de Concorde, nem noites no Bristol ou no Beverly Hills Hotel, nem noites com Barbra Streisand ou com o Principie Charles. Elas sonham ser felizes no amor, sentir-se bem na sua pele, serem pessoas melhores… No fundo somos todos iguais. É isso que temos em comum e é isso que interessa.

Alguns cantores e cantoras fazem a sua profissão provocando. Eles querem mudar o mundo. Isso está certo. Mas eu não sou assim. Eu não estou tentando mudar o mundo. Eu quero apenas cantar. Eu não tenho raiva dentro de mim, ódio ou insatisfação. Eu nunca tive. Eu não sou uma alma torturada. E não tenho nada a esconder.

Mas isso não me impede de ter necessidade de ter um pequeno jardim íntimo onde apenas o homem que eu amo pode entrar. Sem isso um relacionamento não pode existir. Precisamos ter segredos, precisamos de espaço e de palavras, sinais como LV, que é só nosso.

Nessa noite, eu cantei algumas canções diante da multidão do Metropolis. Durante os aplausos que seguiram "The Colour of My Love", René subiu no palco e tomou-me nos seus braços. Ele passei a mão atrás da cabeça dele, puxei-o para perto de mim e limpei uma lágrima que corria pelo rosto. Depois eu beijei o homem que eu amo na boca, na frente de duas mil pessoas e todas as câmaras de televisão…

Ouvi gritos e aplausos. Sobre a tela gigante, eu vi pelo canto do olho um grande plano do nosso beijo.

No dia seguinte, diante da reacção unânime da media, eu cantei vitória. Por uma vez, René Angélil estava errado. Durante anos ele tinha tido medo que as pessoas achassem o nosso relacionamento errado, que os acusassem de me manipular. Foi o contrário que aconteceu. A reacção de simpatia foi enorme e as pessoas continuaram fiéis. O público nunca duvidou que nos amávamos.

René sempre teve imenso afecto pelo público do Québec. Onde quer que estivéssemos no mundo, ele tinha sempre o público informado do que nos estava acontecendo. Nesse dia, o respeito dele aumentou mais ainda.

Nós iríamos descobrir em breve que o acolhimento tinha sido igualmente caloroso por todo o lugar. O público e a media pareciam fascinados pelo nosso relacionamento. Tanto quanto tentamos esconder antes, agora estávamos vivendo tão publicamente. Esse amor, o nosso amor, iria ser o tema central da minha vida, de todos os meus shows, da minha imagem, a minha marca. Eu podia finalmente viver o que nós vivíamos sem fingir, sendo sincera.

Depois do lançamento de The Colour of My Love, eu parti em tour de promoção através da América do Norte. Para grande desespero das pessoas da Sony, eu mal falava do meu novo disco ou do concerto. [283] Em vez disso falava de René e da nossa felicidade. No Arsénio Hall, no Johnny Carson, na Oprah Winfrey, eu dizia que ele era a minha inspiração. Eu contava a nossa primeira noite em Dublin, os anos passados vivendo o nosso amor em segredo. Eu dizia que iríamos casar em breve.

− Quando?

− Um dia, quando tivermos tempo.

No passado verão, nós tínhamos comprado uma grande casa em Rosemère e nós tínhamos, muito meses antes de falar em público o nosso amor, começado a viver juntos como marido e mulher. No alto da escada que levava ao nosso quarto, René tinha pendurado uma enorme foto nossa, tirada durante uma gala ou uma festa. A gente vê a multidão em nossa volta, mas estamos de frente um para o outro, olhos nos olhos, cada um com um grande sorriso de felicidade.

René parava várias vezes diante dessa foto.

− Todo o mundo devia saber – me dizia ele, rindo. – Basta ver as nossas caras.

− Foi isso que eu cansei de te falar, meu amor. O amor não se pode esconder. É como a luz.

 

O turbilhão da nossa vida nunca foi tão poderoso como nos meses que precederam o nosso casamento. Eu estive em Osaka com a Orquestra Sinfónica de Tóquio, estive no palco do MGM Grand de Las Vegas com Michael Jackson. Estive num grande anfiteatro do Midwest diante de 20 mil pessoas. E estive em promoção em Londres. Gravei um videoclip em Praga, gravei canções novas em Nova Iorque. Eu dava um salto a Montreal. Passei três dias em Paris. Depois voltei a Tóquio.

Eu nunca tinha compreendido tão bem a expressão "não pertencer mais a mim mesma". Nós não conseguíamos parar, nós nem pensávamos nisso, nem o queríamos. Estávamos os dois perfeitamente felizes por estar assim, levados, propulsionados para esse turbilhão.

Nós fazíamos curtas pausas, a maior parte das vezes na Florida, onde acabamos comprando uma casa em Palm Beach, num campo de Golfe. Nos encontrávamos com outros casais amigos: Murielle e Marc Verrault ou Coco e Pierre Lacroix e outros amigos de golfe de René. Eu aproveitava o sol, repousava, fazia compras na Worth Avenue com as meninas, caminhava um pouco.

Eu não gostava dos campos de golfe e não jogava. Eu achava que as roupas de golfe eram insignificantes. Mas, o motivo pelo qual eu fugia dos campos de golfe, era porque eu não me sentia à vontade de férias. Quando eu parava, eu sentia-me frágil, inquieta, ameaçada. Era como se eu tivesse sido arrancada do meu meio. Eu procurava logo alguma coisa com que ocupar o meu tempo e o meu espírito.

 

Um dia, no jardim dos Breakers, o magnífico e famoso velho hotel de Palm Beach, ficámos falando sobre o nosso casamento com Pierre e Coco Lacroix. René queria que fosse simples e convencional. Ele queria que a gente se casasse numa pequena igreja. Era uma ideia muito romântica, para mim, faltava brilho.

[285] O casamento que eu queria tinha que ser fabuloso, inesquecível. Um verdadeiro casamento de princesa. Eu queria grandes pompas, nada pequeno. Não havia nada de comum e de pequeno na minha carreira, eu queria a mesma coisa para o nosso amor, que fosse em grande.

− Tá fora de questão, meu amor, casar-me com uma festa pequena.

No fundo, eu sou muito mais extrovertida do que ele, muito mais excêntrica e exibicionista. Eu queria criar um evento único, muito espectacular. Eu queria que o meu casamento fosse uma proclamação, professar o nosso amor e os votos de fidelidade. E o grande público seria testemunha, parceiro e cúmplice.

A minha amiga Coco compreendia perfeitamente o que eu queria criar. E, desde o começo, ela associou-se a essa aventura.

Eu tinha primeiro pensado num cruzeiro para o Caribe. A gente alugaria barco de cruzeiro e levaria todo o mundo. A gente se casaria em alto mar, numa noite de lua cheia.

− Mas a gente não pode impor a 200 ou 300 pessoas um casamento que dura três dias – dizia René.

− Você quer dizer 500 ou 600...

Ele ria. Tudo o que eu propunha parecia exagerado, caro demais, irrealista. Mas foi isso que o seduziu no meu projecto: o exagero, o risco e a loucura.

Ele disse-me mais tarde que achava que, na época, não tínhamos os meios para pagar um casamento assim tão sumptuoso. Nós já vendíamos milhões de discos mas isso que eu estava preparando com Coco ia sair muito caro. Foi antes de D’Eux e Falling Into You, os álbuns e as tours que nos levaram a entrar no clube das maiores fortunas do show-business. Mas René deixou-me tomar conta desse projecto. E dizia a ele mesmo que haveria de encontrar uma solução apostando no futuro.

− Tudo o que eu peço é que aconteça no Québec.

Eu estava de acordo. É aí que a maioria dos nossos amigos vive. É lá que vive o meu primeiro público, a minha família, as minhas raízes e as de René.

Então nós iríamos casar, diante de Deus e do Homem, com uma cerimónia grandiosa, como nunca se tinha visto antes. Ele amava isso também. O "nunca visto" é a sua paixão. Temos que fazer sempre o que nunca foi visto, cantar como nunca se cantou, viver como nunca se viveu.

Quanto mais doidas eram as minhas ideias, mais empolgada ficava a minha querida Coco. Contactamos Mia, que vivia na época entre Montreal e Paris. Durante a primavera e o verão, nós trocamos ideias por telefone e por fax…

Por causa dos meus compromissos, tivemos que adiar de mês em mês a data do grande dia. Esperando, eu passava todos os pequenos momentos que tinha, todas essas horas passadas no avião, por exemplo, e todos os meus momentos de silêncio e solidão preparando o meu casamento. Eu via na minha cabeça a cerimónia, eu via a decoração, eu desenhava vestidos de noiva. Eu examinava centenas de revistas de moda.

Como todos os filmes que eu sempre fazia na minha cabeça, eu já tinha imaginado um guarda-roupa inteiro: vestidos de noite, vestidos de palco, muitos vestidos de noiva… até mesmo o vestido, todo branco, que eu gostaria de usar no meu caixão e no momento em que me apresentarei no céu, porque estou contando ir para lá um dia, claro.

Eu fiz um inventário rápido dos vestidos que gostava mais. Depois fiz uma triagem. Eu sentia-me atraída por vestidos de outra época, vestidos de marquesas e de princesas, elaborados e pesados, tipo Sissi, espectaculares, todos brancos, cheios de pérolas, lantejoulas e bordados, uma cintura muito fina, um grande véu, tafetá e transparências e uma longa cauda, evidentemente. Sobre os meus ombros um casaco de peles branco. Na cabeça um diadema ou uma tiara cheia de pedras.

Eu descobria que tinha um gosto retro e nostálgico. [287] Eu não resisti. Eu queria que o meu vestido de noiva fizesse sonhar, a mim primeiro, mas ao público inteiro, o mundo inteiro. Eu acho que os vestidos muito modernos, apesar de muito lindos, não fazem sonhar como os antigos.

Mas entre o meu sonho e a realidade havia muito caminho. Mil e um detalhes escapavam-me. Eu enviava a Mia todo o tipo de desenhos e de esboços num papel, dezenas de recortes de revistas também. Pouco a pouco a imagem do meu fabuloso vestido de noiva ficava mais precisa.

Durante o verão, em Nova Iorque, em Los Angeles, em Londres, em Paris, eu fiz várias sessões de prova de vestidos. Eu vi e provei todos os vestidos mais lindos do mundo que existiam na época. Fomos também ver todos os grandes fabricantes de sapatos, de espartilhos, de jóias e de peles.

Mia chegou, um dia, com duas fitas com dois filmes: Ligações Perigosas, de Milos Forman e A Idade da Inocência, de Martin Scorsese. Michelle Pfeiffer e Glenn Close vestiam nesses filmes vestidos muito semelhantes ao que eu procurava. Eram lindos, comoventes, elegantes. Era um sonho! Mas eu queria mais tafetá, mais pérolas e mais brilhos, mais sonho.

Então seguimos nessa direcção.

No final do verão, quando anunciámos oficialmente a data e o lugar do nosso casamento, 17 de Dezembro de 1994, na basílica de Notre Dame de Montreal, eu já tinha uma boa ideia de como seria o meu vestido de noiva.

Eu tinha agora que fixar as formas exactas, concretas, primeiro em papel e depois fazer esse vestido que tinha sido inspirado por todas as imagens que eu tinha juntado. Mas nem Mia nem ninguém dos seus numerosos contactos em Nova Iorque ou Paris conhecia um costureiro disponível que pudesse rapidamente formar uma equipe de especialistas em pérolas, brilhantes, bordados, rendas, capaz de criar um algumas semanas um monumento desse tipo.

Foi Pierre Lacroix, director gerente do clube de hóquei Colorado Avalanche, contador de piada crónico, grande urso simpático, que encontrou. Ele conhecia, não sei como, uma costureira de Montreal que fazia coisas magníficas, Mirella Gentile. Mia e eu fomos encontrá-la no seu atelier em Saint-Leonard, a este da cidade. E ficamos fascinadas com a experiência dela.

Durante horas, nós falamos do vestido que queríamos e que chamávamos entre nós "Idade da Inocência". Nós mostrámos os nossos desenhos e os nossos recortes de revistas. Eu acho que Mia até a fez assistir aos filmes de Scorsese e de Forman…

Em Setembro, quando eu parti para Paris para dar uma série de concertos no Olympia, um manequim com as minhas medidas exactas ficou no meio do atelier de Mirella. Muitas mãos já se mexiam em volta dele. O tecido, as pérolas, os botões, as lantejoulas e as pedras, os tafetás, tudo tinha sido escolhido e encomendado. O sonho estava a caminho.

Eu tinha encontro marcado com o público de Paris mas também com o autor-compositor Jean-Jacques Goldman, que tinha manifestado o desejo de me escrever um álbum, uma dezena de canções, letra e música. A ideia deixava-nos muito felizes. Goldman é um grande compositor de melodias. Ele saberia levar-me para um universo musical completamente diferente daquele que eu tinha explorado com os produtores americanos.

[289] Ele era considerado em França uma anti-celebridade. Milhões de jovens tinham um culto por ele mas ele recusava sistematicamente em falar dele mesmo nas revistas ou de participar nas coisas mundanas do show-business. Ele quase nunca dava entrevistas. Era o contrário de mim.

A gente encontrou-o pela primeira vez num pequeno restaurante, perto da Ópera, numa tarde de Setembro. Estava um lindo dia quente. Ele chegou primeiro, com jeans e blusa, capacete e botas de motoqueiro.

Eu não sei como mas depressa falámos os três sobre as nossas famílias. Jean-Jacques fez-nos rir muito quando ele se lançou num resumo muito detalhado da minha biografia: a nossa casa de Charlemange, os meus irmãos e irmãs, dos quais ele conhecia a maioria dos nomes, todos os eventos da minha carreira por ordem cronológica… A Sony tinha passado todos esses documentos para ele, assim como recortes da imprensa. Ele tinha estudado tudo minuciosamente.

Discutimos muito pouco sobre o nosso projecto de álbum. Tínhamos primeiro nos conhecido. René gostou muito dele porque ele tinha falado das coisas mais importantes: da família, da vida e da felicidade.

Nós encontramos-nos de novo alguns dias antes da minha estreia no Olympia, num restaurante marroquino e libanês que René conhecia. Dessa vez, Jean-Jacques parecia distraído e nervoso. Apenas a meio da refeição ele tirou do bolso grandes folhas sobre as quais ele tinha escrito, à mão, as letras das suas canções. Ele estendeu-as para mim. Mas depois mudou de ideias:

− Eu vou ficar com elas até amanhã. Vocês virão no estúdio e vão escutar a música junto com a letra.

No dia seguinte, ele estava confiante e relaxado como todos os músicos em estúdio. Ele sentou-se no piano, com uma guitarra nos joelhos. Nós estávamos bem perto dele. Ele deu-nos as mesmas folhas da véspera. E começou a cantar "Pour que tu m’aimes encore".

A três quartos da canção, René e eu estávamos de mãos dadas, chorando. Jean-Jacques não nos olhava. Ele cantou "J’attendais". E depois "Je sais pas". Depois ele parou e virou-se para nós. Ele ficou muito sem jeito quando viu que tínhamos chorado. Ele sorriu com tanta felicidade que nós começamos a chorar de novo, rindo ao mesmo tempo. Durante um bom momento ninguém falou. Depois Jean-Jacques arrancou-me as folhas das mãos, dizendo-me que tinha outra canção na qual ele queria trabalhar de novo.

Ele fez uma cara de catástrofe quando René lhe disse que apenas tínhamos duas semanas, no começo de Novembro, para a gravação. Eu tinha que participar, em Washington, numa emissão especial em honra de Bill e Hillary Clinton, "A Gala for a President". Eu tinha também um último show no Forum de Montreal, uma dezena de dias de promoção no Japão e uma passagem no "Tonight Show". Sem contar com as provas do vestido "A Idade da Inocência".

Jean-Jacques queria ter trabalhado comigo alguns dias antes de entrar em estúdio. Certos efeitos e tiques de voz que eu tinha desenvolvido irritavam-o. Ele achava, por exemplo, que eu fazia bastante floreados. [291] Ele não amava o meu jeito de enrolar os "R" ou de molhar os dentes… Ele disse-me muito francamente o que ele gostava e o que ele não gostava. Ele queria que eu tivesse tido tempo de corrigir o que ele considerava maus hábitos.

− Ela entendeu bem – dizia René. – Você não precisa de trabalhar com ela durante dias. Eu conheço-a. Confie em mim.

É verdade, eu tinha entendido por causa dele. Porque ele tinha um jeito, ao mesmo tempo autoritário e ao mesmo tempo meigo de explicar o que ele queria, porque a sua música exigia, eu sentia isso, uma voz mais sóbria, mais controlada.

Mesmo assim, ele parecia preocupado quando fomos embora. Ele prometeu-nos que os instrumentais estariam prontos. Quando eu entrasse no estúdio, em Novembro, depois da minha série de concertos no Olympia, eu teria apenas que juntar a minha voz à música.

E essa voz, eu nunca a tinha sentido tão flexível e tão poderosa. Ela nunca me tinha dado tanto prazer. Eu estava confiante nela, a minha companheira, a minha irmã, a minha melhor amiga, a minha cúmplice. Ela não podia mais trair-me como ela já tinha feito. Eu falava com ela, fazia elogios, agradecia.

Essa voz que eu amo é, com certeza, o caminho mais curto entre o que tem dentro de mim (as minha emoções, a minha alma, os meus pensamentos, os meus sonhos) e os outros.

Quando eu canto, eu sinto-me ligada com o mundo. É uma grande felicidade que me foi dada…

O Doutor Riley tinha tido razão. Eu tinha precisado de cinco anos para desenvolver essa voz. Mas tinha valido a pena.

No dia da minha estreia no Olympia, quando subi no palco para fazer testes de som, eu vi o meu irmão Michel. Ele tinha-se juntado à nossa equipa há algum tempo. Ele era, como ele mesmo dizia, "o pastor dos músicos". A ocupação dele era planificar as suas viagens, as reservas dos hotéis, dos restaurantes, o transporte dos instrumentos, das roupas de palco, etc.

De pé atrás do meu microfone, ele olhava, com um ar de reflexão, as filas de poltronas e, no fundo, a penumbra, o vazio tão aterrorizador mas tão sedutor. Eu vi-o a inclinar-se, com uma mão no coração, como se saudasse o público.

Depois ele veio para perto de mim e disse-me que tinha realizado um velho sonho, não como ele tinha desejado, mas ele tinha pisado o palco do Olympia. Isso algumas horas antes que eu, sua irmãzinha, sua afilhada, sua antiga fã, triunfasse nele.

− Eu hoje tomei a decisão de não sonhar mais. Eu aceito finalmente que não vou entrar no show-business.

− Mas faz tantos anos que você não canta mais.

− Eu todos os dias sonhava recomeçar. E isso estava destruindo a minha vida. Hoje, finalmente, eu decidi que acabou. Nem todo o mundo tem, como você, a chance de realizar os seus sonhos. Quando a gente não chega aí, o melhor é deixá-los de lado e fazer a sua vida de outro jeito.

Eu estava no momento mais alto dos meus sonhos. Eu cantaria numa das salas mais prestigiosas de Paris, eu vendia milhões de discos e, dentro de semanas, eu casaria com o homem da minha vida.

 

No dia seguinte ao meu último concerto no Olympia, Jean-Jacques deu-me a demo da canção "Vole". Quando escutei eu compreendi porquê ele tinha preferido que eu não escutasse algumas horas antes de entrar no palco do Olympia. [293] Ele sabia que eu ficaria emocionada demais. "Vole" é um pouco como o seguimento de "Mélanie", que Eddy Marnay me tinha escrito alguns anos antes, uma canção que se dirigia a Karine, morta na primavera do ano anterior.

"Vole" iria reavivar essa recordação dolorosa. E faria da minha sobrinha, de certa forma, a madrinha desse álbum, como se ela o tivesse inspirado do começo até ao fim.

Eu sempre considerei D’Eux como o meu álbum mais bem sucedido, mais bem realizado, em todos os pontos de vista. Eu redescobri com Goldman o prazer de cantar em francês. Em inglês, eu quase sempre canto um tom mais alto, espontaneamente, dou tudo o que tenho, muitos floreados e muito poder, por causa da estrutura das canções, por causa da textura dos sons e, claro, por causa do gosto dos produtores e do público. Os americanos adoram os floreados e as piruetas vocais. Na França é tudo mais contido, mais sóbrio, mais pessoal também… As letras são muito mais importantes.

D’Eux, no fundo, é a nossa história, de René e eu. "Pour Que Tu M’aimes Encore", a primeira canção que escutei, a primeira canção que gravei, fez-me pensar logo em "L’Hymn à L’amour", que cantava Edith Piaf. É o mesmo tema, a mesma estrutura, é a mesma mulher devorada pelo amor. É um hino ao amor louco, possuído, possessivo, definitivo, como o meu. Eu sabia, no dia da gravação, que essa canção faria para sempre parte da minha vida.

− Essa canção, eu sinto que você a vai cantar por muito tempo – dizia-me René.

– E pelo mundo inteiro.

Eu cantei-a por todo mundo, de Seul até Estocolmo, passando por Memphis, Dublin, Munique e Edmonton. Eu a amo ainda hoje.

 

Quando voltámos a Montreal para casar, nós tínhamos D’Eux numa fita, um tesouro único que guardámos para nós. Nós escutávamo-lo em casa ou no carro de René, sozinhos, egoístas. Quando eu encontrava amigos, jornalistas, músicos, a todos eu tinha vontade de dizer: "Nós temos um tesouro, um álbum fabuloso".

Mas Sony tinha decidido que D’Eux apenas sairia dentro de alguns meses, para não mexer com as vendas ainda activas dos álbuns precedentes. René e eu prometemos não deixar ninguém escutar. Mas ele estava dentro de nós, dentro dos nossos corações, sentíamos as vibrações, ele fazia-nos felizes.

Dois dias antes do nosso casamento, nós passámos os dois algumas horas no convento das carmelitas. Depois eu fui dormir na casa dos meus pais. Eu passei o dia seguinte no spa com a maman e as minhas oito irmãs, que seriam as minhas damas de honra. Uma armada de massagistas, manicuras e depiladoras e outras pessoas do género ocuparam-se da gente.

[295] Eu sei que não é politicamente correcto pensar assim mas eu acho que, por vezes temos que sofrer para ficarmos bonitas. Quando eu comecei a usar sapatos de salto alto das minhas irmãs, eu tinha dores na barriga da perna, nos calcanhares, nos joelhos, nas costas.

− Azar seu – dizia-me maman. – Você pode usar saltos altos enquanto você quiser. Mas não se venha queixar. A escolha é sua. Assuma-a.

No dia do meu casamento, eu tinha, sem dúvida, razões para me queixar. Mas eu estava empolgada demais. Eu acordei de madrugada, com a minha mãe as minhas irmãs. Estava nevando em Montreal. O tempo estava cinzento e gelado. Eu maquilhei-me sozinha. Para me vestir e pentear, uma nuvem de mãos agitou-se durante horas. O meu cabeleireiro teve que queimar os neurónios e mesmo colocar um coque falso no meu cabelo para instalar solidamente na minha cabeça uma tiara de pérolas que Mirella Gentille tinha feito.

− É pesada demais. Você vai-se machucar.

− Eu não quero saber. Mesmo se você tiver que enfiar espinhos no meu crânio, eu vou levar essa tiara. Eu assumo.

Eu sabia que eu não estaria verdadeiramente feliz naquela festa se não desse o melhor de mim, como num concerto ou numa canção. Para estar feliz e realizada, eu tenho que me entregar. Está na minha natureza. Eu acredito que não temos nada sem esforço, o que vem sem esforço e sem sacrifício não vale a pena.

 

A festa foi grandiosa, uma coisa nunca vista no Québec. Foi um sonho, elegante e romântico, num cenário sumptuoso, na igreja e no hotel.

Havia milhares de pessoas ao longo do caminho para ver as limusinas que saíam do hotel Westin, escoltadas por motos da polícia, para chegar na basílica Notre-Dame. Um tapete azul com as nossas iniciais entrelaçadas começava na rua, atravessava o adro e a nave central até no altar onde René me esperava, rodeado pelos seus padrinhos. Eu entrei pelo braço do meu pai, as minhas oito irmãs levando a minha cauda. Foi magnífico, brilhante e comovente.

Eu pensava, avançando ao som do órgão para o altar, no caminho que tinha percorrido desde que esse amor tinha nascido. Eu sabia que nunca voltaria atrás. Eu iria até ao fim, para o melhor e para o pior.

No hotel, tentamos preparar o clima para dar aos nossos convidados a impressão de que eles estavam em outro lugar, fora do mundo e fora do tempo, como num sonho. A gente caminhava sobre tapetes de pétalas de rosas. A gente entrava numa sala com as paredes e os tetos todos brancos. Brancas também eram as grandes gaiolas onde voavam as pombas imaculadas. A gente passava por uma sala que parecia As Mil e Uma Noites, um bistrô de Paris, um bar de sushi, um saloon do western, um bar de tapas. Havia champanhe e flores por todo o lado. Havia mágicos, músicos, um quarteto de cordas numa sala, uma banda rock noutra… Um casino também, claro, com mesas de blackjack e roleta. E todas as pessoas que amávamos.

Enquanto os convidados entrevam na sala do banquete, ramos de flores caíam lentamente de um céu de estrelas para pousar delicadamente num centro de cada mesa…. Os meus treze irmãos e irmãs rodearam-me e cantaram-me "Que c’est beau la vie" ["Como é bela a vida"].

[295] No Québec, falaram muito sobre esse evento, antes, durante e depois, e com todo o tipo de tom. Alguns disseram que eu fiz demais, que eu estava gastando a minha riqueza, que era uma vulgar operação de marketing.

Mas eu acredito nos sonhos, nos meus e nos dos outros. Se eu pude fazer as pessoas sonhar com essas imagens, melhor. Eu era uma garotinha de Charlemagne com dois grandes dentes caninos que me impediam de sorrir para o mundo. Eu cheguei muito longe, levada pela minha voz, pelo amor da minha família, de René e do público do Québec. Mostrar e partilhar com os outros não é marketing, é gratidão.

Nós devíamos ficar, de seguida, dois ou três meses sozinhos em Palm Beach sem fazer nada. Ou tentar não fazer nada, o que não me parecia nada fácil. Nós sabíamos que estávamos drogados pelo stress e pela pressão.

Mas a meio de Janeiro, apenas um mês depois do nosso casamento, eu já estava em Londres para fazer promoção, de livre e espontânea vontade. Eu tinha tido a grande felicidade de ficar sozinha com o meu querido marido, mas eu não podia ignorar o pedido de Paul Burger, agora chefe da Sony-UK.

O álbum The Colour of my Love, que, há um ano, fazia sucesso no mundo inteiro, mesmo no Japão e na Coreia, não vendia bem naquele território.

Paul ligou para René para lhe dizer que podia conseguir que eu fosse no programa mais importante do Reino Unido, o "Top of the Pops". Se eu aceitasse cantar "Think Twice", por exemplo, ou "The Power of Love", o álbum poderia subir muito nos tops.

René tinha recusado. Mas ele habilmente falou desse assunto comigo. Estávamos na cozinha preparando o jantar.

− Paul ligou… Eu disse que não ia dar… a gente tinha prometido que íamos tirar umas férias…

Eu reflecti um momento. E pedi a René para ligar a Paul falando que eu iria. Eu vi no olhar e no sorriso dele que era isso que ele esperava de mim.

Esse homem, René Angelil, sabe-me enrolar. E o que eu mais quero é que ele seja sempre assim, porque eu sei que ele quer, acima de qualquer coisa, a minha felicidade. Apenas a minha felicidade. Eu nunca duvidei disso.

Eu percebi, semanas depois do meu casamento, que eu tinha-me tornado tanto ou mais ambiciosa do que ele. Eu tinha que admitir que eu não tinha a menor vontade de parar. Nós dois queríamos ir mais longe, mais alto. A viagem era apaixonante, a estrada era linda e a paisagem magnífica.

E mais, cada vez que eu tinha a ocasião de viver um momento tranquilo, eu sentia medos e agonias até no fundo da alma. Eu desenvolvia gripes, problemas de garganta, uma bronquite, um mau jeito na coluna.

Por exemplo, quando eu e René, junto com Pierre e Coco Lacroix, fomos em uma viagem de lua-de-mel, seis meses depois do nosso casamento e depois de uma dura campanha de promoção na Europa e uma esgotante tour na Austrália. A minha principal actividade, naquele lugar fabuloso, certamente um dos lugares mais bonitos para passar férias em todo o planeta, foi espirrar, assoar o nariz, tossir, tentar respirar e limpar a garganta. Eu devia ter dado a mim mesma uma momento de preguiça. Mas eu não era capaz. A pausa e o repouso angustiavam-me. Porquê? Não sei. Eu devia ter horror do vazio, medo do desconhecido, ou do que havia dentro de mim e eu não tinha tempo de ver enquanto estava mergulhada na acção. Essa acção é que era o meu lar, o meu refúgio.

Existe dois tipos de pessoas: as que olham para trás, para o passado, que reflectem muito, que se interrogam sobre o sentido da vida, que pensam na morte e no tempo que passa. E existem aquelas que olham para a frente, as pessoas de acção, que avançam.

Por natureza, e pela força das circunstancias, por deformação profissional, sem dúvida, eu sempre fui daquelas pessoas que olha para a frente. Eu não digo que é melhor, eu constato apenas que raramente olho para trás. Eu não sou o tipo de mulher que sente prazer em analisar tudo, a fazer introspecção, que se interroga sobre a existência.

[299] Voltando das Fiji, eu parei em Calgary em plena época de Stampede, uma imensa feira popular que propõe uma série de atracções. Era poeirenta, desarmoniosa, excitante, cheia de vida. Do nada passou a minha gripe e o meu esgotamento. Eu voltava a gostar da vida, encontrava o meu equilíbrio, a minha energia. Eu amava o clima de festa que reinava no Stampede e eu tinha acabado de conhecer muitas pessoas estimulantes.

Mego, o meu maestro, tinha criado uma nova banda que iria me acompanhar em tour. Ao guitarrista André Coutu, que já estava com a gente há dois anos, se juntavam o baterista Dominique Messier, o baixista Marc Langis e o percussionista Paul Picard. A música era a minha profissão, a minha paixão. Os encontros com os verdadeiros músicos sempre foram marcantes para mim. Esse encontro em Calgary foi também marcante.

A gente não se conhecia. Nunca tínhamos imaginado tocar juntos. Mas, entre nós, a alquimia funcionou desde o começo. Depois de alguns minutos de ensaio, às oito horas da manhã, num palco ao ar livre, na confusão dos preparativos de Stampede, nós encontrámos no nosso ritmo e muito prazer também. Nós sabíamos os seis que faríamos juntos um lindo caminho.

David Foster, que tinha assistido a esse encontro e ao nosso primeiro ensaio, subiu ao palco e pediu aos meus músicos que viesse comigo gravar em estúdio uma nova versão de "All By Myself".

Foi no Record Plant, em Los Angeles. No dia anterior, David informou-me que tinha mudado a orquestração da última parte da canção. Eu devia cantar um pouco mais alto, até ao fá, que fica quase no limite do meu registo. Pior, ele queria que eu segurasse aquela nota por algum tempo. Honestamente, eu morria de medo. Eu sabia que eu não podia fazer duas gravações sem me arriscar a quebrar a voz. David viu o meu medo.

− Se você não conseguir, não tem problema – disse ele – Voltamos para os arranjos originais.

No dia da gravação, René e eu brigamos por uma coisa de nada. A gente sempre briga por coisas insignificantes e depois não nos conseguimos lembrar porquê. Por vezes eu fico amuada durante algumas horas, por vezes durante alguns dias. René mais raramente fica assim. Ele não gosta de ser frio comigo. Ele tenta sempre fazer-me rir.

Nesse dia ele decidiu ficar seriamente amuado e decidiu não ir comigo ao estúdio. Eu parti sozinha, "All By Myself", para o Record Plant, onde encontrei um David Foster frio, condescendente, quase metido, que nem perguntou porque René não estava comigo.

Eu percebi que isso era um jogo. Eu decidi jogar até ao fim. Eu já tinha visto os tons, já tinha feito as vocalizações e o aquecimento da voz. Enquanto os técnicos acabavam de mexer na orquestração, eu andava às voltas pelo estúdio. Eu acho que o David fez de propósito para atrasar tudo, para me desestabilizar mais ainda. Num momento, ele veio para perto de mim e, inocentemente, disse-me:

− Eu sei que você está preocupada mas não se preocupe com esse . Se você não conseguir, tem solução. Eu posso pedir à Whitney para o fazer.

[301] Whitney Houston estava gravando nesse dia no estúdio ao lado.

− Eu sei que ela é capaz de chegar até ao e de o segurar o tempo necessário – disse ele.

Eu não disse uma palavra. Eu entrei no estúdio, eu cantei "All By Myself" com todas as minhas forças, com toda a minha alma. Quando chegou o momento de subir no famoso fá, eu empurrei a minha voz até ao máximo, até doer, e segurei a nota muito tempo, sem falhar. Quando voltei a mim, os músicos do outro lado do vidro estavam levantados para me aplaudir.

Eu saí sem me despedir de David Foster, sem mesmo perguntar ao técnico se estava tudo bem, se era preciso gravar de novo. Eu sabia que tinha conseguido um momento perfeito, um eagle, como se diz no golfe. A noite estava doce. Eu não estava mais brava, eu deixava-me levar pela adrenalina e pela euforia. Eu pensava em René. Eu tentava lembrar-me do motivo da nossa briga. E, do nada, eu percebi.

Quando eu entrei na limusina para voltar ao hotel, eu sabia que David estaria no telefone com ele. E eu imaginava a conversa deles:

"Está feito, René. Foi uma boa ideia você não ter vindo. Ela estava cheia de raiva. Quando ela segurou a nota, a voz dela tomou uma textura que eu nunca tinha escutado. É melhor do que eu poderia ter esperado. Eu envio-te uma fita."

Quando cheguei no hotel, René esperava-me no hall, sorrindo, emocionado. Um motoboy já tinha entregado a ele uma fita dessa gravação, que ele tinha tido tempo de escutar. Eu joguei-me nos braços dele.

Mais uma vez, ele tinha elevado um pouco mais a fasquia, para me dar novos desafios, para me forçar a ir mais além.

Eu tornei-me também mais exigente. Eu não estava satisfeita, por exemplo, com a primeira gravação que tínhamos feitos, dias mais tarde, de "Falling Into You". É uma canção cheia de nuances, meios-tons. Eu achava os arranjos muito violentos e a minha voz pouco fluida. Mas todo o mundo, os técnicos e os autores, mesmo René e David, parecia satisfeito. Eu não disse nada. Mas René viu na minha cara que eu não estava feliz. Nós estávamos no hotel. Ele estava assistindo ao seu golfe na televisão, eu pintava as unhas, quando ele me perguntou o que estava acontecendo.

Eu expliquei. Ele parecia surpreso. Eu então cantei "Falling Into You", descrevendo cada arranjo que eu faria. Ele depressa concordou com a minha opinião. Ele parecia maravilhado, como se ele tivesse feito uma descoberta.

− Mas você tem razão – dizia ele. – Você tem toda a razão. Você devia ter dito!

− Eu não me atrevi. Eu achei que iria ser necessário refazer todos os arranjos e toda a orquestração.

Ele apertou-me nos seus braços. Eu empurrei-o, rindo, porque as minhas unhas não estavam secas.

− Você tem que aprender a se atrever, meu amor. Você tem que aprender a dizer o que você acha.

[303] Ele estava orgulhoso de mim porque eu tinha tomado essa decisão, porque, pela primeira vez na nossa vida profissional, eu tinha-o feito mudar de ideias e, também, porque eu tinha tido uma ideia artística muito boa.

Eu também estava orgulhosa. Eu mesma liguei para o produtor, para o técnico dos arranjos, para explicar como eu via a minha canção, o tipo de mudanças. Eles disseram-me que estavam de acordo e ficaram contentes.

Então voltámos para o estúdio e refizemos "Falling Into You". Essa canção nunca foi uma boa canção de palco, é bastante doce e subtil para envolver uma multidão. Mas é, na minha opinião, uma das mais comoventes do álbum. E eu adoro a letra.

Essa canção marcou uma etapa na minha emancipação. Depois dela eu passaria a ter uma participação muito mais activa nas decisões artísticas. René estava sempre no comando e elevava a fasquia mas ele iria escutar-me cada vez mais. David também. E as pessoas da Sony. Eu estava tornando-me uma artista madura, adulta, autónoma…

Alguns dias mais tarde, voltámos ao Québec para ensaiar o meu novo concerto. Eu parti logo depois para a Europa, sem René, que voltou para Los Angeles, onde, com David Foster, passou semanas a trabalhar no nosso novo álbum.

A gente falava todos os dias ao telefone, de amor e de música. Ele fazia-me escutar as nossas canções novas, mixadas. Ele escutou do começo ao fim os meus primeiros shows pelo telefone. Ele criticava-me severamente, proponha-me ou imponha mudanças na ordem das canções ou nos meus textos entre as canções.

Por toda a Europa, as canções de D’Eux e de The Colour of My Love disputavam os primeiros lugares dos tops. As pessoas da Sony decidiram até atrasar o lançamento de Falling Into You, que eles consideravam o meu melhor álbum em Inglês.

Foi nesse preciso momento que entramos na riqueza, como se entra num país onde tudo se torna possível e acessível. Eu, num sentido, tinha a impressão de ter sempre morado nesse país. Nunca me faltou nada. Eu via bem o nosso ritmo e o nosso nível de vida mudando. Eu viajava sempre em primeira classe e, desde há vários anos, havia sempre uma limusina à minha disposição, eu ficava nos hotéis mais luxuosos.

Alguns anos mais cedo, quando eu li numa revista que era milionária, eu fiquei francamente surpresa.

− Isso é que é ser milionário? Não é não!

Na realidade, o dinheiro era importante para mim na medida em que me permitia dar um bom concerto ou de fazer uma boa preparação. Isso era o mais importante. Se fosse preciso, eu teria viajado em classe económica e vivido em hotéis de segunda classe.

Mas o dinheiro impôs-se. De certa forma, ele fazia parte da minha profissão. Não podemos vencer no show-business sem nos tornarmos ricos. Demais? Não faço ideia. Eu espero apenas nunca perder o sentido dos meus valores.

Um dia, uma jornalista perguntou-me que tipo de vestido eu gostava. Eu respondi espontaneamente:

− Os caros!

Era uma brincadeira, claro. Mas havia um fundo de verdade na minha resposta. Muito depressa eu comecei a gostar das coisas bonitas… que são, geralmente, caras. Eu tive vontade de fazer loucuras. Queria construir a casa dos meus sonhos, uma casa que se pareceria com René e eu. Eu daria o nome de Casa da Felicidade.

A ideia não agradou nada a René. Ele estava perfeitamente feliz na nossa casa de Palm Beach. Ele preferia que eu me convertesse ao golfe ao invés de me lançar num projecto que iria ocupar todo o pouco tempo livre que eu tinha.

− Porque mudar de casa? Estamos bem aqui.

Mas eu já me tinha envolvido. Desde que essa ideia nasceu, não parou de crescer e, no fim, ocupou muito lugar, mais do que eu teria imaginado.

Durante a tour europeia que eu comecei no sul de França e que me levaria para uma dezena de países, eu comecei a cortar imagens de revistas de arquitectura e a olhar à minha volta, nos palácios e nos hotéis, onde eu ficava. Eu observava tudo: as mobílias, as portas, as molduras, as toalhas, os talheres, as janelas… Eu juntava as coisas que, na minha opinião, René gostaria. [305] Eu conhecia os gostos dele, os lugares que ele gosta com o Ceasar’s Palace, em Las Vegas. Eu queria que ele encontrasse esse clima na nossa casa nova.

Eu juntava as minhas descobertas numa pasta com separadores: torneiras, telhas, pavimentação, tapeçarias, fechaduras, cobertas de cama, lustres. Era a beleza que eu carregava comigo para todo o lugar. Isso dava-me um novo sentido e um objectivo à minha vida, à minha profissão, ao meu amor…

Eu estava feliz e em forma. Eu amava a minha nova paixão devoradora. Eu amava o meu concerto, tão bem estruturado. A minha voz nunca tinha estado tão flexível e sólida. Entre os músicos e eu só havia felicidade e amizade. E em breve René viria para perto de mim, Paris, onde preparávamos uma gravação do meu concerto no Zenith, uma sala que eu adorava.

Mas, na primeira noite no Zenith, sem nenhum sinal, sem nenhuma dor, a minha voz cedeu e caiu completamente. Foi o vazio total. Eu chorei. Toda a equipe estava em risco por minha causa. A menor falha dois dias depois e tudo estaria perdido.

Quando eu perdi a voz, anos antes, eu sabia que era culpa da inexperiência e de técnicas vocais desadequadas. Eu tinha treinado as minhas cordas vocais como um atleta treina os músculos, muito seriamente e muito regularmente. Mesmo quando eu fazia silêncio um dia ou dois, eu pensava nelas, eu cuidava delas, eu acariciava-as. Eu via regularmente especialistas e treinadores. Eu segui à letra os conselhos deles.

Eu cheguei à conclusão que isso não era suficiente. Os factores exteriores podiam ser a causa. Não chovia há semanas em Paris. O ar estava seco e a menor ventania levantava nuvens de poeira na rua… Nada pior para as cordas vocais. Eu devia ter sabido. De facto, eu sabia. Eu não tinha nada que ter saído para ir em todas as boutiques da cidade. Isso magoava-me. Era tudo culpa minha, minha grande culpa. Eu não tinha sido prudente, nem paciente. E agora estava sendo castigada.

Ninguém entrou em pânico. Tudo deu certo, por milagre, porque Deus me ama, porque as minhas cordas vocais estavam em boa forma. A minha voz rapidamente melhorou. Eu rezei, eu agradeci. E eu jurei que isso nunca mais iria acontecer.

Mas eu iria viver mais do que nunca como uma reclusa, longe do mundo, muitas vezes muito sozinha. Eu não tinha medo, eu tinha o meu amor, eu tinha o meu projecto para a casa nova, eu tinha a minha música…

 

No começo do verão de 1997, eu fiz a minha primeira tour nos grandes estádios da Europa, oito concertos em sete cidades: Dublin, duas vezes em Londres, Amesterdão, Copenhaga, Bruxelas, Berlim e Zurique. Era a última parte da tour "Falling Into You", que tinha começado no início de 1996.

Essa tour devia, no começo, durar apenas 6 meses. Mas muitas vezes a remarcamos e alongamos, para terminar em Zurique, mais de um ano e meio depois da estreia que tinha tido lugar no outro lado do mundo, em Sydney, ou em Perth, eu acho.

Essa longa tour, cheia do começo até ao final de imprevistos e surpresas, ficará para sempre entre as minhas melhores recordações. Nós vivemos altos e baixos, nós vivemos verdadeiros dramas mas também momentos inesquecíveis, extraordinário. [307] Nós aprendemos e crescemos muito.

Para mim, essa tour foi igualmente a história de uma cura. Eu fiz algumas descobertas importantes que iriam mudar a minha vida, o meu ritmo.

No começo, na Austrália, no leste dos Estados Unidos e no oeste do Canadá, eu cantava em arenas com 15 a 20 mil pessoas. Depois nos palcos abertos, por todo o sul, centro-oeste e oeste dos Estados Unidos, onde cabem de 20 a 40 mil pessoas, por vezes mais. Finalmente veio a proposta de fazer os estádios da Europa, de 40 a 60 mil pessoas em cada. Era cada vez maior. A equipe que me acompanhava no começo era de quarenta pessoas (músicos, técnicos, catering, publicistas) e, para a grande final europeia de 1997, já eram perto de 100.

Ao longo do caminho, tivemos que adaptar o palco, o som, as iluminações, todos os aparelhos técnicos. E o show foi adaptado também, a certo ponto. Ao mesmo tempo, eu tinha que fazer trabalhos extra, como a canção tema dos Jogos Olímpicos de Atlanta, participações nos Óscares, Grammys, Victoires, ADISQ, World Music Awards. E tinha que começar a preparar a gravação de um novo álbum, gravar 3 ou 4 videoclipes, participar em programas especiais, fazer promoção em todo o lugar, dar dezenas de entrevistas, concertos privados também, em Las Vegas, Atlantic City, diante do Sultão do Brunei ou em Montreal, todos os anos, um pouco antes do Natal, para angariar fundos para a Fibrose Cística, etc.

Até aos jogos de Atlanta, tudo estava maravilhosamente bem. Nesse dia, estávamos muito nervosos. Como sempre, eu decidi ignorar, de negar o meu medo, de esconder o medo de todo o mundo, mesmo de mim, especialmente de mim. Se eu tivesse deixado transparecer, esse medo teria-me esmagado.

 

Eu escutava René dizendo aos seus amigos ao telefone que eu estava em plena forma, que nada me assustava. É mentira. Eu tinha medo, medo terrível. Subir num palco num estádio gigantesco, diante de todas as câmaras de televisão do mundo, é sempre assustador. É como saltar para o vazio. E quanto mais gente e mais câmaras, maior é o vazio e maior é o medo.

O estádio estava cheio até arrebentar, 85 mil pessoas, mesmo durante os ensaios e testes de som. Ao telefone, maman disse que não tinha desejado vir porque tinha sentido muito medo, ela preferia ver-me na televisão. Isso contribuiu para aumentar o medo e a pressão.

Há muita música em Atlanta e vozes magníficas. O coro que me acompanhava era um dos melhores que já escutei. É a terra do gospel, de Martin Luther King e do famoso "I have a Dream" [Eu tenho um sonho]. [309] Não era por acaso que a canção que David Foster tinha escrito para a ocasião falava desse tema do sonho, "The Power of the Dream".

Quando eu a interpretei, no começo da noite, ao longo da cerimónia de abertura, eu estava, e tinha consciência, do público mais vasto alguma vez reunido. Falávamos de quatro bilhões de pessoas pelo mundo inteiro, mais de metade da humanidade.

Quando comecei a cantar, o meu medo desapareceu. Eu senti-me muito bem, muito leve. Durante muitos dias, eu vivi na euforia dessa experiência formidável mas eu sentia também um grande cansaço e, por momentos, eu ficava sem respiração. Eu estava dolorida, como um jogador de boxe, mesmo um vencedor, depois de um longo combate.

Duas ou três semanas mais tarde, e tive os primeiros sintomas de um mal que iria ocupar o meu corpo e a minha alma durante vários meses. Eu achei que isso fosse passar dentro de alguns dias. Eu não falei disso a ninguém. Mas em Las Vegas, uma noite, eu comecei a preocupar-me.

Eu cantava "Quand On N’A Que L’Amour" diante do público do Ceasar’s Palace. Uma equipa da Rádio-Canadá veio de Montreal para gravar essa canção que seria inserida no dia seguinte num grande programa apresentado no Centre Molson para angariar fundos para os sinistrados de Sanguenay. Algumas semanas antes, durante a cerimónia de abertura dos jogos de Atlanta, enquanto eu cantava "The Power of the Dream", essa região do Québec tinha sido inundada. Os rios e os lagos tinha transbordado, as barragens tinham cedido, as pontes, as estradas, as ilhas e as casas tinha sido levadas pela água. Québec e o Canadá tinham-se mobilizado para ajudar as vítimas.

Eu tinha preparado um pequeno texto de compaixão e encorajamento que eu queria oferecer depois da minha canção. Mas, enquanto cantava, eu senti um enorme peso, como uma mão de ferro apertando o meu coração. A minha voz começou a tremer. Eu consegui terminar a minha canção mas tive que encurtar o meu discurso, com medo de me desfazer em lágrimas ou de começar a soluçar.

Eu estava comovida, é claro, como fico sempre quando falo de tão longe das pessoas da minha província. Mas eu estava cansada e percebia, com terror, que esse mal que eu sentia há algum tempo durante a noite, agora vinha-me incomodar até no palco, debaixo das luzes. Eu disse a mim mesma que isso iria acontecer por muito tempo.

Em Denver, na semana seguinte, foi pior do que em Las Vegas. De pé eu estava constantemente atordoada. Eu não conseguia engolir o que quer que fosse. Eu nem ia mais na cozinha, o menor cheiro de comida enjoava-me. Quando eu me deitava, eu ficava com refluxo gástrico e náuseas. Se eu conseguia dormir, eu tinha pesadelos horríveis. Eu sou do tipo de pessoas que tem sonhos recorrentes, eu vejo a mesma sequência várias vezes.

Quase todas as noites eu sonhava que tinha engolido uma maçã que ficava presa na minha garganta. Uma grande maçã dura e fria que não me deixava engolir nem respirar. Eu acordava aterrorizada. Ficava horas sem dormir, com a sensação da maçã na garganta. Eu nunca me tinha sentido tão vulnerável e impotente. Eu sentia sempre esse peso, essa pressão, como uma tristeza dentro de mim. [311] Eu não engolia mais do que biscoitos de água e sal. Eu dizia a mim mesma que, em breve, eu não teria mais energia para dar um bom concerto.

Uma manhã, em S. Francisco, as coisas pioraram bruscamente. Suzanne e Manon ligaram para René, que estava numa clínica no Arizona, onde tentava curar os seus maus hábitos alimentares. Ele cancelou três ou quatro shows que eu devia fazer nos próximos dias na costa Oeste americana. E eu fui hospitalizada.

Os três médicos que me viram descobriram logo a origem do meu mal: excesso de stress, sem sombra de dúvida. Eles informaram-me que os medicamentos que me dariam não fariam efeito sem que eu repousasse.

O que faz uma menina quando ela se sente esgotada e precisa de repousar? Ela chama a sua maman.

− Maman, maman, o seu bebé precisa de você.

 

A minha mãe veio encontrar-me na Florida. Não estava nada preocupada, estava determinada. Durante quase um mês ela cuidou de mim como uma loba. Eu soube mais tarde que ela foi intratável. Ninguém me podia incomodar quando eu descansava, entre 12 a 15 horas por dia. Mesmo René não tinha o direito de me falar de trabalho durante esse tempo. Nem uma palavra sobre a tour interrompida, sobre os projectos adiados, sobre a promoção, o álbum em francês e em inglês em preparação…

Maman deitava-me na cama de noite, levava-me para passear depois da minha sesta da tarde, ela preparava-me sopas, tisanas, saladas de fruta…

Ficámos sozinhas durante horas, dias. Mesmo papá saía com os amigos para nos deixar sozinhas. Ela falava-me da sua infância, da qual eu conhecia pouco. E depois da minha, que ela me tinha contado pelo menos cem vezes mas eu adorava escutar. Todos os filhos dela são assim, eu acho.

Eu não sou do tipo de pessoa que se agarra a velhas recordações mas eu sempre tive vontade de escutar a história do meu nascimento e a minha infância. Eu gosto quando a minha mãe me conta vezes sem conta a briga que ela teve com o meu pai quando soube que estava grávida de mim. E como ela derreteu quando a enfermeira me colocou nos braços dela.

A minha mãe teve uma vida bem diferente da minha. Ela nasceu a 20 de Março de 1927, numa pequena vila de pescadores situada do norte de Gaspésie. O seu pai era sacristão e corista na igreja. Ele tinha obtido do governo uma terra de colonização, longe, a uma grande distância do mar. Com os seus filhos, ele abriu o caminho, construiu uma casa de madeira, um estábulo e um porto. Durante os primeiros nevões ele voltou para pegar a família.

Numa carroça puxada a cavalo, eles instalaram pacotes com roupas, de cortinas, de cobertas e de lençóis, algumas mobílias, barris com peixe seco, toucinho salgado, melaço, farinha e chá, seis galinhas numa gaiola, uma vaca seguia.

[313] A minha mãe tinha 5 anos, foi sentada em cima das peles com as suas irmãs: Jeanne, Annette e Jacqueline. Ela ficou maravilhada.

− Eu tinha 5 anos, foi a viagem mais linda da minha vida.

Escutá-la falando da sua infância, da floresta e do céu de Gaspésie, da vida tão calma que eles viviam lá, da música que o seu pai fazia, os seus irmãos também, do seu primeiro violino, tudo isso me relaxava, me fazia esquecer o meu mal. Ela teve uma infância e uma juventude felizes, prova de que o conforto material e a riqueza não criam a felicidade, ela vem do fundo de nós…

No final de Setembro, quando eu parti para a Europa, eu estava bem melhor. Eu ainda sentia aquela tristeza lá dentro mas estava mais forte. Eu comia com apetite. O mal, pouco a pouco, afastava-se de mim, não vinha mais me incomodar quando eu cantava. Cada vez que eu estava no palco ou num estúdio de televisão, eu sentia-me perfeitamente bem. Nada de tristeza nem peso no coração. Quando eu saía do palco, eu via que ele me esperava. Mas não era mais forte, era apenas um pequeno aperto que me fazia cócegas timidamente. Eu conseguia-o esquecer por longos momentos.

Eu comunicava com a minha mãe todos os dias, depois eu passava ela a Manon, Suzanne e René. Sobre as suas ordens, eles mimavam-me, preparavam-me chás e sopas e saladas de legumes e frutas e forçavam-me a repousar mais do que eu precisava.

Até que, um dia, a bordo do avião que nos levava através do céu da Europa, eu voltei-me de repente para Manon e Suzanne, muito empolgada, e assinalei (porque estava num dos meus dias de silêncio) que o peso tinha ido embora de vez. Fazia já algum tempo, alguns dias, quem sabe uma semana, que eu não pensava mais nisso, que eu tinha esquecido completamente. Eu estava dormindo bem, eu estava comendo bem e estava cantando bem.

Eu estava aliviada. Eu tinha esquecido o meu mal e ele tinha ido embora. Eu pensava no que o meu pai dizia, quando eu era criança e mostrava um dói-dói que eu tinha:

− Não penses mais, minha querida, e não vai doer mais.

Eu já era grande o suficiente para saber que as coisas não acontecem assim. Esquecemos a nossa dor quando ela se faz esquecer, não antes. Quando está dentro de nós, pensamos nela sem parar, querendo ou não. Quando não pensamos mais é porque acabou.

Alguns dias mais tarde, em Estocolmo, eu fiz um teste. Eu, que nunca bebo álcool, fiz uma festa com os músicos. Comi comida pesada e temperada e depois fomos num bar onde bebi tequila, muita tequila... sem sentir nada de mal. Nem mesmo no dia seguinte de manhã. Eu estava curada e feliz.

A tour continuou num ritmo infernal, voltámos para a América, depois a Ásia no inverno… e, para acabar, de novo na Europa, essa inesquecível tour dos estádios, foi mágico.

Fomos em Junho. Fazia frio e chovia tanto que se podia beber quase todos os dias, de um lado ao outro do continente. Mas, onde quer que fossemos, duas horas antes do show, a chuva parava e o sol vinha secar e aquecer os assentos. Sistematicamente. Por causa disso, e por todo o tipo de motivos, nós estávamos todos num estado eufórico.

[315] Preso no Québec ou nos Estados Unidos por causa de negócios, René não nos acompanhou à Austrália, nem ao Japão, nem à Coreia, nem ao Brunei. Mas, pela tour dos estádios da Europa, ele juntou-se a nós. Eu acho que nunca nos tínhamos sentido tão felizes. Eu não falo apenas de nós dois mas também de todas as pessoas à nossa volta, os músicos, os técnicos, a centena de pessoas da nossa tribo nómada. A atmosfera era genial.

Nós sabíamos que essa tour estava chegando ao fim, que em breve voltaríamos para casa, rever os rostos e as paisagens familiares. Apesar da chuva e do frio, essa longa viagem terminou em beleza. Os estádios estavam cheios de lindas multidões, calorosas e felizes também. Por todo o lugar era uma festa.

René disse a um jornalista francês que nos encontrou em Amesterdão que o nosso sonho, pela primeira vez, estava-nos escapando. Era mais rápido do que nós, mais louco do que nós, mais maravilhoso do que tínhamos imaginado. Não precisávamos mais forçá-lo, agora nós éramos levados por ele.

René não tinha previsto essa tour dos estádios, nem nos seus cenários mais ousados. Eu muito menos, evidentemente. Tinham sido jovens produtores (Belgas ou Holandeses) que tinham insistido junto de René para que ele aumentasse essa tour. Segundo ele, isso marcava uma mudança na nossa vida, na minha carreira. Tínhamos chegado ao outro lado do sonho…

Nessa primavera a nossa vida mudou, deu a volta… E tudo aconteceu tão depressa que mal tínhamos tempo de perceber o que estava acontecendo.

Há pouco tempo eu via Madonna, Whitney Houston ou Tina Turner em tour por estádios por todo o mundo. Eu invejava-as por estarem lá no topo. E agora eu estava lá também, nesse clube muito restrito que a media chama "divas da pop". Eu viajava num avião privado. Eu vivia nos palácios mais magníficos. Estávamos no topo.

− O que vamos fazer agora? Para onde vamos?

Eu não fazia a menor ideia. Eu apenas sentia que teríamos que parar um dia para completar o ciclo, para olhar para o caminho percorrido, para levar para a frente a ideia da casa dos meus sonhos. Esperando, eu deixava-me embriagar pela velocidade, pelas grandes multidões…

Fora as compras, eu tinha poucos divertimentos quando estava em tour. Nos meus dias de silêncio eu podia passar horas vendo revistas de moda. Eu cortava várias imagens e mandava por fax para a Annie Horth, a minha estilista. Ela inspirava-se para me criar roupas de palco.

Para mim, a moda tornou-se, pouco a pouco, num mundo quase tão vasto e apaixonante como a música. Cada um de nós, todos os dias canta o seu "refrão da roupa". Uns cantam mal, outros cantam bem. Mas todos, querendo ou não, banham-se na moda, todos somos marcados por ela.

Desde há quatro ou cinco anos que Annie Horth tem sido a minha colega e cúmplice. Ela vê todos os desfiles, todas as colecções, ela conhece todo o mundo, ela entra nas boutiques de todos os costureiros da Europa e da América, ela sabe sempre o que vamos vestir amanhã e depois de amanhã, ela sabe o que eu gosto e o que me fica bem.

De vez em quando ela aparecia. Ela chegava a Amesterdão, a Los Angeles, a Chicago com um monte de roupas que ela tinha escolhido das últimas colecções de grandes costureiros. Passávamos horas e horas, ela e eu, vendo tudo, experimentando, comentando.

Eu amava de verdade a vida de tour, mesmo se, em alguns dias, não aguentamos mais e tudo o que queremos é ir para casa pelo caminho mais curto. Em cada tour há sempre altos e baixos, surpresas… Mas sempre se cria um espírito, um clima extraordinário. Por vezes, algum tempo depois de voltarmos a casa, a gente sente saudade da vida de nómadas, desse clima que, especialmente no final, reinava entre a gente.

René sempre sabe fazer a festa. Eu também, é de família. E eu sou muito mais doida do que ele. Eu amo fazer palhaçadas, mesmo quando estamos os dois sozinhos, pelo simples prazer de fazer ele rir. Se alguém da minha família está presente, Michel, Dada, Ghislaine, Manon ou Claudette, a gente pode improvisar durante horas teatrinhos completamente absurdos. René não participa mas ele é um óptimo público.

Antes de um concerto importante, quando todo o mundo morria de medo, Manon e eu cavamos sempre um jeito de desencadear torrentes de risada. Em Atlanta, por exemplo, alguns minutos antes de entrar no palco para cantar "The Power of the Dream", diante de bilhões de pessoas, ela começou a falar do concerto que eu tinha feito, dez anos antes, no Vieux-Port do Québec, quando milhares de besouros me entravam na boca e no nariz e entravam debaixo da minha saia. Num dia normal, teríamos sem dúvida achado isso engraçado. Mas todo o mundo estava tão tenso no camarim e nos bastidores… bastava imaginar-me mordendo asas de besouros ou contorcendo-me porque eles me faziam cócegas nas coxas, fez com que umas risadas loucas tomassem conta de mim e de Manon, até que nos vieram dizer: "Madame Dion, dois minutos".

[317] Cada dia, não importa onde estamos, precisamos da nossa dose de risadas. E, em tour, René prepara momentos em que estamos todos juntos. Ele achava que a camaradagem é necessária e agradável, é o coração da vida, é para reforçar os laços entre todos nós.

Na véspera dos dias em que eu não cantava, ele organizava verdadeiros banquetes, fosse num hotel da cidade, fosse na nossa suite ou em outro lugar, num chalé nas montanhas, perto de Zurique, uma cabana que ele alugava para quinze pessoas que constituíam o que chamávamos, a nossa tribo. E passávamos a noite no Sena, no porto de Amesterdão ou na baía de Hong Kong.

Estavam sempre presente Suzanne, a minha directora da tour, a minha irmã Manon, minha confidente e cabeleireira, Éric, meu guarda-costas, os quatro ou cinco braços direitos de René, responsáveis pela organização da tour, os publicistas, por vezes pessoas da Sony, a nossa editora, pessoas da produção local…

Várias vezes, especialmente durante as duas últimas tours, amigos do Québec vinham passar alguns dias com a gente. Alguns deles, claro, eram os parceiros de golfe de René: Marc, Paul, Rosaire, Guy… Por vezes, especialmente em Paris, em Nova Iorque, na Florida, em Las Vegas, os meus pais vinham… E a Anne-Marie também, a filha querida de René. Por vezes Jean-Pierre também se juntava a nós por alguns dias. Ele encontrava o seu pai, a sua irmã e o seu irmão mais velho, Patrick, que trabalhava com a gente como assistente de produção. Nós formávamos uma tribo feliz e René, como bom chefe, ocupava-se de nos divertir e de nos alimentar.

Durante o dia, ele pedia os menus dos bons restaurantes da cidade onde estávamos: chineses, indonésios, japoneses, italianos, franceses, libaneses, marroquinos, tailandeses. Ele lia todos, com muita atenção, como quem lê romances ou poemas.

Para René, uma refeição é um espectáculo, uma cerimónia. É um jeito de reunir todo o mundo no mesmo comprimento de onda e de criar laços.

Ele ama comer. Tudo. E demais. Ao ponto de às vezes isso se tornar perigoso para a sua saúde. É mais ou menos como o jogo. Quando ele começa ele não sabe parar, mesmo sabendo que, quando ele acabar de jogar ou de comer, ele vai ter remorsos e preocupação e mesmo doenças.

Depois do seu ataque cardíaco, em Los Angeles, eu fiquei habituada a vigiá-lo. Isso tornou-se um jogo entre nós dois. [319] Ele é o rato e eu sou o gato. Eu vejo-o inventar todo o tipo de truque para escapar à minha vigilância. E eu vejo-o também procurando a companhia de outros grandes gulosos.

Não é surpresa que ele depressa se tornou amigo de Luciano Pavarotti. Alguns dias depois da gravação do dueto "I Hate You Then I Love You", Luciano convidou-nos a jantar no seu apartamento de Nova Iorque. Ele mesmo tinha preparado os antipasti, as massas, a carne… Entre René e ele, foi um verdadeiro torneio. Eles falaram durante horas. Pavarotti viaja com o seu azeite, com os seus queijos, com o seu vinho, etc. Em Nova Iorque, em Modena ou em Roma, ele mesmo faz as suas compras, escolhe as suas carnes, as suas frutas. René ficou maravilhado.

Eu tenho a certeza que ele ainda se lembra, dois anos depois, de tudo o que ele comeu naquela noite. Ele tem uma memória fenomenal para essas coisas. Eu lembro-me da surpresa de Pavarotti quando René lhe disse que, depois de um copo ou dois de vinho, ele prefere Coca-Cola Light. René não gosta de vinho, nem de cerveja, nem de álcool algum.

O seu médico recomendou que ele bebesse um copo de vinho tinto de vez em quando. Ele faz isso, mais à tarde do que de noite, ele engole o seu copo como se fosse um medicamento. Depois disso, mesmo que a gente esteja num restaurante Chinês ou num bistrô Francês ou num deli de Nova Iorque, ele pede sempre uma Coca-Cola Light ou duas, com muito gelo.

De vez em quando ele vai passar uns dias numa clínica para pessoas que comem muito… Muitas vezes ele vai acompanhado por um amigo, Marc Verrault ou Pierre Lacroix, ou o seu primo Paul Sara. E, durante uma semana, eles se encorajam uns aos outros.

Ele conta-me pelo telefone que acordou às 6 da manhã, que foi caminhar no deserto com Marc, que eles comeram fruta ao almoço e peixe ao jantar (250 gramas) e uma dúzia de feijões verdes, nada de Coca-Cola Light, nada de manteiga… Durante a tarde eles assistem a conferências sobre a nutrição. Gurus da motivação tentam incutir neles boas ideias.

René adora essas conferências. No ano anterior, num Spa de Arizona, ele ficou fascinado pelas teorias de um psicólogo especialista em nutrição, que dizia: "É você que decide. Ou é o seu corpo." René ficou seduzido por essa ideia.

Ele seguiu o seu regime religiosamente durante algum tempo. Depois ele esqueceu e voltou a comer. Contrariamente a mim, ele não é muito disciplinado nem perseverante nesse tipo de coisas. Quando os seus amigos lhe lembraram da fórmula do psicólogo, René respondeu, rindo, que era ele quem estava decidindo.

− Eu tenho que aprender a delegar. Eu decidi deixar o meu corpo tomar conta dessa parte. Eu tenho outras coisas para me ocupar.

Depois de um momento de reflexão, ele dizia:

− No fundo, eu não estou muito orgulhoso da minha decisão.

Todo o mundo ria. Eu era a primeira. Mas eu também não estava orgulhosa. Eu tenho uma atitude muito especial com o meu marido quando o assunto é a gula dele. Ele é um pouco gordinho mas é lindo. A barriga fica bem nele. Eu apenas acho que ele come demais. Mas, ao mesmo tempo, o prazer que ele tem ao comer deixa-me comovida. Mesmo sabendo que é para o bem dele, é penoso para mim privar o homem que eu amo desse prazer, do mesmo jeito que não gosto de o arrancar das mesas de jogo.

Pessoalmente, eu não faço excessos na mesa. Não é difícil para mim, eu não tenho prazer nenhum em comer quando não tenho mais fome.

Várias vezes escreveram que eu tinha anorexia e que eu me alimentava de folhas mortas, de tofu, de sementes e pevides. Isso irritou-me muito. Eu preferia não ter lido isso na media: mulher maníaco-depressiva e psicótica.

Eu nunca entendo a necessidade de inventar essas histórias. Para quê atribuir às celebridades do show-business, do desporto e da política, características que elas não têm? Para quê dizer que elas viveram coisas que elas não viveram nem têm a menor vontade de viver? Eu acho que a realidade e a vida de seja quem for é mais interessante do que esses rumores infundados e dessas mentiras evidentes e hipóteses cada uma mais bizarra do que a outra.

Eu não penso, nem por uma fracção de segundo, que a anorexia seja uma doença vergonhosa. Mas eu detesto ser rodeada de rumores e mentiras, não ser percebida como eu sou. Mesmo não sendo uma rainha de beleza, eu sempre tive orgulho do meu corpo.

O meu corpo é flexível, musculoso, sólido e tem boa saúde. Eu sei do que estou falando, vivo dentro dele há 32 anos. Eu não me acho magra. Eu sinto-me bem nesse corpo. Eu acho que a disciplina existe por um motivo. A disciplina cria conforto, bem estar, dá boa forma e boa saúde.

Um trabalho como o meu exige boa forma física. Eu não poderia fazer 100 concertos por ano e viajar pelo mundo inteiro se tivesse comido demais ou pouco ou se, como alguns falavam, me fizesse vomitar depois das repetições. Eu cheguei a comer por dois, especialmente no final da tour "Falling Into You". No começo eu sentia-me frágil mas acabei sólida e em excelente forma.

 

[321] A nossa tour foi além das nossas esperanças. Tínhamos falado seriamente de parar um ano, uma grande pausa que René e eu faríamos, na nossa casa, tranquilos. O meu projecto da casa nova apaixonava-me mais a cada dia. Eu pensava nisso sem parar.

Eu sabia de cor todos os projectos que tinha dado aos meus arquitectos. Eu mandava regularmente pastas cheias de recortes de revistas de arquitectura a Johanne Dastous, a mulher de Paul Sara, a minha conselheira na decoração. Ela tinha passado uma parte do inverno vendo essas imagens, lendo os comentários que eu tinha escrito:

"Eu adoro essa poltrona mas não gosto das cabeças de leão no encosto" ou "Eu acho que a luz dessa sala é boa mas não gosto das cortinas" ou "Eu gostaria de ter estátuas iguais a essas no meu jardim mas sem a cara idiota que essas têm."

Pouco a pouco, como o meu vestido de noiva, a imagem da decoração da minha casa tornava-se precisa. De vez em quando, Johanne reunia na minha casa um monte de objectos que ela encontrava em antiquários e passávamos horas vendo e tocando. Eu aprendi o nome dos estilos, a distinguir o verdadeiro do falso, o belo do banal. Era como voltar à escola. Eu adorei isso.

Através desse trabalho, eu aprendi um pouco mais sobre mim e desenvolvi o meu gosto, exprimi o meu gosto. Eu gosto de decorações românticas, o rococó, o estilo Louis XV. Eu preciso de um clima suave, cores quentes e mobílias antigas. Eu acho que temos que respeitar os nossos gostos, senão escolhemos os dos outros e nunca nos sentimos em casa. Eu quero casas que se pareçam comigo.

Eu perguntava várias vezes a Johanne o que ela achava das minhas escolhas. Ela respondia-me lembrando-me que eu gosto de sobremesas muito açucaradas. Eu percebo o que ela quer dizer. Eu gosto de decorações carregadas, muito pesadas, envolventes, macias.

− No fundo, você gosta de um casulo – dizia-me ela. – Você não é muito moderna.

Um dia chegarei ao moderno. Mas não dentro da casa onde vou viver. Se eu tivesse um apartamento em Nova Iorque, por exemplo, onde eu vivo para trabalhar em estúdio ou para gravar videoclipes ou para fazer compras, eu iria bem longe na modernidade. Mas para a vida de todos os dias, é um universo que me parece frio e desconfortável. Pode ser bonito mas não é caloroso ao meu gosto.

Eu não gosto que os objectos funcionais, que geralmente encontramos nas casas modernas, estejam à vista. Na minha casa, as televisões estão sempre escondidas atrás dos armários, atrás de quadros ou de telas. Eu sei que uma cozinha é quase como uma fábrica. Mas eu não quero panelas ou utensílios pendurados por todo o lugar. Nem gosto de geladeiras com portas transparentes que deixam ver o que tem dentro.

O meu projecto de casa nova que eu adorava tanto parecia irritar René. Ele gostava muito da nossa casa de Palm Beach e, eu acho, ele ficaria feliz lá até ao fim dos nossos dias. E mais, ele tinha comprado no outono anterior, um imenso terreno de golfe, Le Mirage, em Basses-Laurentides, a uma meia hora do centro da cidade de Montreal. Ele já tinha mandado começar os trabalhos de renovação. Ele falava em construir lá uma casa para passarmos a nossa velhice. Mas, contrariamente a mim, ele não se implica de verdade nesses projectos.

Ele não compreendia essa mania que eu tinha, desde há um ano, de quebrar a cabeça com projectos que eu poderia confiar a outros. Era exactamente como o meu vestido de noiva. Eu procurava a minha casa nas revistas, nas boutiques, nos antiquários, nos hotéis, nas casas dos nossos amigos quando os visitávamos.

Eu perguntava de onde tinha vindo esse ou aquele enfeite, quem tinha pintado as paredes, etc. Muitas vezes as pessoas não sabiam responder. Essas pessoas viviam em decorações que já tinham sido compradas prontas, que tinham custado fortunas mas que não tinha nada a ver com eles. Eu não queria nada disso. Eu estava totalmente presa no meu projecto que me dava muito prazer.

Apesar da falta de interesse de René, compramos um grande terreno em Jupiter, no norte de Palm Beach, ao longo de um canal que dá para o mar. [323] Não havia nada lá, apenas ervas e mato. De cada lado tinha um palácio, com um porto atrás, com um iate de vinte metros lá preso…

Johanne formou uma equipa de arquitectos e artistas, que fizeram planos a partir de todos os documentos que eu tinha juntado. No começo do verão, quando voltámos a Montreal, eu compreendi que o meu trabalho estava terminado. O trabalho de Johanne e dos seus arquitectos tinha começado. Eu apenas tinha que esperar. E por isso fui ter aulas de golfe.

Quando acabamos a tour, eu comecei a jogar golfe intensivamente, quase excessivamente. Todos os dias, com bom tempo ou com mau tempo.

René considerava isso uma vitória pessoal. Há anos que ele tentava converter-me a esse desporto, uma verdadeira religião para ele.

− O golfe foi feito para você. Você tem tudo o que é preciso. Você é alta e flexível, você tem um excelente poder de concentração, muita disciplina. E mais, é um desporto bom. Você passa o tempo em jardins bem cuidados, tem sol, água e tudo o que você ama.

Eu vivi perto dele, eu fui formada por ele. Por isso eu fui marcada pelo espírito do golfe muito antes de segurar um taco na mão. Eu entrei nesse universo como se eu voltasse para casa depois de uma longa ausência. Eu não sabia até que ponto esse desporto iria tornar-se numa grande paixão e mudar a minha vida.

O golfe é mais do que um desporto, é uma forma de vida, uma disciplina que exige muita determinação e rigor. É uma busca constante pela perfeição, pelo equilíbrio, uma reflexão sobre a felicidade. Antes de mais, é aprender sobre nós mesmos. Como o canto, a música, como qualquer arte, qualquer profissão que façamos com seriedade e paixão.

No golfe existe uma ordem e um ritual muito forte, um conjunto de regras que cada um deve respeitar… eu não conhecia muito bem as religiões mas eu diria que o golfe se aproxima do zen. É tipo uma meditação, uma concentração. É a busca pela beleza, a beleza dos lugares mas também a beleza e a harmonia dos nossos movimentos e dos nossos estados de alma.

Cada um deve aprender a controlar, a dominar as suas emoções, gestos, força. É esse o jogo. Temos que lidar com o vento, com os acidentes do terreno, com o sol… mas também, e acima de tudo, com os nossos humores, as nossas preocupações, os seus entusiasmos de alegria, fazer com tudo isso alguma coisa harmoniosa. Cada partida de golfe é uma viagem no espaço e no interior de nós.

Bater numa bolinha branca é como lançar uma nota no grande espaço de um estádio. É preciso ter imensa concentração, temos que estar bem preparados, temos que visualizar, marcar bem o alvo…

O golfe mudou-me. Eu durante muito tempo detestei as manhãs. Ou então elas tinham que ser muito calmas e silenciosas.

Eu ainda não sou do tipo de pessoa de amar as manhãs. Eu não tenho vontade de rir ou de falar, nem de ouvir outros falando como máquinas. Mas estou acordando muito mais cedo. Eu começo a gostar das manhãs, a alvorada, o canto dos pássaros e o cheiro da grama molhada.

No outono, foi uma maníaca do golfe que partiu para Nova Iorque e para Los Angeles gravar as canções de Let’s Talk About Love. René tinha planificado a agenda das minhas gravações para que pudéssemos passar pelo menos um dia a cada dois no golfe. Mas, depois de uma semana de trabalho, a música venceu. A cantora apanhou a golfista… prometendo que elas voltariam a encontrar-se em breve. [325] Eu ficava sozinha no hotel, eu tinha que proteger a minha voz, evitar o frio e o calor, o ar cheio de pólen. Eu devia, acima de tudo, fazer as minhas vocalizações, ficar em silêncio, ensaiar, aprender as minhas canções uma a uma.

Eu amava o clima dos estúdios tanto quando antes. Mas, dessa vez, amei mais do que nunca, porque conheci pessoas apaixonantes. Carole King ofereceu-me uma canção, Sir George Martin, o homem que fez o som dos Beatles, produziu "The Reason". Os Bee Gees vieram gravar comigo "Immortality" e eu cantei com Barbra Streisand.

A ideia de cantar com Streisand, eu sempre a tinha tido e sempre tinha tido medo. Aos cinco anos, eu já a via como um dos meus ídolos mais impressionantes. É perigoso aproximarmo-nos dos nossos ídolos. Um nada pode destrui-los… ou esmagar-nos.

Tudo tinha começado no ano anterior, durante a Gala dos Óscares. Eu tinha cantando "I Finally Found Someone", a canção tema do filme que Barbra tinha produzido, The Mirror Has Two Faces.

De facto, era Natalie Cole que devia cantar essa canção. Mas ela ficou presa em Montreal com uma grande gripe. Na véspera da gala, os organizadores tinham-me pedido para a substituir. Então eu cantei a canção de Barbra e a minha, "Because You Loved Me", do filme Up Close and Personal, igualmente nomeado. Isso nunca tinha sido feito antes. Nunca, na história dos Óscares, uma artista tinha cantado duas vezes na mesma gala.

René celebrava. Aos seus olhos, não há nada mais empolgante do mundo, especialmente no maravilhoso mundo do show-business, do que fazer o que mais ninguém fez.

Estávamos os dois um pouco desgastados nessa época. Eu lembro-me que, uma noite, no Hotel de Beverly Hills, nós dissemos:

− O que poderia acontecer agora que nos surpreendesse de verdade?

Nós tínhamos vivido meses num ritmo infernal, nós estávamos quase sempre em tour, nós participávamos em todas as galas importantes. Eu fazia

todos os programas de televisão, cantava nos maiores palcos, os maiores concertos tanto na Europa como na América e na Ásia. E, no fim, nada mais nos empolgava de verdade.

Então, preparar uma nova canção em 24 horas, cantar duas vezes nos Óscares e diante de Barbra Streisand, era aterrorizante, stressante e estimulante. Eu trabalhei muito.

Mas Barbra Streisand tinha saído da sala quando eu cantei a sua canção. Ela tinha ido no banheiro durante a pausa para os comerciais e as portas já estavam trancadas quando ela quis voltar para a sua poltrona. Ninguém pode circular na sala durante a cerimónia do Óscar. René ficou muito desapontado e bravo. Eu fiquei triste, claro, mas não deixei isso estragar o prazer que eu tinha sentido. Eu tinha vencido um grande desafio.

Dois dias mais tarde, no Ritz Carlton de S. Francisco, eu recebi um enorme ramo de flores com um bilhete escrito pela mão de Barbra. Ela dizia que tinha assistido à gravação da cerimónia e que achava que eu tinha cantado "magnificamente", que eu era uma "cantora incrível" e que tinha pena de não poder ter estado na sala… e que ela desejava um dia cantar em dueto comigo.

Eu liguei para René, que se encontrava numa clínica no deserto, e li o bilhete de Barbra. Ele pediu que eu lhe oferecesse o bilhete e ele guardou-o na sua carteira durante meses. Cada vez que ele tinha ocasião, ele lia aos seus amigos ou aos jornalistas que ele encontrava. Ele contactou rapidamente Marty Erlichman, o manager de Barbra. E pediu a David Foster para escrever uma canção que poderíamos cantar em dueto.

Uma das maiores qualidades do meu amor é que ele continua a ficar maravilhado. Eu posso nomear montes de pessoas que ele admira de verdade, estrelas e pessoas perfeitamente desconhecidas, todos aqueles que fazem bem aquilo que eles têm que fazer. Ele sabe encontrar pessoas de qualidade, confia nelas e ama-as.

Foi David Foster que nos ligou e nos propôs a canção "Tell Him", da qual ele tinha escrito a música.

[327] Barbra cantou a sua parte em Los Angeles. Alguns dias mais tarde, em Nova Iorque, eu juntei a minha voz à dela. As nossas duas vozes harmonizam-se magnificamente bem. Por momentos elas quase se confundem.

Os técnicos e os responsáveis pelos arranjos mexeram e trabalharam na nossa canção e, numa linda noite, escutamo-la juntas, Barbra no Record Plant de Los Angeles e eu no Hit Factory de Nova Iorque.

Quando a canção terminou, o silêncio caiu no estúdio. Olhámos todos o telefone. Eu acho que ele demorou uma eternidade para tocar. David atendeu.

− Céline, é para você.

Era Barbra que estava ligando-me do outro lado do continente para me dizer o quanto ela tinha amado a minha interpretação.

− Você consegue fazer coisas maravilhosas com a sua voz. Como você faz para conseguir se misturar tão bem com a música e com a minha voz?

Eu não ousei responder que tinha cantado em dueto com ela centenas e centenas de vezes diante do grande espelho do meu quarto, na Rua de Notre Dame, em Charlemagne. Eu apenas disse que trabalhava muito e que me treinava como uma atleta.

− Você tem que me ensinar – disse ela.

− Ensinar o quê?

− A ter disciplina.

− Você não tem que aprender nada comigo. Você é a melhor cantora do mundo!

− Temos todas coisas a aprender uns com os outros. Mas você aprende mais depressa do que todos nós porque você tem uma grande voz e uma grande alma. Eu estou verdadeiramente orgulhosa de você.

Eu fiquei paralisada. Ela tinha tanta confiança, ela dizia-me coisas tão lindas! Eu sentia-me incapaz de dizer até que ponto ela tinha sido importante na minha vida, de dizer o que eu tinha sentido quando a minha voz se misturou com a dela. Era como se as nossas vozes, depois de se terem procurado durante tanto tempo, se tivessem finalmente encontrado. E elas eram irmãs gémeas.

Mas eu dizia a mim mesma que Barbra devia saber bem que ela era o meu modelo, que eu tinha aprendido muito com ela, isso devia transparecer na minha voz.

Mas, em vez de falar, eu comecei a chorar.

René, também comovido, pegou o telefone.

− Você sempre foi um modelo para Céline, um ídolo. Ela está muito impressionada, sabia?

− Eu compreendo – disse Barbra. – Eu senti a mesma coisa na primeira vez que cantei com Judy Garland.

Ela tentou falar comigo de novo.

− Eu quero conhecer-te melhor. Venha-me ver em Malibu quando você puder. Amanhã mesmo, se você quiser.

Mas, no dia seguinte, eu prepararia "I Hate You Then I Love You" com Luciano Pavarotti.

− Posso ir terça-feira, se você puder.

− Fica para terça-feira. Eu vou-te mostrar o meu jardim de rosas e vamos caminhar na praia.

Ser convidada a jantar pelo seu ídolo, ser abraçada por ela, são momentos de grande felicidade. Mas aproximarmo-nos dos nossos ídolos é muito preocupante. Não há nada mais frágil. E eu não quero destruir os ídolos que eu tenho, do mesmo jeito que nunca mais quero deixar de sonhar.

Nessa época, eu achava que todos os meus sonhos estavam se realizando depressa demais, mesmo antes que eu tivesse tempo de os sonhar.

Diante ou atrás de mim, dentro ou fora de mim, a vida e o sonho eram semelhantes, o mesmo cenário, os mesmos rostos, a mesma felicidade. Era vertiginoso e, ao mesmo tempo, assustador.

 

Com Pavarotti, eu iria entrar dentro de outro Universo. Ele é imponente. E ele tem presença. [329] Mas, para mim, ele não tinha nada de intimidante. O clima era, desde o começo, muito relaxante. Mas assim, nós tentámos muito tempo até achar o tom certo.

Pavarotti cantou a sua parte e depois eu cantei a minha. O resultado ficou bom mas não tinha nada demais. Fizemos o contrário. Eu cantei, ele misturou a sua voz com a minha. A mesma coisa. Ficou bem. Mas banal.

Mas, desde o começo que eu estava pensando numa coisa:

− Eu gostaria que cantássemos juntos.

− Eu também estava pensando nisso.

Ele pegou a minha mão, entramos no grande estúdio e cantamos, olhos nos olhos, "I Hate You Then I Love You". Cantar em duo é muito íntimo e mexe com a pessoa. É um jogo muito sério, como os actores nas cenas de amor. Eu adoro isso.

 

Em Abril, o compositor James Horner tinha vindo a Las Vegas propor a René um projecto que o empolgava muito.

− Eu escrevi a música para o filme Titanic. O director James Cameron dispõe do maior orçamento alguma vez visto em Hollywood. É uma grande história de amor.

Ele tinha escrito com Will Jennings uma canção que ele queria colocar no final do filme.

− É uma das mais lindas que já fizemos juntos.

René não estava confiante. Nos últimos anos, os grandes filmes de Hollywood com grandes orçamentos tinham sido verdadeiros desastres.

Mas Horner insistia. Segundo ele, Titanic marcaria a história do cinema.

− Por agora, Cameron não quer saber de uma canção – disse ele. – mas eu tenho a certeza que ele mudaria de ideia se Céline aceitasse cantar a canção que escrevi com Will.

Alguns anos antes, nós tínhamos tido uma triste história com Horner e Jennings. Eles já tinham vencido uma dezena de Óscares para música e canções de filmes. Algum tempo depois do lançamento do meu primeiro álbum em Inglês, quando eu era quase desconhecida nos Estados Unidos, eles tinham-me visto na gala dos Junos em Vancouver e tinham desejado que eu cantasse a canção tema do filme de desenho animado An American Tail: Fievel Goes West, produzido por Steven Spielberg. Eu adorava a canção deles, "Dreams to Dream". Até hoje ela aparece-me na cabeça de vez em quando. Mas houve todo o tipo de complicações e de brigas entre gravadoras e o projecto foi pelo ar. René ficou muito magoado. Com Titanic, ele queria a sua vigança.

Mas tinha que se conciliar os interesses das gravadoras…

− Primeiro tenho que convencer Cameron – disse Horner.

− Primeiro você tem que convencer Céline – corrigiu René. E tem que me convencer também.

Nos encontrámo-lo na nossa suite do Caesar’s Palace. Horner sentou-se no piano para tocar "My Heart Will Go On". Coitado! Ele é, quem sabe, um dos mais brilhantes autores que conheço mas a voz dele é mole, apagada e seca. Não ficava bom.

Pelas costas dele, eu fazia sinais a René, expressões com o rosto, com os olhos, para que ele entendesse que eu não queria essa canção. Eu adorava a letra mas a música parecia-me sem brilho.

[331] Nós não tínhamos chegado a meio da canção e René já fingia que não me estava entendendo. Quando Horner se virou para a gente, René disse:

− Dentro de um mês, vamos estar em Nova Iorque, no Hit Factory, onde Céline vai gravar o seu próximo álbum. Se você nos der a orquestração, ela pode fazer um demo para você levar a Cameron. Isso será o melhor jeito de o convencer.

Horner não esperava tudo isso. Ele ficou nas estrelas. Mas eu estava furiosa. E estava preparando-me para brigar seriamente com René Angélil assim que ficássemos sozinhos.

Mas foi ele que me deu uma lição.

− Você ficou presa na voz de Horner, que eu sei que não é boa. Mas você não escutou a canção direito. Eu estou te dizendo, a melodia é extraordinária e você pode fazer dela um dos seus maiores sucessos.

Um mês mais tarde, James Horner estava no Hit Factory de Nova Iorque com a sua orquestração. Ele chamou-me à parte e contou-me, com muitos detalhes, a história do filme. Eu fiquei impressionada. Eu escutei a orquestração e tive que admitir que René tinha razão: era uma melodia extraordinária, muito comovente.

Nesse dia eu estava incubando uma gripe. A minha voz não estava muito segura, ela tinha um pouco de fragilidade que, eu acho, deu à canção o seu lado romântico. Eu deixei as palavras subir desde o fundo de mim. Estavam presentes todos os grandes patrões da Sony: Tommy Mottola, John Doelp, Vito Luprano… e todos souberam, desde a primeira gravação, que seria um grande sucesso.

Algumas semanas passaram e, num lindo dia, James Horner ligou-nos para dizer que James Cameron tinha escutado a nossa canção e tinha-se deixado levar. Melhor ainda, ele viria a Nova Iorque para nos mostrar o seu filme.

Quando chegámos à sala de projecção essa noite, René não tinha comido a tarde inteira. Coisa rara para esse grande guloso! Eu não quis que ele jantasse porque, às vezes, ele come demais e depois adormece em frente da televisão, mesmo quando temos amigos em casa.

Eu não conto mais os filmes que ele não viu até ao fim. Eu sabia que o filme que íamos ver tinha mais do que três horas. Eu tinha mandado preparar saladas de legumes e de frutas que o servirem no começo da tarde. Depois disso ele só tinha bebido água. Na sala onde aconteceu a projecção, havia um grande lanche. René olhou-o longamente, como conhecedor de comida, mas não tocou em nada. Ele foi realmente admirável. Titanic é um dos raros filmes que ele pode contar que viu do começo ao fim.

Nós nem voltámos para o estúdio. O demo que gravámos no Hit Factory iria dar a volta ao planeta e tornar-se, segundo dizem, a canção mais vendida da história da música.

No Natal, quando o filme Titanic saiu em milhões de telas pelo mundo inteira, o meu novo álbum Let’s Talk About Love já estava no topo. A nossa história de sucesso iria continuar por mais tempo. Tudo o que a gente tocava transformava-se em ouro, ou em platina ou em diamante. Nós estávamos ricos, famosos e solicitados por todo o mundo.

 

Quando nos tornamos em celebridades importantes, muitas pessoas manifestam-se e propõem-nos os seus serviços. Se eu dizia na televisão que queria construir a casa dos meus sonhos, uma multidão de arquitectos, de decoradores e de empresas ligava para os nossos escritórios ou para a Sony para nos oferecer planos, conselhos. Correu o rumor (falso) que eu tinha ido numa clínica especializada em problemas de fertilidade. Vinte médicos ou impostores faziam-me saber que eles tinham soluções. Outros queriam vestir-me, pentear-me, curar-me, maquilhar-me, ler as cartas, analisar a minha letra, escrever músicas para mim, claro, escrever a minha biografia, as minhas memórias…

Aprendemos depressa a fugir dessas solicitações. Mas haviam muitas obras de caridade que, muito mais discretamente e delicadamente, nos lembravam que tínhamos o poder e o dever de ajudar os pequenos, os fracos, os doentes. Nós não podíamos ficar indiferentes.

− Isso agora faz parte da nossa vida – dizia René. – Eu e você recebemos muito. [333] Demais até, se você quer a minha opinião. Agora temos que aprender a dar.

Para ele, isso não era uma questão de imagem ou de marketing. Ele acreditava verdadeiramente, como bom supersticioso que ele é, que temos que dar de volta. Um pouco como a minha mãe achava que não temos nada sem esforço e que o que se conquista facilmente não se aproveita de verdade.

René tem uma natureza profundamente generosa. Tanto quanto ele adora brincar com os negócios, ele adora oferecer. Mesmo quando não éramos ricos, ele convidava sempre todo o mundo sem pedir nada de volta. Assim que ele ficou na frente de uma enorme fortuna, ele começou a considerar os pedidos das fundações e das obras de caridade que se aproximavam da gente.

Ele tinha como prioridade a Associação Quebequense da Fibrose Quística. Estaremos sempre ligados a eles. Também ajudámos outras organizações, depois de René examinar os pedidos. Mas há tanta miséria e tantos dramas no mundo inteiro!

Eu vi na televisão, há uns anos, uma reportagem com umas imagens que continuam-me perseguindo. Num orfanato chinês, uma menina quase cega estava morrendo sozinha atrás de uma porta. Nunca até ao fim da minha vida eu vou esquecer o seu rosto, os seus olhos, a sua dor. Eu não quero esquecer. Não podemos esquecer. Os responsáveis dos orfanatos tinham-na abandonado porque estavam impotentes, sem meios. Se um dia eu tiver uma fundação, será para ajudar crianças.

Nós ganhámos o hábito de ir dar cestas de mantimentos no Natal a famílias pobres de Charlemagne e de Repentigny. As pessoas reconhecem-nos mas sentem-se envergonhadas.

Com as pessoas mais próximas, com os meus irmãos e irmãs, por exemplo, é muito delicado. Alguns sem dúvida precisam de dinheiro. Outros, eu sei, nunca me pedirão nada. Foi René que, um dia, me sugeriu:

− Esse Natal, você deveria oferecer cem mil dólares a cada um dos seus irmãos e irmãs.

Eu achei uma óptima ideia. Pelo Natal eu reuni os meus irmãos e irmãs na minha suite de um hotel de Montreal, o mesmo onde tínhamos celebrado o nosso casamento. Eu dei um pequeno envelope a cada um deles. Nós rimos e chorámos. Eu sabia com certeza que estava trazendo muita felicidade. Mas, ao mesmo tempo, uma tristeza e um constrangimento instalaram-se entre a gente. Esse gesto criou, forçosamente, um distanciamento entre eu e eles. Eles não me tinham pedido nada mas eu tinha mudado a vida deles. E eu tinha medo que eles ficassem com a impressão de me dever alguma coisa.

Mas foram eles que me ensinaram tudo. Esse sonho que tínhamos realizado, René e eu, nós devíamo-lo a eles. E eu queria ter dito isso a eles, naquela noite, se tivesse encontrado as palavras. Mas estávamos comovidos demais, eu acho…

Acabamos por cantar todos juntos, como nos bons velhos tempos, formando coros...

 

Nós inaugurámos a nossa casa de Jupiter à meia noite e cinco minutos, dia 28 de Julho de 1998.

− Vinte e dois é 2 mais 8, que faz 10. E 10 dividido por 2, porque somos dois, faz 5 a cada um. Podemos ir.

Há uma barreira e um guarda na entrada de Admiral’s Cove, o condomínio residencial onde se situa a nossa casa. Estávamos uns dez minutos adiantados. René pediu ao motorista para esperar um pouco e depois fomos muito lentamente para casa. Eu tinha um medo terrível. Eu tinha vindo ver a construção de vez em quando. Mas, nos últimos três meses, por minha vontade, eu não tinha vindo. Eu perguntava-me se encontraria na realidade as imagens de sonho que eu tinha guardado no coração esse tempo todo.

Eu conhecia a planta da casa, o aspecto geral de cada quarto, a maioria dos objectos que deviam estar lá. Johane e os arquitetos tinham-se inspirado nas milhares de imagens que eu tinha mandado durante três anos. A limusina atravessava o magnífico terreno de golfe e aproximava-se da rua cheia de palmeiras e árvores em flor. Eu perguntava se me iria encontrar a mim mesma lá dentro.

Abriram o portão. À meia-noite e cinco minutos, nós batemos cinco vezes na porta principal. Na nossa esquerda havia uma gardénia em flor. Eu amava as suas folhas. Dizem que o seu perfume muda a natureza dos nossos sonhos.

[335] Foi a luz que me alcançou primeiro, uma luz muito clara, doce e quente. Centenas de velas iluminavam cada quarto da casa. Depois escutámos violinos e uma harpa cristalina lá em cima. Eu pensei: "É exactamente como os primeiros versos da "Ce N’Était Qu’Un Rêve"."

Dentro de um grande jardim encantado

De repente encontrei-me

Uma harpa e violinos tocavam

Nós dois chorámos. Mimos perfeitamente imóveis imitavam as nossas estátuas de mármore, por vezes não conseguíamos distinguir. Uma empregada, vestida exactamente igual às do Caesar’s Palace veio trazer uma Coca-Cola Light ao René.

Ele estava tão feliz. Apesar de nunca se ter interessado por essa casa, ele encontrava aí objectos familiares, que o lembravam Las Vegas ou as nossas casas antigas. E, claro, para esse maníaco da televisão, havia 33 televisões, além de uma grande sala de cinema.

Quase todos os quartos da casa, 9 quartos de dormir, salas de jantar, cozinhas, salas de estar, mesmo o atelier de costura que fizemos para a minha mãe e para a minha tia Jeanne, estão voltados para o jardim, abrigados de olhares indiscretos. Há uma imensa sala a céu aberto, com muitos recantos: um canto inglês, um canto chinês, pequenos jardins, uma piscina no fundo da qual se pode ver as nossas iniciais entrelaçadas… Uma casa de sonho. A casa da felicidade. E do amor.

Plantámos árvores grandes, palmeiras reais mais altas do que a nossa casa, árvores com cinco troncos (o nosso número da sorte), plantas trepadeiras, muitas flores também. Eu jurei a mim mesma que aprenderia o nome delas.

Até amanhecer, caminhei de um quarto para o outro como num sonho. Eu encontrava em todos os lugares objectos familiares que eu só tinha visto em fotos. Eles tinham uma dimensão, uma presença diferente do que eu tinha imaginado.

Para mim, não era apenas tomar posse da casa onde iríamos morar. Era uma conquista. Eu tinha a impressão de ter conquistado alguma coisa, de ter criado um lugar que não se parecia com mais ninguém, mas que se inspirava em tudo de lindo que eu já tinha visto.

Eu iria finalmente estar em casa, numa casa que se parecia comigo e de quem eu seria a dona. Eu iria aprender a gerir esse espaço, a dar vida.

Eu pensava no filho que eu criaria aí um dia. O meu ginecologista tinha-me avisado que eu teria dificuldade em engravidar enquanto estivesse em tour. A pressão, o stress, os fusos horários, o turbilhão permanente e as frequentes separações físicas tornavam as coisas difíceis. Mas eu sabia que, mais dia menos dia, a gente iria parar de verdade, um ano, quem sabe dois, nessa casa. E então, quem sabe, eu poderia realizar esse sonho, o mais lindo de todos: ter um filho…

Há dois meses que a minha irmã Linda vivia perto da gente. Eu contava com a sua experiência para me ajudar a cuidar do nosso filho, se Deus quisesse me dar um. Quanto a Alain, o marido dela, ele teria muito com que se ocupar.

Na noite em que chegámos, ele tinha preparado a refeição. No dia seguinte ele fez-nos crepes de salmão fumado, omeletes… Depois perguntou o que a gente queria comer de noite. René disse:

− Quem sabe Osso Buco?

De noite, nós tínhamos um excelente Osso Buco no nosso prato. Alguns dias mais tarde, propusemos a Alain ser o nosso cozinheiro. A nossa vida organizava-se com Linda, Alain e três empregadas. Eu tinha agora que aprender a cuidar de uma casa, eu que vivia de hotel em hotel há anos.

Mas antes eu tinha que voltar para a estrada. [337] No final desse verão de 1998 eu começaria uma nova tour, com material da Let’s Talk About Love e do novo álbum que eu tinha feito com Goldman, S’il Suffisait D’Aimer. Eram canções magnificas, músicos que eu adorava, meios técnicos formidáveis…

Mesmo assim, pela primeira vez na vida, eu partia com o coração pesado, mesmo sem vontade…

 

A estreia de Let’s Talk About Love, no Fleet Center de Boston, foi precedido por um dos piores pesadelos da minha vida de artista. Eu já estava esperando. Mas a gente nunca sabe como as coisas vão acontecer. Por vezes parece que tudo vai dar errado e, quando o concerto começa, a magia opera. Por vezes é o contrário.

Nunca na minha vida eu esquecerei, por exemplo, o concerto que eu dei em Seul, durante a tour "Falling Into You". Desde manhã que tínhamos a certeza que ia ser uma catástrofe. Tudo ia mal. Estávamos cansados. Desde a nossa chegada que tínhamos ficado presos em engarrafamentos monstruosos. Eu tinha a garganta irritada. Um dos músicos tinha ferido uma mão. Uma chuva negra e gelada caía na cidade. No dia anterior, saindo de Nagoya, o nosso avião tinha feito uma aterrorizante viragem sobre a asa. René não estava presente. Há duas semanas que eu estava longe dele.

No Ginásio Olímpico, os camarins eram verdadeiras prisões, húmidos, sombrios, frios. Durante o teste de som, sem sabermos bem como, dezenas de jovens entraram e sentaram-se nas primeiras filas. Os responsáveis da segurança tinham medo, e com razão, que começassem brigas quando os donos dos ingressos chegassem.

E mais, por causa de problemas eléctricos, os técnicos não conseguiam ajustar as iluminações e o som, o show ia começar com atraso e nós estávamos muito limitados nos horários. Uma das regras da cidade proíbe que os aviões saiam do aeroporto de Seul depois das onze e meia da noite. Tinham-nos dito que era possível haver engarrafamentos em qualquer hora do dia e da noite. Nós tínhamos a certeza que iríamos entrar em um.

O que aconteceu ninguém poderia ter previsto. Não houve brigas. A multidão foi extraordinária, por vezes exuberante, por vezes quieta, mas calorosa. As iluminações e o som foram impecáveis. A minha voz estava clara e flexível. Os músicos estavam felizes. Quase perdemos o avião porque eu estava tão bem que nem queria sair do palco. Apesar dos sinais de desespero do director, eu voltei mais do que uma vez ao palco. Eu cantei mesmo "Twist and Shout" dos Beatles. Quando eu finalmente saí do palco, faltavam apenas quarenta minutos.

Não teve engarrafamento. Policiais em motos escoltaram-nos através da cidade. E às onze e meia em ponto o nosso DC-8 descolava, debaixo de chuva violenta, do aeroporto de Seul.

Na véspera da estreia da "Let’s Talk About Love", em Boston, eu só pensava no show de Seul. Mais uma vez, tudo indicava que seria um fiasco total. Eu esperava que, como em Seul, um milagre se fosse produzir.

Nós tínhamos começado a produzir esse concerto há meses. Tínhamos construído um palco em Montreal, um palco central em forma de coração, um imenso coração de 200 metros quadrados, que formava o palco luminoso, tipo um estroboscópio gigante multicolor. Por cima, em quatro cantos, havia telas gigantes suspensas. Imagens do show e dos rostos dos Bee Gees e de Barbra Streisand, com quem eu deveria cantar, iriam ser projectadas.

A minha estilista Annie Horth tinha falado com vários estilistas para desenharem as minhas roupas de palco e as roupas dos músicos e das coristas.

Eu coloquei extensões no cabelo… Metade das canções já eram conhecidas do público, mas eu nunca as tinha cantado no palco.

Cinco minutos antes de começar o show, tinham que me fechar numa caixa. Os técnicos levavam-me para debaixo do palco, onde ficavam os bastidores, outros técnicos diante dos seus computadores, tranças de fios e telas, uma maquinaria assustadora. Os músicos estavam instalados sobre plataformas accionadas por sistemas hidráulicos. Tudo isso me parecia insuportavelmente frágil. Eu sabia que entre mim e os músicos tudo iria dar certo, mesmo nunca tendo cantado metade das canções. Mas o resto, as iluminações super sofisticadas, o palco luminoso, as telas, o visual do concerto, tudo poderia dar errado. Um fio poderia sobreaquecer, uma tela poderia apagar-se.

Estávamos todos em pânico. Durante horas, tivemos a impressão de ter perdido o controle. A máquina que tínhamos construído era enorme demais. Nós éramos aprendizes de feiticeiros ultrapassados pelas suas invenções.

René reuniu todo o mundo numa sala do Fleet Center. Paredes de cimento, cadeiras de plástico. Ele disse-nos.

− Nesse momento, a trinta e duas horas da estreia, não temos concerto. Temos um plano de concerto, um sonho, uma construção, grande como o Empire State Building. Mas ainda não passámos do 7º andar.

Os meus olhos cruzaram os de Mego. Eu tenho a certeza que ele estava pensando no mesmo do que eu. Essa frase, "Não temos concerto", nós já a tínhamos escutado, dois ou três anos antes, em situações tão horríveis. As recordações ruins, bem como a infelicidade, vai e volta, de mão em mão.

Tinha sido em Vancouver, numa noite de estreia. Estávamos mal preparados. Devíamos ter ensaiado durante duas semanas mas eu estive ocupada não sei mais com o quê. Deve ter sido promoção. Tenho sempre promoção para fazer. Ou videoclipes para gravar.

Mego ligava-nos todos os dias. O responsável pela iluminação e o director também. Finalmente, ensaiámos no velho Forum de Montreal, recentemente mudado de proprietário, durante uma tarde, duas ou três horas, apenas o tempo de perceber que era tarde demais. Partimos para Vancouver morrendo de medo.

Seria mentira se eu dissesse que a gente sentiu o menor prazer. O concerto começou mal. Os músicos tocavam bem mas não havia uma conexão entre eu e eles. Entre as canções, eu tentava falar com as pessoas, fazê-los rir, comovê-los. Mas parecia que tudo o que eu falava não tinha sentido.

René nunca me lê as críticas. As boas ele depois conta-me. Ele nunca fala das ruins. Mas, no dia seguinte, eu queria saber. A critica que eu li não devia ter sido escrita por uma pessoa que vê ou gosta de música. Não se falava em lugar nenhum de erros técnicos, iluminação, gafes. O autor apenas falava das letras das minhas canções. Ele poderia ter escrito isso sem ter ido no concerto.

− Mas, justamente – dizia René – não havia concerto. Foi erro nosso. Não estávamos bem preparados. A culpa foi minha. [339] Se o show tivesse sido bom, ele teria falado isso. Ele teria falado do concerto, não das letras das músicas. Como você quer que ele fale do concerto se não teve concerto?

Nós tínhamos trabalhado muito mas acabámos por fazer um concerto bom. Levámos pelo mundo inteiro. Mas tínhamo-nos assustado, tínhamos sofrido. E agora recomeçava.

− Não temos concerto.

Os técnicos, os engenheiros, os electricistas passaram a noite no Fleet Center. Eles trabalharam no visual de cada canção. Durante o dia, todo o mundo parecia paralisado pelo medo. Estava calor. Eu tinha quilos de cabelo preso na minha cabeça, os meus e as extensões que eu começava a arrepender-me de ter colocado. Eu não estava mais segura do meu visual, que às vezes eu achava magnífico e às vezes achava ridículo. Eu não estava mais segura de nada, de facto.

Finalmente, tudo deu certo. Apesar de problemas técnicos, acho que fizemos um bom concerto. Dessa vez, as críticas não falaram das letras das minhas canções nem do meu visual. Elas falaram do concerto, o seu bom som e do seu bom visual. Mas essa estreia ficará na minha memória na categoria dos pesadelos e marca, eu acho, o fim de um capítulo.

Nessa noite, eu disse a René, pela primeira vez na vida, que eu não queria mais viver um pesadelo assim.

− Eu não tenho a menor vontade, está me ouvindo? Há outras coisas na vida.

Isso também foi uma estreia, uma descoberta, uma novidade. Nunca, cinco anos antes, eu teria afirmado uma coisa assim. Eu tinha acabado de perceber que havia uma vida fora do show-business.

René compreendeu perfeitamente. Acho que ele ficou feliz por eu finalmente descobrir isso. Ele também já tinha tido stress e medo demais. Então jurámos um ao outro tirar umas férias no fim da tour. Há meses que pensávamos nisso mas tínhamos adiado esse momento, sem dúvida porque não tínhamos tido necessidade de verdade. Mas as coisas tinham evoluído. A ambição que me tinha levado tinha mudado de capítulo.

Eu queria paz e sossego. Eu fazia filmes cor-de-rosa: quase sem nenhuma acção e apenas dois personagens, o meu amor e eu.

Acontecia quase sempre numa praia deserta ou no campo de golfe perto da nossa casa. Cem mil vezes eu revi as nossas noites: nós estávamos sozinhos em casa, eu preparava massa ou um churrasco enquanto ele assistia golfe na televisão. Eu preparava a mesa no terraço, escolhia a toalha, os copos, os talheres, colocava velas e flores. Era só nós dois. Nem tinha música. Nós falávamos de tudo e de nada, como sobre o dia anterior e o dia antes desse. Eu tinha pelo menos cem versões desse jantar e dessa noite romântica com o homem da minha vida.

O concerto "Let’s Talk About Love" era ainda mais exigente fisicamente do que os outros concertos. Eu tinha que encher um palco imenso durante duas horas, por vezes mais. Eu saía de lá mexida, em transe, sempre com aquela espécie de euforia que causa um grande exercício físico. Mas, no dia seguinte, eu via que tinha que recomeçar tudo. Depois do próximo concerto eu teria outro e outro, até perder de vista. Eu sentia-me vazia, impotente. Eu tinha que encontrar a paixão, de um jeito ou de outro. Mas como? E porquê?

Eu estaria em tour durante um ano ainda, quem sabe dois. Quando essa grande máquina era lançada, não era fácil fazê-la parar. Não se monta um concerto desses para uma pequena tour de alguns meses. [341] Eu tinha a impressão de subir uma grande montanha. Mas para ir para onde? Mais alto? Não há nada mais alto. Quem sabe outro topo. E, pior, ficamos sozinhos aí. É o deserto, é o vazio.

Cada vez que era possível, íamos passar uns dias na nossa casa de Júpiter. Eu voltei para a minha colheita de imagens. Eu preparava outra casa,

no Québec. Eu a via: uma casa de pedra escura, muito sólida, muito pesada, com madeiras, tapetes, peles, grandes lareiras, cores muito quentes, um canteiro onde eu iria cuidar das minhas plantas… Contrariamente à nossa casa de Jupiter que é um casulo, essa seria aberta para o exterior. Eu imaginava campos cheios de neve em volta.

Eu amo o calor do sul, mesmo o grande calor da Florida em Junho e Julho. Eu não posso dizer que gosto de frio mas gosto do inverno, o seu cenário branco, a neve fresca que estala debaixo dos pés…

Nós tínhamos comprado uma ilha de vários hectares no rio Mille-Îles, a uns vinte minutos do centro de Montreal e do aeroporto Dorval e a 10 minutos do campo de Terrebonne. Há lebres e madressilvas por lá, muitas verduras, é muito tranquilo. Eu precisei sempre de estar rodeada de água.

− A gente vai parar de vez no primeiro dia do ano 2000 – disse-me René, um dia.

Por todo o mundo organizavam-se grandes concertos para celebrar esse evento. Nós tínhamos recebido várias propostas que René considerava… mas eu sabia bem que apenas um lugar lhe interessava: Montreal.

Não seria amanhã a virada para o ano 2000, seguida de um grande repouso. Mas a paixão e o prazer de cantar voltaram porque eu sabia que o turbilhão iria, finalmente, acalmar.

Nós tínhamos previsto, para começar, uma longa pausa no Québec, um mês inteiro, durante o verão, para jogar golfe e começar a construir a nossa casa.

Mas uma infelicidade, a maior que alguma vez tínhamos conhecido, forçou-nos a adiar esse projecto.

 

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