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 INFOZONE » MA VIE MON RÊVE EM PORTUGUÊS

  Capítulo 5

 

Dois dias mais tarde, fomos acolhidos no aeroporto de Mirabel por uma multidão de jornalistas, de fotógrafos, de câmaras e de pessoas da profissão. René tinha levado os jornais irlandeses e ingleses. Ele leu-os para eles. Ele mostrou a minha foto, os grandes títulos, lembrando a importância do concurso da Eurovision, uma instituição quase desconhecida no Canadá.

Ele não se pode impedir de dizer que eu tinha chorado como uma madalena. E ele fez todo o mundo rir quando lembrou que fazia muito tempo que isso não me acontecia.

Depois ele contou em detalhe a conferência de imprensa que se seguiu à competição, como eu tinha sido extraordinária. Os jornalistas do mundo inteiro "seiscentos ou setecentos", como ele dizia, o que me parecia um grande exagero, tinham ficado maravilhados quando eu tinha dito que era a mais nova de 14 filhos e que vinha de uma vila chamada Charlemagne.

− Depois – continuou René – ela assinou autógrafos em todo o lugar, no hotel, no aeroporto de Dublin, no avião que nos levou a Londres. O piloto falou mesmo que Céline estava a bordo e todo o mundo aplaudiu.

Os jornalistas escutavam, muito surpresos e fascinados.

Mas eu pensava que a maior notícia que o René poderia dar, e que os deixaria infinitamente mais satisfeitos, era que estávamos apaixonados. Eles viam-me radiante e encantada e eles achavam que era por causa da vitória em Dublin. Mas não tinha nada a ver.

René lembrou-os então que a CBS tinha prometido um disco em Inglês e que começaríamos a trabalhar nisso no Outono, quando tivéssemos terminado a tour "Incognito".

− Com o melhor produtor, com os melhores autores e com os melhores compositores e nas melhores condições que possam imaginar. – dizia ele – Vocês vão cair.

Uma jornalista perguntou-nos se estávamos felizes juntos, se ainda nos relacionávamos bem. Eu achei que ela tinha adivinhado tudo. E ela confessou-me que adivinhou tudo, anos mais tarde. René respondeu primeiro:

− Eu não trocaria o meu lugar por todo o dinheiro do mundo. – dizia ele - Muito menos Céline, eu tenho acerteza. A gente partilha o mesmo sonho.

"E a mesma cama" – eu estava tentada a falar.

Mas eu não tinha direito. No dia anterior ele tinha-me convencido a guardar segredo sobre o nosso amor.

[203] − Por quanto tempo?

− O tempo necessário.

− O tempo necessário para quê?

− Temos que falar com as nossas famílias, primeiro com os seus pais.

Ele tinha razão. Ele tem sempre razão, ele pensa sempre em tudo. Só que eu não sabia que o "tempo necessário" seria dolorosamente longo.

Eu respondi correctamente aos jornalistas que eu estava feliz com a minha associação profissional com René. Há sete anos que ele tomava todas as decisões da minha carreira e ele nunca se tinha enganado.

− Eu confio nele absolutamente.

Mas uma jornalista voltou a atacar:

− Você fez 20 anos há pouco tempo, Céline. Você tem um namorado? É normal as meninas da sua idade terem.

As imagens do dia anterior desfilaram na minha cabeça. Eu via-me de novo, de pé, contra a parede do meu quarto, depois de René ter ido embora. As minhas pernas tremiam tanto que eu quase caí. Eu escutava a sua voz, como num sonho: "Se você quiser de verdade, eu serei o primeiro." Eu escutava-me respondendo a ele, com os olhos cheios de lágrimas: "Claro que eu quero. Você será o primeiro. E o único."

Diante do meu silêncio, a jornalista insistiu:

− Você tem um namorado, Céline?

Eu então engoli a minha emoção antes de responder calmamente e com um sorriso, debaixo do olhar atento de René:

− Não, eu não tenho tempo, a minha carreira é a minha prioridade, eu consagro tudo a ela.

Foi a primeira de uma longa e dolorosa série de mentiras. Eu entrei num período da minha vida que foi muito feliz e, ao mesmo tempo, muito atribulado, a época do meu amor clandestino. Eu vivi uma grande felicidade mas, várias vezes, apesar dos sucessos profissionais, a jaula de mentiras onde eu tinha, apesar de tudo, me fechado, quase destruiu a minha felicidade.

Na minha família, pelo contrário, as coisas acalmaram depressa. Eu já tinha vinte anos. Os meus pais entenderam que eu não renunciaria a esse amor que me fazia feliz. Conhecíamos outros casais muito unidos formados por homens e mulheres, como Eddy e Mia, separados por quinze, vinte, mesmo trinta anos de diferença de idade. E havia o exemplo de Charles Chaplin e de Oona O’Neill, que tinham sido felizes durante mais de trinta anos e tinham fundado uma família forte e unida.

René contou-me que, quando ele percebeu que estava se apaixonando por mim, ele tentou me esquecer. Ele ia para Las Vegas sempre que podia. Ele foi mesmo a Paris onde ele encontrou Eddy Marnay, que ele sempre considerou com um pai e a quem ele poderia confessar tudo.

− Você sabe como Eddy é. Ele fez-me andar quilómetros em Paris enquanto eu falava de você para ele.

− O que é que ele te falava?

− Ele perguntava-me: "Você ama-a de verdade?

− E você?

− Eu respondia: "Como um louco. Eu a vejo em todo o lugar, eu penso nela a toda a hora."

− E ele?

− Ele dizia-me: "Se você a ama você não tem nada a temer. Você não vai fazer mal para ela."

[205] − Eu teria falado a mesma coisa para você.

Mas René estava pensando também na minha carreira. Eu diria mesmo que, nessa época, ele pensava mais nisso do que na nossa felicidade, o que, por vezes, partia o meu coração. Ele estava convencido que, se as pessoas soubessem que nós nos amávamos, tudo o que tínhamos construído seria destruído.

Nós vivemos muito tempo o nosso amor no segredo e na intimidade das nossas famílias. Ele estava muito bem com isso. Mas eu não. Eu sofri, eu chorei, quem sabe porque eu era muito jovem. E porque era o meu primeiro amor. Eu queria, desde o primeiro dia, contar ao mundo inteiro. Ser amada por René Angélil era a coisa mais linda que eu já tinha vivido em toda a minha vida.

Mas, por amor, porque ele me tinha pedido, para agradar a ele, eu aceitei ficar calada. Mas foi por tempo demais.

 

No começo do Verão, David Foster avisou René que ele estaria pronto para trabalhar com a gente em breve, mas primeiro ele queria ver-me em concerto. Uma semana depois da Eurovisão, eu voltei para a Europa para uma tour rápida. Dez cidades em dez dias. Foi uma loucura. Conferências de imprensa, entrevistas, televisão, rádios, alguns encontros muito especiais como um com Elton John em Munique, e um grande show enquadrado no festival de Cannes com Julia Migenes-Johnson e Michel Legrand. De volta ao Québec, eu retomei a tour "Incognito". O nosso concerto estava plenamente treinado. David Foster não poderia pegar melhor concerto. Os músicos estavam em plena forma, bem como a minha voz.

Mas o destino, sempre dando voltas, quis que o momento em que David estivesse no Québec fosse o dia em que eu ia dar um concerto debaixo de uma tenda, em Sainte-Agathe, em Laurentides, diante de um público de turistas. René bem que tentou adiar a viagem dele.

− Dentro de duas semanas Céline vai estar no mais importante teatro de Montreal, − dizia ele – nas condições ideais.

David não quis, ou não pôde adiar a sua viagem. Ele chegou na companhia da ex-mulher de Elvis, Linda Thompson, com quem ele tinha acabado de casar. Estava muito calor nesse dia e chovia muito. Debaixo da tenda, a humidade sufocava. O som estava horrível. Por momentos, a chuva caía tão forte sobre a tenda que nem dava para me ouvir correctamente.

Mesmo assim, eu sentia-me bem, confiante e calma, apesar do calor esmagador. As canções saíram perfeitamente. No meio do show, eu apresentei David Foster, dizendo que era o melhor produtor de álbuns do mundo e que ele trabalhava com as mais brilhantes estrelas da canção americana. O público de Sainte-Agathe, que nunca deve ter ouvido falar dele, levantou-se educadamente para aplaudir, ao que David não ficou indiferente.

Depois do concerto, encontrámo-nos os quatro num restaurante de Laurentides. David não me fez elogios, não faz o tipo dele. Ele manifesta de outra forma o seu entusiasmo ou a sua aprovação.

− Contem comigo. – Ele disse-nos – Encontrem as canções e liguem-me.

[207] René e Vito Luprano, director artístico da CBS, que se tornou Sony, fizeram uma selecção das canções que tínhamos juntado ao longo dos últimos meses.

Depois do Natal, com a tour "Incognito" terminada, nós partimos para a Califórnia, o René e eu. Nós instalamo-nos numa pequena residencial em Malibu Beach, não longe da casa de David Foster. Não conhecíamos mais ninguém em Los Angeles.

David contou-nos, anos mais tarde, que o que mais o encantou na gente nessa época, foi a nossa felicidade, a nossa alegria. Quando ele passava na residencial com a Linda, eles encontravam-nos jogando basquete ou caminhando na praia, onde fazíamos longos passeios. Por vezes eles acompanhavam-nos.

Os meus pais e uns amigos do Québec também nos visitaram. Mego e Suzanne vieram. Por vezes pessoal da Sony, Vito vinha mais vezes, e fazia-nos escutar canções. René fazia uma selecção, como se fosse um top. Pouco a pouco, aquilo que seria o meu primeiro álbum em inglês, ganhou forma. Seria feito exclusivamente de canções de amor. A maioria das quase 200 canções que gravei em toda a minha vida, falam de amor. Das alegrias e das dores que o amor nos trás.

Nós estávamos sozinhos, longe de todos os rumores que circulavam sobre nós. Eu vivia finalmente intimamente com o homem que eu amava. Formávamos um casal, um casal de verdade.

Pela primeira vez na vida eu podia ser amante e esposa, eu entrava na cozinha e preparava massas, fazia um bolo. Eu não sou uma cozinheira muito boa. Em casa, a minha mãe fazia tudo e sabia fazer tudo. Excepto a massa à bolonhesa, os meus talentos são muito limitados. René é guloso. Ele era, na época, muito melhor cozinheiro do que eu. Ele colocava temperos na minha comida e mudava tudo.

Ele deixava-me dormir até tarde. Eu sou da noite e ele é da manhã… Ele saía do quarto na ponta dos pés, pelas 6 horas da manhã, e ia comprar os seus jornais e as suas revistas, que ele lia no terraço. Ele queria saber sempre todas as noticias e todos os resultados desportivos: hóquei, baseball, futebol, boxe, ele quer saber quem ganhou, quem perdeu, em todos os jogos, em todas as guerras.

Quando eu acordava, por volta do meio-dia, ele trazia-me de volta ao mundo. Ele preparava-me sumo de frutas. Por vezes não fazíamos mais nada para além de caminhar na praia e aproveitar o sol.

Passámos nesse inverno, em Malibu Beach, dias tranquilos. Foram os últimos antes desse grande turbilhão nos levar.

Na Califórnia ninguém nos conhecia. O nosso amor e a nossa felicidade podiam florescer à luz do dia. Tudo era novo para mim: o amor, a paisagem, as palavras… Mesmo a minha voz parecia nova. Eu sabia que ela soaria diferente em Inglês. Quando passamos de uma língua para a outra, a textura da voz muda, mesmo o registo.

Mas era mais do que isso. Eu também tinha mudado. Eu estava consciente dessa mudança. Eu via-a em mim, nos meus gestos, nos meus pensamentos, em toda a minha vida. Eu era uma mulher feita, confiante na sua feminilidade, confiante em mim mesma, confiante no poder que tinha sobre o homem que amava.

[209] Eu sentia-me mais livre do que nunca. No estúdio de Chartmaker, onde passávamos os serões, por vezes as noites, todo o mundo sabia que René e eu estávamos juntos. Não tínhamos nada a esconder. Nós podíamo-nos beijar, pegar a mão, chamar de "meu amor" um ao outro sem que ninguém ficasse surpreso ou chocado. Eu acho que essa liberdade e essa felicidade que eu vivia agiram sobre a minha voz. Eu sentia-a mais flexível, mais perto de mim, mais livre também, mais brilhante.

Como sempre, René achava que tudo o que estávamos fazendo era de alta importância.

− Com esse álbum você vai entrar no show-business internacional. Se você falhar…

− Eu sei, meu amor. Se eu falhar nós voltamos à estaca zero. E provavelmente vamos ficar lá até ao fim dos nossos dias.

Eu fazia-o rir. Muito. Eu sempre o fiz rir muito. Mesmo assim, durante o tempo em que gravámos Unison, mais ou menos durante um ano, ele esteve sempre inquieto e preocupado, sempre a colocar tudo em questão. Em alguns dias ele queria mudar tudo, recomeçar, tentar outra coisa, mudar o ritmo, instrumentos de sopro ao invés de instrumentos de corda, dois pianos aqui, tirar a guitarra dali, ou mesmo esquecer essa e partir para outra canção…

Ele entendia-se maravilhosamente bem com David Foster, que era também minucioso, maníaco, nunca satisfeito. Nem com ele mesmo, nem com músicos, nem comigo. Ouvindo-o a ele, poderíamos pensar que poderíamos fazer ainda melhor. Podíamos sempre recomeçar. E era isso que fazíamos várias vezes.

Os patrões da Sony estavam muito empolgados por David Foster estar a trabalhar com a gente, mas eles queriam alargar o meu público, queriam que eu trabalhasse com outros produtores, com outros compositores, com outros estúdios em outras cidades. Eu não desgostava da ideia. Muito menos René, que tinha sido sempre obcecado com a ideia de alargar o meu público e de variar o meu repertório. Até David achava isso uma boa ideia. Eu então iria gravar outras canções em Nova Iorque primeiro, com Andy Goldmark, e depois em Londres com Christopher Neil.

Foi assim que entramos no grande turbilhão que, durante mais de 10 anos, não nos deixou em nenhuma pausa e nos fez viver momentos extraordinários. Nós ainda não éramos ricos mas tínhamos meios técnicos e financeiros enormes. Tínhamos a confiança dos grandes patrões da Sony, contactos privilegiados com as grandes esferas da indústria do disco, ligações de amizade muito forte com os músicos e com os técnicos de grandes estúdios de gravação.

 

Quando deixamos Malibu para ir para Nova Iorque, na Primavera de 1989, sabíamos que iríamos agora viver como ciganos, nómadas, que só passariam por Montreal, por Paris, por Los Angeles, por Las Vegas. Apenas passar, nunca ficar mais do que algumas semanas no mesmo lugar. E depois partir em tour.

Eu imagino que os pilotos da Fórmula 1, no volante dos seus carros, não têm tempo de admirar a paisagem porque ela passa depressa demais. Mas eles vivem intensamente, eu tenho certeza. De facto, eles apenas vêem a paisagem de um jeito diferente da gente. Como eles, eu iria ver a minha juventude passar correndo. As paragens seriam raras e curtas. [211] Mas eu veria outras coisas que a maioria das pessoas não vê, eu viveria outra vida, muito intensa, muito preenchida, aquela que eu sempre tinha sonhado viver, ao ponto que eu tinha por vezes a sensação de já conhecer tudo, de ter entrado em todos os estúdios, de ter escutado todas as músicas, de ter trabalhado com todos esses músicos. Por momentos, tudo me parecia dejá-vu.

Eu sentia-me em casa em Los Angeles. Também me sentia à vontade no Chartmaker, tanto quanto no estúdio Saint-Charles de Longueuil, ou mesmo no Family Song de Paris, onde tinha feito as minhas primeiras gravações. Eu cantava diante de desconhecidos, pessoas da profissão, músicos curiosos para escutar a minha voz, todo um público de pessoas que entendem da profissão, de profissionais. Duas vezes pediram-me para fazer duetos para álbuns de outros, um com Billy Newton-Davis, outro com Dan Hill, com quem eu tinha a impressão de ter cantado há milhões de anos atrás.

Em Los Angeles, uma cantora está mais visível do que em qualquer outro lugar. Seria nessa cidade que, com o famoso Tonight Show, eu faria a minha entrada, em breve, no mundo do show-business internacional, no big time, como dizia René. Eu cantaria no Óscar, diante do público mais glamoroso que se possa imaginar. E seria aí que Prince me veria e me ligaria para me escrever uma canção, "With This Tear".

Em Nova Iorque, depressa me senti em casa. É uma cidade rude, simples mas encantadora. Não é tão boa como Los Angeles mas é vibrante, dá-nos energia. Todo o mundo fala com todo o mundo, todo o mundo toca todo o mundo, como se nos conhecêssemos a vida inteira.

Andy Goldmark, os técnicos e os músicos que ele dirigia, que, segundo René, eram "os melhores do mundo", acolheram-nos como se fossemos família. Nem mais nem menos. Fizemos juntos uma canção, "Unison", uma canção de palco, para dançar, fisicamente exigente.

Alguns artistas fazem carreira apenas com discos, raramente no palco. Mas eu queria os dois. Gravar um álbum era como preparar as provisões, os mantimentos e as munições para levar em tour. Enquanto fazíamos a escolha das canções, tínhamos em conta o potencial que elas poderiam ter no palco, diante de uma multidão.

Andy produzia-me com muito rigor e controlo. Ele tinha uma ideia muito precisa dos sons e dos ritmos que ele queria. E, para cada canção, nós trabalhámos com ele até ele os encontrar.

O britânico Chris Neil tinha outro jeito de trabalhar. Mais do que me impor a sua visão das coisas, como Foster e Goldmark, ele levou-me a encontrar por mim mesma o som que eu queria, os ritmos, as cores que me convinham e me inspiravam. Isso era novo para mim. Eu fiquei desestabilizada no começo. Saber o que queremos e o que gostamos nem sempre é simples. Especialmente quando, durante muitos anos, deixámos que escolhessem tudo no nosso lugar. A tentação ainda era grande em confiar neles. Mas Chris queria consultar-me em tudo. Eu aprendi muito com ele, sobre mim mesma, sobre os meus gostos.

Ele encontrou-me várias semanas antes da gravação, para preparar os instrumentais e os arranjos de "Where Does My Heart Beat Now". Ele queria saber qual a tonalidade em que eu iria cantar, mas também queria saber como trabalhar.

[213] No começo eu não sabia exactamente como responder. Eu estava tentada a dizer que gostava de trabalhar quando tudo estava indo bem, quando sentia que,à minha volta, os outros estavam implicados e com vontade de fazer tudo bem feito. Mas ele queria saber mais: − Diga-me onde, quando, como você gosta de trabalhar. De manhã? De tarde? De noite? Você gosta de cantar à luz de velas? Você prefere cantar atrás de um biombo? Você gosta de ter muitas pessoas à sua volta?

René tinha falado para ele que eu não gostava de cantar, nem mesmo de falar antes do meio dia. E que eu nem era eu mesma antes das 3 ou das 4 da tarde. Chris então reservou os estúdios e os engenheiros para a noite.

Com o clima, eu disse para ele não se preocupar. Eu sempre adorei os estúdios, eu sinto-me bem lá. A gente sente-se fora do mundo, fora do tempo também. Paris ou Los Angeles, meio-dia ou meia-noite, era igual.

Quando eu escuto uma ou duas vezes uma canção que eu gosto, eu decoro-a sem dificuldade, letra e música, e nunca preciso de muito tempo para preparar uma gravação. Quando eu entro em estúdio, eu tenho a canção na cabeça e no coração. Geralmente tudo acontece rapidamente e bem.

Na noite da gravação, foi exactamente isso que aconteceu. Eu fiz uma gravação para aquecer a voz enquanto esperava o René e o Vito, que jogavam sinuca na sala do lado.

− Foi perfeito. – Disse Chris.

Ele correu para dizer aos jogadores de sinuca que estava feito. Escutamos a gravação. Para ficar de consciência tranquila fizemos outra gravação. Mas foi a primeira que entrou no álbum.

René e Vito estavam no topo da felicidade. Eles deixaram-me no hotel e foram para o casino. Não para fazer dinheiro mas para ter a certeza que a sorte estava do nosso lado. A famosa teoria das sequências de René… Mais tarde, quando ele voltou ao hotel, ele acordou-me para me dizer que tinha ganho muito e que estava certo que essa canção iria muito longe. E nós também.

− Você vai fazer o "Tonight Show" com essa música, – ele repetia-me – eu estou te dizendo!

 

Depois da cirurgia que a minha mãe tinha feito, eu comprei uma casa em Sainte-Anne-des-Lacs, para que ela pudesse repousar. Era uma grande casa, toda branca: paredes, tetos, mobílias, com muitas janelas. Era uma coisa muito luminosa, quase demais, sobretudo de Inverno, quando a neve cobria o lago e a floresta. Era quase preciso usar óculos escuros dentro de casa durante o dia. Mas os meus pais adoravam essa casa. Eu também. No Outono, quando terminei a gravação de Unison, eu passei lá algumas semanas.

Há um ano que eu vivia quase sempre em hotéis no centro das grandes cidades, Los Angeles, Nova Iorque, Paris, Londres. Eu precisava de ar puro, de espaço. Eu queria reflectir, pensar em mim.

Quando estávamos no Québec, René e eu tínhamos que fingir não estar juntos. Aos jornalistas que me perguntavam se eu estava apaixonada, eu tinha que responder ainda que eu não tinha tempo nem lugar na minha vida nem no meu coração para um homem.

[215] Essas mentiras repetidas, vividas à luz do dia, causavam-me muita dor. Eu estava confusa e dividida.

Eu tinha acabado de gravar o meu primeiro álbum em Inglês. Doze canções que falavam de amor, de grandes paixões. Eu preparava-me para gravar, em New Orleans, um videoclipe no qual aparecia muito sensual, provocante, com uma grande experiência nas coisas do amor. Para as fotos de imprensa e para o lançamento de Unison, pentearam-me, maquiaram-me e vestiram-me de um jeito mais sensual ainda. Eu tinha jeans justos, um corpete preto que mostrava os meus ombros e a minha barriga.

Na vida real eu devia continuar a dizer que era uma menina que não sabia nada de amor. Pelo contrário, no palco e na televisão e nas minhas canções eu devia-me comportar como uma mulher feita, preenchida e amada. Era um jogo, com certeza. Era o show-business, fingir. Mas, para mim, era o mundo pelo avesso.

Estranhamente, no universo do show-business, o mundo de ilusão e de ficção, nas canções, nos videoclipes, nas fotos, onde todas as mentiras e maquilhagens são permitidas, eu dizia a verdade. Na vida real, onde eu queria ser verdadeira, eu tinha que me forçar a mentir todos os dias e dizer que vivia sem amor. O meu maior sonho era que o mundo inteiro soubesse que eu amava René Angélil e que ele me amava, que fazíamos amor, que queríamos ter filhos um dia, que queríamos construir uma vida juntos. Mas René recusava.

− É muito cedo. Vamos esperar mais um pouco.

Mesmo assim, cada vez mais pessoas sabiam muito bem o que estava acontecendo.

Paul Burger, que se tinha tornado presidente da Sony-Canadá, contou-me anos mais tarde:

− Desde que eu vi vocês eu percebi que vocês estavam juntos. Era evidente. Eu não entendia porque demorou tanto tempo até vocês confessarem.

− Pergunte a René.

Paul veio ver-me em Sainte-Anne-des-Lacs. A nossa casa estava cheia de gente, como sempre: os meus pais, os meus irmãos, as minhas irmãs, René, os seus filhos. Nós tínhamos-nos tornado no centro de atenção das nossas famílias.

Paul é americano, mas ele viveu em Israel, na França, na Inglaterra. Ele falava várias línguas, entre as quais Francês com a minha mãe e com as minhas irmãs, que o achavam lindo e charmoso. Ele iria-se tornar num amigo íntimo e precioso. E ele teria, durante anos, um papel muito importante na minha carreira.

Ele tinha-nos vindo dizer, entre outras coisas, que ele não estava muito satisfeito com todas as canções que tínhamos gravada para o álbum Unison.

− Na minha opinião falta uma ou duas canções com mais ritmo, para valorizar ainda mais a sua voz. Se você estiver de acordo, voltamos para o estúdio que você quiser, com quem você quiser.

Eu escolhi Londres com Chris Neil.

René estava feliz. Ele estava muito satisfeito com a maioria das canções que tínhamos gravado mas ele achava também que faltava qualquer coisa no total. [217] Mas ele tinha tido medo que a Sony recusasse investir mais nesse álbum que já estava custando muito caro.

Nesse dia, em Sainte-Anne-des-Lacs, Paul falou do meu look, para me dizer que o achava um pouco velho, para não dizer com todas as letras que estava fora de moda. Ele repetiu-me que, para colocar um disco no mercado, a cantora tem que ter um look… e que eu não tinha o meu look.

− Tenho certeza que você não se está a vestir como você gostaria de se vestir.

Era verdade. Eu tinha canções com as quais me identificava. Mas as roupas não me diziam nada. Muitas vezes nem tinham nada a haver comigo. Eu tinha um closet cheio, pelo menos cem pares de sapatos, uns cem vestidos, três ou quatro casacos de pele, muita roupa interior e lingerie chique. Eu seguia a moda. Eu seguia os outros, na verdade.

− Não é isso que você tem que fazer. – Dizia Paul – Você tem que criar a moda.

Eu queria. Mas, ao mesmo tempo, eu não era do tipo provocador capaz de representar um personagem, que nem Madonna, por exemplo, que tinha já um teatro inteiro e uma lenda bem estabelecidas.

Eu adorava criar looks, eu já tinha uma paixão pela moda. Mas o que eu amava, acima de tudo, era cantar, o prazer físico de cantar diante de uma multidão. Quanto maior a multidão e quanto maior o palco, maior o meu prazer.

Eu sabia bem que era com a minha voz que eu tocava as pessoas, não com o meu look. Mas mesmo assim, Paul tinha razão. O show-business é um negócio visual. As observações que ele me fez nesse dia em Sainte-Anne-des-Lacs convenceram-me que eu devia trabalhar igualmente esse lado, ter mais audácia, ser menos correcta.

− Você só tem que se deixar levar. – Dizia-me ele – Vá ao limite da sua loucura. Eu sei que você gosta da moda. Dá para ver.

O que me comovia mais na intervenção dele foi o facto de ver que o grande patrão da Sony se importava com o meu futuro.

Eu tinha o apoio de uma enorme multinacional. Perto de mim eu tinha um manager atencioso e com experiência, apaixonado, cada vez mais conhecedor das engrenagens do show-business americano.

Todas as esperanças me eram permitidas. A minha vida começava a parecer um verdadeiro conto de fadas.

 

Pouco depois do lançamento de Unison, três anos depois de Incognito, eu aceitei entrar na mini-série Des Fleurs Sur La Neige. Eu tinha a personagem de uma jovem mulher, Élisa, abandonada muito jovem pela sua mãe, espancada por um pai bêbedo, estuprada pelo seu padrasto, abusada por um marido brutal e maldoso… Era uma história real, insuportável.

Durante algumas semanas, eu vivi o contrário do meu conto de fadas, todos os dias no fundo dos infernos. Eu não era mais a cantora que se preparava para conquistar o mercado americano. Eu era uma pobre menina desfeita e infeliz, sem meios, sem futuro, sem outro projecto senão escapar de um meio insuportável.

A gravação foi penosa. Primeiro, eu tinha tido medo de entrar na pele de um personagem tão infeliz, tão ameaçado e magoado. Eu tive que aprender a andar com as costas curvadas, a ter sempre o olhar baixo, a falar baixinho e a me comportar como uma vítima.

[219] Havia também, especialmente no começo, uma certa antipatia da parte dos actores saídos das escolas de teatro, que me viam como uma intrusa e que, até no final, se recusaram a me considerar como uma deles. Isso ajudava-me, de certa forma, a entrar na pele de Élisa, que também era rejeitada e ignorada pelas pessoas em sua volta. Eu representava até no limite. Eu vivia o seu inferno.

Eu gravei muitas cenas violentas, moralmente e fisicamente. Quando era preciso chorar, eu chorava de verdade, quando era preciso sofrer eu sofria. Depois de alguns dias, eu fiquei cheia de hematomas, eu tinha o coração partido, eu tinha medo de todo o mundo. Era terrível. Mas eu adorei essa experiência. E, desde esse dia, eu sonho fazer cinema. Interpretar um personagem, entrar na sua pele e dar uma alma é uma experiência única e maravilhosa.

 

Numa sexta-feira à noite, voltando para Sainte-Anne-des-Lacs depois de um longo dia de gravação, eu reconheci na estrada o carro do sobrinho de René, Martin. Ele levava Karine para passar o final de semana na minha casa. O ar puro de Laurentides fazia bem para ela. Ela estava cada vez mais enfraquecida pela doença, cada vez mais pálida e derrotada, que nem o meu personagem. Mas ela tinha o seu bom humor, ela lutava sempre. Ultrapassando o carro de Martin, eu fiz um grande sorriso para ele e acenei com a mão. Depois eu perdi o controle do carro, que fez um violento pião e saiu da estrada em recuo.

Eu não fiquei machucada mas o carro ficou muito estragado. Eu não me lembro de ter tido medo. Pelo contrário, acho que o choque me acordou, me fez sair da pele de Élisa para me trazer de volta para a minha.

Eu acreditava, nessa época, que nada de ruim poderia acontecer a mim, Céline Dion. Eu tinha muitos projectos, esperanças e sonhos que, no meu espírito, não podiam ficar por realizar.

Eu descobriria em breve que as coisas não eram assim tão simples. Não é suficiente querer ou sonhar. Mas mesmo assim, eu tive períodos na vida em que me sentia invulnerável. E esse era um desses períodos.

Avisado pela minha mãe, René voltou correndo de Las Vegas. Ele jurou-me que nunca mais me deixaria sozinha quando eu estivesse trabalhando.

Eu sabia que era uma promessa impossível. Eu sabia que seriamos um casal diferente dos outros. Ele tinha as suas paixões: Las Vegas, o jogo, o golfe, os seus amigos, o seu trabalho, toda essa rede de contactos que ele estava estabelecendo com o show-business americano. Eu achava, e ainda acho, que uma mulher não pode impedir o homem que ela ama de viver a sua vida, os seus sonhos, de ter o seu mundo. E vice-versa. Senão o relacionamento vira uma escravidão. Cada um diminui-se do seu lado ou diminui a sua porção de felicidade, de sonhos. E isso acaba fatalmente por diminuir o relacionamento…

Eu estava feliz, é claro, quando René estava perto de mim. Quando ele me falava dos nossos projectos ou quando ele me contava as aventuras dos Beatles ou do Elvis. Mas eu amava-o também pelo seu amor pelo jogo, todos os jogos, por essa necessidade de estar sempre rodeado pelos seus amigos. [221] Eu amava-o porque ele era livre e imprevisível. Eu amava-o mesmo pelas suas ausências, as suas ausências físicas quando ele ia para Las Vegas ou Los Angeles. Então eu sonhava com ele, a gente se falava muitas vezes e por muito tempo ao telefone, a sua voz deixava-me sempre feliz.

Eu amava-o por esses momentos que ele passava na Lua, mesmo do meu lado, mergulhado nos seus pensamentos, reflectindo no que devíamos fazer, o que ele devia dizer aos patrões da Sony ou aos jornalistas. Eu sabia que ele trabalhava para alargar a minha carreira, que ele colocava todo o seu talento, todo o seu tempo, todo o seu amor. Ele amava-me, entre outras coisas, por essa confiança que eu tinha nele e porque eu sabia ser autónoma e independente. Eu não era uma menina-mulher. Eu era uma mulher madura e forte. Eu tornei-me no tipo de mulher que ele amava: uma mulher livre que confiava nele e que o deixava livre.

− Eu sei que você está a ser sincero, − eu falava para ele – e eu acredito em você mas eu nunca vou ficar brava com você, eu te juro, se você não cumprir essa promessa.

E depois era eu quem prometia.

Eu nunca te impedirei de viajar, de jogar blackjack ou golfe do outro lado do mundo, com Marc, Jacques, Ben, Rosaire e os outros. Eu amo-te como você é. Nunca mude. Mas a gente tem que falar tudo um para o outro, sempre.

Eu aceitei mesmo guardar segredo sobre o nosso amor porque ele queria. Mesmo quando nós estávamos, como nesse Verão, mergulhados os dois na acção, com mil coisas para fazer, a nossa vida mudava constantemente. Por momentos eu era verdadeiramente muito feliz, realizada.

Nós passámos o final de semana juntos. Na segunda-feira de manhã, ele levou-me a Montreal, onde devíamos recomeçar as gravações de Les Fleurs Sur La Neige. Eu mostrei o lugar onde tinha tido o acidente na passada sexta-feira.

− Não podemos correr riscos. – Dizia-me ele – A partir de agora, se eu não puder estar perto de você, eu vou dar um jeito de você ter sempre um motorista.

− Mas eu não quero um motorista. Eu adoro guiar, você sabe. E eu adoro estar sozinha. Ou com você. Se eu tiver um motorista, você sabe como eu sou, vou sentir-me obrigada a falar com ele.

− Você tem que se acostumar, Céline. Um dia você vai ter um guarda-costas com você, uma mulher para te vestir, uma estilista, uma secretária, tudo o que as grandes estrelas têm em sua volta. Ele dizia-me, muito calmamente, sem sombra de dúvida na voz, que eu cantaria em breve, dentro de dois ou três anos, pelo mundo inteiro. Mas, no mesmo fôlego, ele me informou que o álbum Unison não estava tendo o sucesso que ele esperava. Tinha sido concebido para o mercado americano mas não tinha saído do Québec. Apesar da grande campanha de promoção que eu tinha feito na Canadá inglês, nenhuma rádio tocava as minhas canções, nem em Toronto, nem em Vancouver, nem em Halifax. E os patrões da Sony americana tinham decidido esperar mais algum tempo antes de o lançar nos Estados Unidos.

Eram essas as más notícias. Ele nunca me teria contado isso se não tivesse tido, para finalizar, uma boa notícia ou pelo menos uma solução para os nossos problemas.

Em Las Vegas, René tinha descoberto que a Sony-Internacional iria fazer a sua convenção anual no Chateau Frontenac, no Québec. Ele tinha mobilizado Paul Burger e toda a Sony-Canadá para que eles convencessem os patrões a me deixarem cantar duas cançõezinhas durante essa convenção.

Se existe uma pessoa no mundo sensível ao charme de René Angélil, essa pessoa sou eu. Mas, mesmo assim, eu estava fascinada e maravilhada com o jeito que ele tinha de criar ligações e pontes por todos os lugares onde passávamos, o seu jeito de convencer as pessoas.

Eu gosto de falar com as pessoas também, mas eu não tenho o mesmo sentido de organização que o René tem. Eu não vou pedir a todas as pessoas que conheço para entrarem no meu barco, mesmo quando elas são todas muito simpáticas. Ele fazia sempre isso. Assim que ele considerava que essa pessoa nos podia trazer alguma coisa de bom, ajudar os nossos planos, fazer avançar o barco, nem que fosse para nos fazer rir, ele convidava-s para o nosso barco.

[223] Quando nós tínhamos começado a preparar Unison em Malibu, ele conheceu um monte de pessoas do show-business. Se, para a gravação de uma canção, ele precisava de um trompetista ou um tocador de triângulo, ele sabia quem era o melhor e contactava com ele. O trompetista ou o tocador de triângulo chegavam depois, cheios de ideias, felizes por trabalhar com a gente. Unison era, por isso, um álbum de grande qualidade, tecnicamente impecável.

− Você sabe, Céline, que esse álbum é um grande álbum?

− Claro que sim, claro que sei.

− Agora temos que levá-lo a ser escutado e colocá-lo no mercado. Para isso temos que ter o apoio da grande máquina da Sony. Quando eles te virem cantando no Québec, eles vão apostar, confie em mim.

 

No Québec, eu tinha que cantar às nove e meia da manhã, enquanto os congressistas e os jornalistas tomavam o café da manhã. Eu acho que nunca na vida eu tinha cantado antes do meio da tarde, mesmo quando morava em Charlemagne e quando a casa estava cheia de música. Eu detestava as manhãs, excepto quando se passavam em calma absoluta e com o maior silêncio possível.

E mais, eu sabia que muitos congressistas nem estariam bem acordados. A maioria deles teriam ido para a balada até tarde na noite anterior – o Québec é uma cidade onde se faz muitas festas. Muitos deles estariam de ressaca e não teriam a menor vontade de escutar uma cantora que eles conheciam mal cantando sobre instrumental gravado.

Eu acordei de madrugada, para ter tempo de acordar bem, de tomar o café, fazer as minhas vocalizações e exercícios vocais. Para me ter em boa forma, René repetia-me que os grandes patrões da Sony estariam presentes, bem como os jornalistas mais sérios do show-business americano e que era a ocasião perfeita para eu me fazer escutar… ou voltar para a estaca zero.

René tinha mandado instalar na sala de baile do Chateau Frontenac um potente sistema de som, capaz de fazer tremer o Cabo Diamant e acordar os mortos.

Eu cantei "Where Does My Heart Beat Now" às nove e meia da manhã enquanto eles tomavam o seu segundo café. Durante um momento eles tinham um ar paralisado, tanto que eu quase comecei a rir.

Quando a minha canção terminou, eu fiquei de pé diante deles. Eu escutava o chiar dos amplificadores. Os meus olhos cruzaram-se com os de René, que estava no fundo da sala. Eu disse a mim mesma que ele devia estar-se perguntando, como eu, o que estava acontecendo. Nada durante uns segundos. Depois eles explodiram. Eles levantaram-se em massa e fizeram-me uma ovação que nem um trovão, mesmo os grandes patrões da Sony, os jornalistas de Hollywood e da Broadway, do Québec, de Trois-Rivières, de Val-D’Or e de Sept-Îles.

No dia seguinte, o grande patrão da Sony teve uma reunião com René. Ele tinha tomado a decisão de avançar com o lançamento de Unison nos Estados Unidos. Ele faria uma vasta campanha de promoção. Tínhamos vencido.

Dois meses mais tarde, a previsão que René tinha feito em Londres, diante de Chris Neil e de Vito, no dia da gravação de "Where Does My Heart Beat Now" realizava-se. Eu ia cantar essa mesma canção no Tonight Show, diante de nem sei quantos milhões de americanos. De todas as canções que eu gravei, foi a primeira que vendeu nos Estados Unidos e noutros países. [225] Foi também por causa dessa canção que James Horner e Will Jennings, compositor e autor de "My Heart Will Go On", a canção do filme Titanic, me conheceram e quiseram trabalhar comigo.

Eu já tinha ido várias vezes a Los Angeles, eu já tinha viajado muito pelos Estados Unidos e pela Europa e mesmo no Japão, por vezes em primeira classe… mas foi nessa viagem de três ou quatro dias a Los Angeles que eu senti, pela primeira vez, que tinha entrado no famoso "big time" de René.

Dentro da limusina que nos levava ao nosso hotel de Beverly Hills, eu ouvi pela primeira vez na vida uma canção minha na rádio americana. O locutor pronunciou o meu nome "Celeenn Dionn"… e disse duas ou três palavras sobre o álbum Unison, que iria estar à venda dentro de alguns dias. René estava radiante. Ele perguntou ao motorista se ele conhecia a cantora que tinha cantado.

− Não faço ideia.

Então René repetiu o meu nome duas ou três vezes.

Diante do hotel, ele perguntou ao motorista o seu nome, que era Brian, se a minha memória é boa.

− Brian, essa é Celeen Dionn.

Eu apertei a mão que me estendeu Brian e falei para René que ele era um "bebé grande". Mas eu também estava no topo da felicidade.

Na tarde seguinte, ainda com Brian, nós fomos na Sunset Boulevard ver as vitrinas da mais famosa loja de música do mundo: Tower Records.

Havia três cartazes enormes, milhares de discos de George Michael, New Kids on the Block e Céline Dion. Uma enorme foto minha, com o texto escrito "Remember the name because you will never forget the voice."

Lembrem do nome porque vocês numa irão esquecer a voz… Era a fórmula de Michel Drucker, com a qual ele me tinha recebido nos "Champs-Elysées". Parecia que tinha passado uma eternidade e, ao mesmo tempo, parecia que tinha acontecido ontem.

O ar de Los Angeles estava doce. Nós andamos de mãos dadas um longo momento sem falar. Eu tenho a certeza que estávamos pensando na mesma coisa. Tínhamos completado um círculo. Estávamos no ponto de realizar os nossos sonhos mais loucos. As grandes portas do show-business americano estavam-se abrindo na nossa frente. Dentro de alguns meses, nós poderíamos entrar aí com o concerto que estávamos preparando e que, no Outono, levaríamos pelo Québec e pelo Canadá inglês. Tudo parecia escrito no céu.

Mas antes eu teria que enfrentar uma das mais terríveis provações de toda a minha carreira. Durante dias, durante semanas, nós acreditamos os dois que tudo estava definitivamente comprometido.

E dessa vez, a fasquia estava mais alta do que nunca. E não foi nem René nem eu que a fizemos subir.

 

[227] Eu devia começar a minha tour "Unison" diante do meu público fiel de Québec, com quatro concertos seguidos. Dois em Drummondville e dois em Sherbrooke.

O drama aconteceu na terceira noite.

A minha voz quebrou-se do nada. Ela desfez-se como um papel molhado.

Foi um vazio, uma escuridão total. Eu tinha a impressão de estar soprando para dentro de um balão furado. Eu acreditei, naquele momento, que a minha voz nunca mais voltaria. Ou que voltaria desfeita, mudada, irreconhecível.

Eu saí do palco durante um solo de guitarra e dei a entender ao director que não podia continuar. René subiu ao palco para informar o público do que tinha acontecido, assegurando que eles seriam reembolsados e que faríamos o concerto mais tarde, quando eu pudesse. Então as pessoas começaram a aplaudir. Elas levantaram-se para me mostrar o seu apoio. E eu desfiz-me em lágrimas. Nos bastidores eu encontrei Suzanne e ela chorava também. E Mégo. Todo o mundo chorava ou ficava calado.

René chegou na sala e pegou a minha cabeça nas suas mãos. Diante dos músicos, mas como se estivéssemos sozinhos no mundo, ele beijou-me, ele apertou-me nos seus braços muito carinhosamente e embalou-me. Estávamos de pé os dois, junto das escadas do palco. Ele não chorava. Dizia-me:

− Não chore, não chore. Vamos dar um jeito, você vai ver.

Ele tinha razão. Tudo se iria resolver. Mas, de facto, essa experiência ia mudar toda a minha vida, mudar todos os meus costumes, o meu corpo e a minha alma. E, por consequência, a minha voz. Eu não estou exagerando. Dizemos que todas as coisas más nos trazem uma coisa boa. Nesse caso precisamente, isso foi totalmente verdade. Eu iria aprender muito com essa infelicidade que caiu sobre mim nessa noite de Outono em Sherbrooke.

Voltámos a Montreal nessa noite, os dois em silêncio, aterrorizados mas, ao mesmo tempo, juntos, como dizia René, no mesmo barco, vivendo o mesmo drama.

Estávamos a duas semanas da nossa grande estreia em Montreal onde René esperava atrair os grandes patrões da Sony-USA, os produtores, os promotores americanos, para que eles me vissem, me achassem maravilhosa e aceitassem fazer uma tour por toda a América do Norte, depois na Europa, e porque não no mundo inteiro.

Tão perto do sonho, tudo parecia destruir-se.

 

No dia seguinte de manhã, René ligou para aquele que era considerado o melhor otorrinolaringologista do Québec. Ele marcou com o doutor Marcel Belzile. Eu nunca esquecerei o seu nome, a sua preocupação gentil nem a terrível lição que ele me deu.

A sua clínica, onde ele nos esperava no final da tarde, ficava em Longueuil, na margem sul. Eu tinha passado a noite na minha casa em Duvernay, na margem norte. Eu tinha que atravessar toda a cidade, em plena hora de pico, e atravessar três pontes com muitos obstáculos. Depois de ter passado uma meia hora nos engarrafamentos, ficou evidente que nunca poderíamos chegar a tempo e que seria melhor pegar o metro. Eu já tinha viajado de metro com a minha mãe e as minhas irmãs em Montreal, em Tóquio e em Paris.

Mas, nesse dia, eu não tinha vontade. Os corredores e as escadarias por onde passamos para chegar ao metro eram atravessadas por violentas correntes de ar. Um ar frio misturado com calor, não há nada pior para a garganta e para os brônquios.

[229] Eu estava triste, agoniada, pressionada e muito brava. Eu não tinha vontade de me misturar com a multidão. Havia viajantes por tudo quanto é canto. Todos os metros estavam cheios até arrebentar. Mas eu não tinha escolha. Se eu queria terminar a minha tour e fazer a minha estreia em Montreal, eu tinha que ir no doutor Belzile e tinha que ir de metro.

Eu tinha um casaco com capuz (eu sempre adorei capuz), que tinha puxado para a frente do meu rosto. As pessoas pareciam intrigadas, mas ninguém me reconheceu. Ou melhor, ninguém me quis reconhecer, por respeito a René. Ele era conhecido no Québec há mais tempo do que eu, as pessoas devem tê-lo reconhecido. Por consequência, todo o mundo devia saber que quem se escondia debaixo do capuz era eu. Mas ninguém falou. Ninguém me pediu para assinar autógrafos nem para me dizer que amava as minhas canções. As pessoas tinham percebido, eu acho, que alguma coisa fora do normal ou grave estava acontecendo. Deviam ter visto no rosto sombrio do René que ele não tinha vontade de rir ou de falar.

Isso é uma coisa que eu sempre amarei no Québec, essa educação, essa gentileza, essa inteligência. Eles respeitaram o nosso anonimato. Essa cumplicidade emocionou-me muito.

Eu apercebi-me, nesse dia, olhando em minha volta, que eu não vivia uma vida normal. Eu fiquei observando discretamente aquelas pessoas. Era o meu mundo, eram os rostos que eu via todas as noites nas salas onde eu cantava. Eu agora os observava e escutava. Eu dizia a mim mesma que trabalhava para eles. Eram eles que me aplaudiam, que me escutavam, que me amavam. Era por eles que, dentro de alguns dias, eu cantaria no palco do Teatro Saint-Denis.

Numa estação, provavelmente Berri-de-Montigny, tivemos que descer para procurar outra linha. René, que nunca tinha andado de metro, foi pedir informações com os passageiros. Um rapaz, estudante, ofereceu-se para nos guiar, sem pedir nada, mesmo sem apertar a nossa mão. Ele não tentou ver quem estava debaixo do capaz. Ele sabia certamente que era eu. Quando ele nos deixou, ele disse:

− Boa sorte, Monsieur Angélil.

Cinco minutos mais tarde, estávamos em Longueuil, na clínica do doutor Belzile, que ficava mesmo por cima da estação de metro. No meu espírito, isso demoraria apenas alguns minutos. Ele me examinaria, me daria medicamentos ou me daria uma injecção. Ele me diria para repousar e tomar muitos líquidos. E eu poderia cantar amanhã.

Foi um pouco o que ele fez. Mas ele deu-me um sermão que me iria forçar a repensar a minha carreira. Ele deu-me o maior susto da minha vida.

− As suas cordas vocais estão cansadas e irritadas porque você as treinou mal e tratou mal. Você pode continuar a cantar por mais algum tempo mas você tem que, mais cedo ou mais tarde, deixar a sua voz repousar por alguns dias, quem sabe semanas. Senão você tem que ser operada. Essa operação poderá mudar a sua voz, provavelmente o timbre.

[231] Eu arriscava a tornar-me na versão feminina de Joe Cocker ou de Serge Gainsburg.

− As cordas vocais são tão frágeis que têm inimigos em todo o lugar, tanto dentro de você como no ambiente.

Contrariamente ao que eu sempre tinha achado, não são os resfriamentos nem o calor que temos que temer mais. Uma voz em boa condição pode resistir a esse tipo de agressão. É a fumaça do cigarro, o pó, a poluição… são irritantes muito mais perigosos. Mas, pior do que tudo, é o stress, a fadiga e o mau uso da voz.

A fumaça sempre podemos banir do nosso ambiente. O pó também. Podemos ficar longe das pessoas gripadas ou resfriadas. Mas viver sem stress ou sem fadiga, quando o nosso sonho é cantar diante de grandes multidões e por todo o mundo, é um desafio. Eu sabia que, no meu caso, o problema era esse. O problema era o cansaço, a pressão, o stress constante.

− E também o mau uso que você faz das suas cordas vocais há muito tempo – repetia-me o doutor Belzile.

Ele explicou-nos que os nódulos ou pólipos que se desenvolvem nas cordas vocais, e acabam por tirar a sua flexibilidade e elasticidade, não provêm de uma infecção mas sim de um defeito técnico. Uma cantora sem experiência que força a sua voz cantando fora do seu registo natural, por exemplo, ou indo além dos seus limites, pode machucar seriamente as suas cordas vocais. Temos que saber forçar, aprender a colocar a voz.

− Eu posso te curar momentaneamente. Existem misturas de cortisona e de xilocaína que se podem aplicar directamente nas suas cordas vocais. Terá efeitos imediatos a curto termo que vão parecer milagrosos. Mesmo que vocês esteja totalmente afónica agora, você será capaz de cantar com a sua melhor voz daqui a umas horas. Mas há grandes riscos. Se você recorrer a isso regularmente você pode causar rupturas, rasgões. E depois disso você pode ficar incapaz de cantar durante semanas, quem sabe meses. Você pode acabar com a sua voz para sempre. E aí não haveria mais o que fazer. Até uma cirurgia seria inútil.

Ele olhava-me directamente nos olhos, muito intensamente. Eu sentia que o seu maior desejo era curar-me. A sua compaixão emocionava-me.

− Eu estou falando muito sério. Uma vez, duas vezes pode ser, você pode recorrer a esses medicamentos. Mas com a condição de não forçar a voz. Depois você vai ter que aprender de novo a cantar.

Eu bebia as suas palavras. Eu compreendia tudo, todos os perigos que eu tinha corrido, todos os erros que tinha cometido. Eu tomei as minhas decisões na hora. Eu iria curar-me, eu ia mudar. Eu evitaria todos os ambientes com fumaça, com pó ou poluição. Eu evitaria misturar-me com multidões e as visitas de grupo ao meu camarim. Eu ia parar de beijar todo o mundo como sempre fazia.

[233] E eu nunca mais ficaria cansada. A partir de agora eu devia dormir bem e por muito tempo, devia relaxar, desfazer do stress, comer bem, não demais e apenas coisas boas. E eu ia rir muito e estar feliz porque o riso e a felicidade são bons para a saúde e inimigos do stress.

Mas, primeiro do que tudo, eu iria desfazer-me daquilo que o doutor chamava "os maus hábitos de cantora". Eu ia aprender a cantar. Eu voltaria à estaca zero, se fosse preciso, refazer as escalas mais básicas.

Eu saí da clínica do doutor Belzile com essas decisões na cabeça, inabaláveis, eu sabia. Eu sentia-me como um soldado que parte para a guerra. E estava certa da minha cura. Eu sabia que ela dependia apenas de mim. O doutor Belzile tinha-me dito:

− Você pode-se curar se você quiser. É você quem decide.

Quando íamos a sair, ele disse:

− Eu ficaria mais descansado se você consultasse o doutor William Gould, em Nova York. Ele é o melhor otorrinolaringologista do mundo. Tudo o que eu sei eu aprendi dele. Ele te dirá se você tem que ser operada ou se existe outra solução.

Nós tínhamos previsto uma paragem de mais de um mês por volta do Natal. Eu aproveitaria para encontrar o Doutor Gould, esperando que não fosse tarde demais e fazendo o melhor possível para cuidar e proteger a minha voz.

Eu retomei a minha tour depois de dois dias de silêncio. Antes dos concertos eu fazia exercícios de aquecimento e vocalizações. Entre os meus concertos eu ficava em silêncio. Eu sabia que a minha vida de cantora tinha mudado.

 

Eu sentia-me um pouco como as mulheres que iam para o convento. Eu as imaginava felizes e, ao mesmo tempo, assustadas pela perspectiva de viver toda a sua vida até ao fim na presença de Deus, em silêncio e na oração, sozinhas. Durante anos a minha vida iria parecer com a delas, feita de disciplina e de privação, de silêncio, de meditação, de visualização… E, claro, de alegrias intensas.

Mas antes de mergulhar nessa nova vida, eu tinha que terminar a minha tour no Québec e apresentar no meu concerto no teatro de Saint-Denis.

Eu acho que nunca vivi uma estreia tão mexida. Por causa do que me tinha acontecido, tínhamos adiado o concerto por uma semana. Eu estava descansada, a minha voz estava de novo em forma. Mas, por diversas razões, eu não consegui evitar viver momentos de stress assustador.

Primeiro, corria um rumor de que eu estava esgotada. Diziam no nosso meio e nos jornais que os especialistas tinham falado que a minha voz estava acabada. E essa estreia em Saint-Denis seria o meu último concerto, a minha despedida, o meu adeus definitivo ao show-business. Era isso que se escrevia em grandes páginas dos tablóides, o que se dizia na rádio e muitas pessoas acreditavam.

[235] Nós sabíamos bem que era mentira. Mas René tinha medo que os produtores canadianos e americanos acreditassem nesses rumores e deixassem de se envolver nos nossos projectos. Eu tinha então que, nessa noite em Saint-Denis, provar que a minha voz estava em perfeita condição.

Como para me dar ainda mais pressão, eu tinha criado, dois dias antes, um escândalo na Gala ADISQ, recusando o Felix destinado à Cantora de Língua Inglesa do Ano.

As coisas nunca foram fáceis entre o Canadá inglês e o Québec. Montar um concerto em inglês, para um artista do Québec, era considerado na época, mais do que hoje em dia, uma operação extremamente delicada.

Eu tinha aprendido isso dois anos antes, quando a comunidade falante de Francês de Toronto me tinha convidado a cantar no concerto de S. João, apresentado num palco exterior, no Harbour Front, em frente ao lago Ontário.

Eu tinha previsto cantar algumas canções em inglês, entre as quais a velha "What a feeling" e outros clássicos como "Over the Rainbow" e "Summertime"… Quando comecei a cantar em inglês as pessoas vaiaram-me. A maioria dos falantes de francês de Toronto usavam o inglês no seu trabalho e na rua. Mas a festa de S. João é um momento sagrado em que eles reafirmam a sua identidade. Eu não estava acostumada a ser vaiada. Eu comecei a entrar em pânico quando uma grande chuva caiu sobre o Harbour Front e tivemos que interromper o concerto.

Mais tarde, depois do lançamento de Unison, eu tinha apresentado um concerto em inglês, uma noite em Montreal e uma noite em Toronto. Os jornalistas, tanto de um lado como de outro, interrogavam-se se o público do Québec aceitaria que eu cantasse em inglês. No nosso meio, diziam que eu arriscava a perder a minha carreira no Québec.

Mas nada nem ninguém me podia fazer renunciar ao meu sonho de cantar em inglês. Era o único jeito de uma cantora, seja ela de Charlemagne, de Bobigny, de Barcelona ou de Quioto, ser ouvido no mundo inteiro. René e eu tínhamos a certeza que o público do Québec aceitava essa decisão e que me davam a sua bênção. Era a media que fazia essa polémica inútil.

Recusando o Félix destinado à Melhor Cantora de Língua Inglesa do Ano, eu queria colocar os pontos nos is. Eu admito que não fui muito bem na minha declaração:

− Eu não sou uma cantora anglófona. Onde quer que eu vá no mundo, eu digo que sou do Québec.

Do nada, os falantes de Inglês de Montreal ficaram furiosos. A minha declaração dava a entender que eles não eram do Québec, mesmo morando no Québec.

Isso é muito complicado por aqui. A minha estreia em Saint-Denis estava tornando-se num evento político. Tínhamos medo que surgissem manifestações, que eu fosse vaiada…

No entanto, nessa noite, René e eu tivemos direito a aplausos enormes. A noite foi, para nós os dois, um triunfo absoluto. Quando René entrou na sala, poucos minutos antes de subir a cortina, as pessoas aplaudiram muito.

[237] No Québec já havia uma aura em volta dele, por causa do que ele tinha conseguido fazer junto dos grandes patrões do show-business, por causa dos grandes contratos que ele tinha feito com eles e por causa da forma que ele geria a minha carreira. Também pelo seu charme pessoal. Quem sabe também porque as pessoas estavam emocionadas com a nossa história de amor. Mas René não queria saber disso, ele não acreditava ainda.

 

Quando a tour terminou, eu fui para Nova Iorque encontrar o doutor Gould, um homem adorável, muito delicado e cheio de humor.

Nas paredes da pequena sala de espera onde esperámos alguns minutos, havia fotos dele com John Kennedy, Frank Sinatra, Walter Kronkite e muitas outras celebridades que ele tinha curado ao longo de quase meio século de trabalho.

Ele repetiu-me, no geral, o que o doutor Belzile me tinha dito, que as minhas cordas vocais estavam mal. E que era culpa dos meus maus hábitos.

− Provavelmente vamos ter que operar. – Disse-me ele.

Lágrimas rolaram pelo meu rosto. Eu pensava no que o doutor Belzile me tinha falado, que a minha voz ficaria irreconhecivelmente alterada, mudada ao ponto de ficar desconhecida, baça, áspera, acabada.

− Há outra solução – disse o doutor Gould.

− Eu aceito essa – disse eu.

− Se você ficar em silêncio três semanas, podemos quem sabe fazer um tratamento infinitamente menos arriscado e sem qualquer efeito secundário.

Eu fiz um gesto para mostrar que as minhas três semanas de silêncio tinham acabado de começar.

− Quando eu falo de silêncio, é de silêncio absoluto – disse-me ele. – Você nem pode falar durante o sono, nem rir. É muito difícil, você sabe. E não tente enganar. Se você falar, nem que seja uma vez, eu verei quando te examinar.

Eu levantei os meus polegares e pisquei o olho.

Quando eu me fui embora, ele beijou-me muito carinhosamente na testa.

Eu passei o Natal mais estranho de toda a minha vida. Quase todas as noites, os meus irmãos e irmãs cantaram juntos, como sempre tínhamos feito desde que eu me lembro. Mas, pela primeira vez, eu não podia misturar a minha voz com a deles. Eu fazia precursão, maracas ou tamborins. Mas eu sentia-me terrivelmente sozinha no meu silêncio.

Quando o doutor Gould me examinou a meio de Janeiro, ele disse-me que estava orgulhoso de mim.

− Sinceramente, eu achava que você não ia ser capaz – ele disse-me.

Ele parecia verdadeiramente feliz, como se eu lhe tivesse dado um presente.

− Você agora pode começar a treinar.

O seu sócio, o doutor William Riley, iria cuidar de mim e restaurar a minha voz, o que foi um longo trabalho, por vezes penoso mas maravilhoso.

Ele fazia-me trabalhar de pé, na maior parte das vezes. A gente falava um pouco, fazíamos exercícios de aquecimento e depois ele jogava-se para cima de mim, literalmente. Ele pressionava-me na parede com todo o seu peso e fazia-me cantar escalas. [239] Ou então ele colocava-me em posições verdadeiramente desconfortáveis para cantar, como por exemplo, com os braços cruzados, com a cabeça inclinada. E eu tinha que cantar naturalmente.

Com ele, tanto quanto com Eddy Marnay em outros, eu descobri o grande prazer de estudar, de trabalhar, de fazer exercício e esforço. Eddy tinha mudado a minha relação com as palavras. Ele tinha-me ensinado a dor, cor, sentido e peso a cada uma das palavras que eu cantava. Com o doutor Riley eu tinha a impressão de encontrar de novo os ensinamentos do Eddy, a mesma paixão, a mesma intensidade, o mesmo prazer.

Um dia, enquanto fazíamos os nossos exercícios, bateram na porta. O doutor Gould entrou, seguido de um homem terrivelmente imponente. Era Luciano Pavarotti. Depois das apresentações, o doutor me pediu para que eu cantasse qualquer coisa.

− É apenas para Luciano escutar a sua voz – disse ele.

Eu estava tão intimidada que nem pensei em recusar.

− O que você quer que eu cante? – Eu perguntei.

− Não importa, é o que você quiser.

Eu cantei o que me passou pela cabeça, alguns acordes de uma canção que eu não ouvia há muito tempo: "You Bring Me Joy". Luciano Pavarotti fez todo o tipo de elogios e me disse que eu tinha uma voz que tocava directamente o coração. Eu fiquei muito emocionada, com os olhos cheios de lágrimas. O doutor Gould olhava-me, orgulhoso e emocionado, também como se eu fosse sua neta. Depois disso, durante os meus exercícios, no palco e em estúdio, eu pensei muitas vezes na frase de Pavarotti: ter uma voz que toca directamente no coração. E o doutor Riley lembrou-me disso também.

William Riley também é um músico. Ele tem uma voz muito bonita. Ele mostrou-me as infinitas sonoridades que podemos dar às palavras, aos sons, mudando a posição da língua, os lábios e das bochechas. Ele mostrou-me como apoiar a minha voz no rosto, como colocar a cabeça, como utilizar o peito, o rosto. Ele tirava de mim sons que eu nunca tinha escutado, que eu nunca pensei ser capaz de produzir. Graças a ele eu descobri um novo universo musical, vasto, fascinante…

Eu cantava menos com o nariz do que no começo na minha carreira mas ainda havia um toque de nasal na minha voz. Para me corrigir, eu tinha desenvolvido técnicas vocais que o médico achava ineficazes. Ele iria ajudar-me a livrar delas. Ele me propôs exercícios de aquecimento e de elasticidade que deviam durar pelo menos meia hora antes de cada concerto, além de longas sessões de vocalizações.

Ele estava-me fazendo uma demonstração do tipo de exercícios que eu devia fazer a partir de agora todos os dias quando René o interrompeu para lhe perguntar dentro de quanto tempo veríamos os resultados desse trabalho.

− Não haverá nada de perceptível antes de três anos. Dentro de cinco anos Céline terá uma voz melhor.

René ficou boquiaberto. Ele não abriu mais a boca durante toda a sessão. Enquanto esperávamos o elevador para sair da clínica, ele olhou para mim e disse que compreenderia se eu me recusasse a viver isso.

[241] − Eu não te posso pedir para mudar a sua vida durante cinco anos para obter resultados que nem temos a certeza se vamos ver ou não.

Quando entramos no elevador, ele disse:

− Se alguém me oferecesse um regime que me fizesse emagrecer daqui a cinco anos, você pode ter a certeza que eu recusaria logo.

Mas eu já tinha aceitado. Eu não recuaria jamais nem colocaria em questão por uma fracção de segundo. Eu não tinha a menor dúvida. Seria extremamente exigente. Mas teria sido muito mais difícil renunciar: quando desejamos muito conquistar alguma coisa (ou alguma pessoa), temos que ter bons meios para chegar lá.

Alguns dias mais tarde, eu voltei sozinha ao escritório do doutor Riley. Ele tinha-me preparado um conjunto de exercícios que eu tinha que fazer todos os dias, excepto na véspera de um show ou de uma gravação, porque eu tinha que fazer silêncio.

Depois ele fez-me recomendações. E, como bom artista que ele era, ele aconselhou-me a esquecer essas técnicas quando estava no palco.

− Você não pode deixar isso transparecer senão vai perder o sentimento. E não faça demais. Mesmo que você treine 12 horas por dia, não vai acontecer mais depressa. Você tem que dar tempo para a sua voz se desacostumar dos maus hábitos e assimilar novos. Demais por vezes é pior do que pouco.

Do outro lado havia o consultório de outra otorrinolaringologista, que iria, ela também, se tornar numa grande amiga, Gwen Korovin. Eu passei horas com ela estudando os órgãos da voz. Ela mostrava-me imagens de livros: a laringe com as cordas vocais de cada lado, a traqueia, a faringe. Ela colocava-me uma câmara dentro da garganta e eu via, num monitor, a fonte da minha voz, as cordas vocais que palpitavam… ela explicava-me que a tensão e os movimentos que eu lhes dava produziam um som mais ou menos sem forma. A minha boca e a minha língua modelavam esse som e criavam palavras e notas.

Mas tudo isso se parece com o golfe: no começo ficamos paralisados. Quando começamos a seguir as aulas, descobrimos que existe um milhão de coisas nas quais pensar: posição dos ombros, da cabeça, movimento dos braços, estratégia do olhar, etc. Com Gwen, eu descobri até que ponto cantar, falar, proferir um simples som, mesmo respirar, eram respirações complexas.

Era como se eu recomeçasse do zero, como se eu reaprendesse não apenas a cantar mas também a falar, a respirar, a mexer, a andar, a ficar de pé ou sentada. Eu ganhei o costume de não me apoiar nas costas da cadeira, de não colocar os cotovelos sobre a mesa ou apoiar a cabeça com as mãos. Eu nem gostava mais de poltronas demasiado profundas e moles. Eu era dura: um verdadeiro soldado em treino.

Felizmente, eu esquecia tudo isso quando chegava ao palco. Eu cantava por prazer, sem pensar no que estava aprendendo.

Eu segui o meu regime vocal como uma maníaca. Todos os dias, excepto quando era dia de silêncio. Eu adorei isso. Eu encontrei nisso um prazer verdadeiro, quase desportivo. De facto, o meu treino era muito próximo do treino dos atletas.

Eu começava por fazer inspirações e alongamentos, torções do pescoço. Depois aquecia a voz, pegava uma nota e segurava o maior tempo possível, sem forçar, até ao fim do meu fôlego. [243] Eu fazia a minha voz viajar pelo meu corpo: a voz da cabeça, a voz do nariz, a voz da garganta, a voz do ventre.

Eu pensava em texturas e em cores e tentava traduzir, transmitir na minha voz. Eu fazia um crescendo de séries de sons, apoiando-me cada vez mais em cada nota, mudando de ritmo e de tonalidade. E eu recomeçava, recomeçava, recomeçava… É esse o segredo: ser capaz de recomeçar, continuando a colocar o seu coração, a paixão.

Era um jogo. Era um tipo de teste também. Se eu não estava bem, se eu estava distraída ou preocupava, dava logo para ouvir. Então eu tinha que recomeçar, acalmar-me, controlar-me, até que a minha voz encontrasse a vibração, a cor e a textura desejada.

A voz tem costumes e caprichos. E também tem ciclos. Em alguns dias, por exemplo, quando estou menstruada, ela parece-me ter menos cor. E não há nada a fazer. Por vezes ela está menos dócil, quer dizer, eu tenho mais dificuldade em controlá-la. Então, é como se nós duas brigássemos. Ela ficava amuada comigo, ela afasta-se de mim.

Mas, com os exercícios do doutor Riley, eu conseguia sempre encontrá-la. Passamos sozinhas, a minha voz e eu, dentro do meu camarim ou do meu quarto, lindos momentos.

O mais difícil, no começo, era o silêncio, os grandes mergulhos solitários no silêncio. Na primeira vez, especialmente. Durante três semanas eu atravessei um deserto, eu achei que nunca mais acabaria.

Eu via na minha cabeça filmes de terror, verdadeiros pesadelos. Há um do qual ainda me lembro: eu tinha ficado muda para sempre. Eu estava aterrorizada, desfeita. Mas eu ia até ao fim. A minha mãe entrava no quarto e encontrava-me chorando. Eu interrompia os meus pensamentos para dizer, por gestos, que isso era um jogo, que ela não tinha que se preocupar. Quando ela me deixava, eu voltava para os meus pensamentos. E eu levava até ao final, até ter um final feliz: eu não cantava mais mas eu dava entrevistas, Manon estava lá, ou Suzanne, elas liam os meus lábios e traduziam as minhas respostas aos jornalistas. Eu tinha coisas a dizer e eu trabalhava. Eu tinha-me tornado numa grande pianista, eu escrevia letras e melodias de canções, romances, roteiros de filmes, videoclipes, eu tinha ideias…. Tudo o que eu tinha no meu coração e que antes passava pela minha voz, agora tomava outro caminho. Isso consolava-me, a vida continuava.

Pouco a pouco eu iria acostumar-me a esses períodos de silêncio, esses momentos de repouso, que me permitiam desligar de verdade. É um mundo à parte, um país. Eu voltarei sempre para ele, do mesmo jeito que sempre volto ao Québec.

Com a minha irmã Manon e com Suzanne Gingue e algumas outras pessoas, eu desenvolvi uma linguagem de sinais que funciona muito bem. Elas podem ler facilmente e rapidamente os meus lábios também. As mulheres da minha equipa são muito mais hábeis a entender-me do que os homens. [245] René precisa que eu faça um desenho ou chame Manon para o ajudar. Por vezes, pensando que ia facilitar as coisas, ele fingia que me entendia. Mas ele finge mal. Eu sei, eu vejo. O meu irmão Michel é igual. Os homens têm a reacção de, quando eu me exprimo assim, falar mais alto e mais lentamente como se eu fosse surda ou retardada. As meninas, pelo contrário, fazem que nem eu, elas falam baixo, por vezes sem voz. E isso cria entre nós um clima de paz.

Maman e eu tínhamos um código para falar o telefone.

− Você dormiu bem, minha pequenininha?

Eu batia uma vez com a unha no telefone para dizer que sim.

− Você cortou o cabelo?

Batia duas vezes com a unha para dizer não.

− O seu pai está mandando um beijo e eu também.

Eu batia uma série de vezes com a unha para mandar beijos para eles.

 

O silêncio tornou-se, cada vez mais, uma espécie de refúgio. Eu tinha a impressão, em alguns dias, de ser invisível, como se os outros não me vissem, não me falassem, como se eu não tivesse nada para lhes dizer. Eu observava o mundo sem ser vista.

Foi nessa época que comecei a escutar dentro de mim uma vozinha que vinha na minha cabeça e que me contava melodias que me deixavam alegre. Eu trabalhava-as durante alguns dias mas depois esquecia-as. Eu cheguei a guardar algumas e pensar em fazer delas canções. Mas eu nunca levei esses projectos para a frente. Eu faria isso quem sabe um dia.

Eu sentia que eu saía sempre mais forte dos meus períodos de silêncio, tão bem que eu nunca mais poderia viver sem eles. Hoje em dia, mesmo quando não tenho que cantar e proteger a voz, eu fico longas horas em silêncio. As religiosas e os monges fechados num convento fazem isso desde sempre. Não é sem motivo. Isso dá uma visão diferente do mundo, muito clara e transparente.

Eu não sou religiosa mas eu tenho muito respeito pelas pessoas que praticam seriamente uma religião, devido à disciplina que é imposta sobre eles. Existe uma verdade nisso. E o silêncio para mim é o ponto de partida. É muito vasto, como a solidão, como a música.

Depois de longos meses de vocalizações e mergulhada em silêncio, eu não via nenhuma mudança na minha voz. Mas eu nunca desisti. Eu nunca duvidei. E eu descobria a cada dia que cantar era um prazer maior.

 

René procurava constantemente criar eventos. Cada vez que ele via um palco em algum lugar, ele queria que eu subisse nele. Onde quer que se reunisse uma multidão, ele queria que eu cantasse, que me escutassem, que me aplaudissem. Ele dava um jeito em tudo para que isso acontecesse. Ele trabalhava o tempo todo, em tudo quanto era canto.

Ele não tinha um escritório. De facto, o seu escritório era onde ele estava: no restaurante, no carro, na sua casa, na minha casa. Tinha sempre pessoas para encontrar, mil e uma ligações de telefone… Mas ele não tinha agenda nem bloco de notas nem lista telefónica. Eu não conhecia ninguém que trabalhasse assim. Ele tem uma memória fenomenal para os números e para as datas e para os números de telefone.

Ele acorda de manhã dizendo que é o aniversário de alguma pessoa que ele conhece ou de um evento importante da sua vida ou da minha carreira. Ele dirá, por exemplo:

− Faz dois anos que você gravou Unison em Nova Iorque.

Ou:

− O meu pai faria hoje 81 anos.

Ou ainda:

− Na primeira vez que você foi no Tonight Show foi no dia 21 de Setembro mas foi numa sexta-feira, não num domingo como este ano.

Ele tinha decidido que o dia em que a minha carreira tinha começado tinha sido no dia 19 de Junho de 1981, no dia em que eu tinha feito a emissão de televisão com Michel Jasmim. Dez anos mais tarde, ele tinha um pretexto para celebrarmos no Forum de Montreal, os meus dez anos de carreira.

[247] Eu tinha acabado a minha primeira tour pelo Canadá inteiro. Tinha durado todo o Inverno. Essa tour tinha começado muito devagar. Eu tinha cantado em pequenas salas no Oeste Canadense, Edmonton, Calgary, Vancouver. Mas depois de ter vencido dois Juno (Melhor Cantora e Melhor Álbum do Ano), "Where Does My Heart Beat Now" subiu no topo de quase todos os tops americanos e David Letterman convidou-me para o seu "Late Show". Eu tornei-me numa grande estrela do dia para a noite, de um lado ao outro do país. Num piscar de olhos os ingressos venderam-se. Eu fui cantar concertos esgotados nas maiores salas da maioria das cidades canadenses.

Eu tinha então medo que essa noite de aniversário se tornasse num momento triunfalista. Eu não gosto das pessoas que proclamam o seu sucesso e a sua boa sorte. Eu não queria parecer uma menina que vive cantando vitória.

− Porquê não? – dizia-me René – Você conseguiu o que mais nenhum artista Canadense conseguiu. Você triunfou em todo o Canadá. Agora você está voltando a casa. Você tem que celebrar. Você tem o direito de estar orgulhosa do que você conseguiu. Não é arrogância, é alegria. Você tem que mostrar a sua felicidade ao mundo.

Como sempre, ele tinha razão. Como ele sempre faz, ele levou-me, ele envolveu-me no seu projecto. É essa a sua força, o seu génio, ele sempre leva todo o mundo no seu projecto, começando por mim.

Ele queria que esse concerto no Forum lembrasse os grandes momentos da minha carreira. Em canções, claro, mas também com imagens projectadas numa tela gigante. Eu passei então duas longas noites assistindo com ele a emissões de TV e de concertos que eu tinha feito ao longo dos últimos anos e que ele me mostrou em ordem cronológica. Por momentos eu não podia acreditar no que estava vendo nem no que estava ouvindo.

− O quê? Eu tinha um vestido ridículo! Eu fui para a televisão com aqueles dentes? E com aqueles cabelos? E com aquela voz nasal?

René estava emocionado, maravilhado.

− Você está vendo o caminho que você percorreu? – Dizia ele – Você evoluiu sem parar, você mudou, você aprendeu sem parar.

Graças a ele, eu reconciliei-me com algumas imagens minhas que eu nunca tinha gostado. Para começar, com a imagem daquela menina de 13 anos que, dez anos antes, tinha cantando "Ce N’Était Qu’Un Rêve" na emissão de Michel Jasmin e que lhe tinha dito que não precisava de aulas de canto nem de aprender nada.

Essa menina emocionou-me pela sua ingenuidade. Eu encontrava a sua voz, nos seus olhos, mesmo nas suas palavras desajeitadas, o fervor e a frescura do seu sonho, do meu sonho.

Eu revivi momentos muito emocionantes como o dia em que cantei "Une Colombe" na frente do Papa no estádio Olímpico. Eu ri muito ao me ver chorar nas galas ADISQ. Eu revi-me nas ruas de Paris com Mia e Eddy, depois no teatro Budokan de Tóquio quando venci o grande prémio do festival Yamaha, no palco de Tonight Show também, sentada entre Jay Leno e Phil Collins, que me tinha tido, depois de me ver cantar:

− A gente vai-se ver de novo.

E eu tinha-lhe respondido:

− Pode apostar.

E eles tinham rido os dois.

Eu revi-me no palco do Olympia. Depois, no enorme palco flutuante do Vieux-Port do Québec, com um monte de besouros à minha volta. Também em Los Angeles, com René, abraçados na frente da Tower Record...

Ao longo dos dias seguintes, fizemos uma seleção de imagens e de canções. Eu estava feliz e orgulhosa.

O show do dia 19 de Junho foi, do começo ao fim, um delírio total. Eu fui acompanhada pela Orquestra Sinfónica Metropolitana, 65 músicos e, na maioria do tempo, pelos milhares de fãs que enchiam o fórum e conheciam todas as minhas canções. Eu falei muito. Eu agradeci aos autores e aos compositores que trabalharam comigo. Antes de cantar "Ce N’Était Qu’Un Rêve", eu fiz uma homenagem à minha mãe, ela que tinha começado toda essa aventura. Os fãs levantaram-se para aplaudir.

Quando voltei ao palco, no encore, trazia vestido uma camisa da equipe de hockey do Canadá e, na mão, uma bandeira de Québec. Tinha sido ideia do René, tipo uma piscada de olho e um jeito de reconciliar independentistas e federalistas, intelectuais e desportistas… Eu nunca tinha escutado um aplauso assim. Durante muitos minutos eu não conseguir falar. Depois as pessoas fizeram a onda e começaram a cantar a bela canção de Gilles Vigneault, que se canta no Québec ao invés da canção de Parabéns:

Minha querida Céline

Agora é a sua vez

De se deixar

Falar de amor

Eu cantei, no Forum, um medley de canções da ópera-rock Starmania, que eu cantava no tempo da tour "Incognito". Seduzido, Vito Luprano propôs-me fazer um álbum com os maiores sucessos de Luc Plamondon. A ideia agradou-me logo. Não só porque eu adorava trabalhar com Luc Plamondon mas porque é um grande desafio retomar canções conhecidas e popularizadas por outros cantores e dar uma interpretação diferente. [249] Fazer o novo com o velho. E mais, Luc iria escrever-me quatro canções novas.

Eu me envolvi mais do que nunca nesse álbum. Até aí, eu apenas entrava em estúdio quando tudo estava pronto. Os arranjos estavam feitos, a orquestra estava gravada. Eu apenas tinha que cantar.

Dessa vez eu trabalhei na escolha das canções e na produção, com a pessoa que fazia os arranjos, com o produtor, com o autor e os compositores… Nós gravamos no Outono, no estúdio de Michel Berger, na avenida Batignolles, em Paris. Eu vivi aí, momentos de grande felicidade.

Uma noite depois da gravação de uma das quatro canções originais do álbum, René e eu encontramo-nos, sozinhos na pequena cozinha do estúdio (um iorgurte para mim, uma Coca-Cola light para ele). Ele falou para mim, baixinho, como se fosse um segredo:

− Sabe, o Doutor Riley tinha razão. A sua voz está mais linda do que nunca…

− Mas nem faz um ano, meu amor, que eu estou treinando com ele! Ele disse que a gente só ia ver os resultados dentro de quatro ou cinco anos.

− Então imagine como será quando a gente for ver finalmente os famosos resultados!

Eu não tinha falado a ninguém mas eu também achava que a minha voz tinha começado a mudar. Estava mais ampla, com mais nuances, mais flexível. O timbre estava claro e transparente. E, acima de tudo, eu tinha uma escolha de cores e textura cada vez mais larga: veludo, cristal, verduras, etc. Cantar trazia-me mais felicidade do que eu jamais tinha sentido.

A cada dois meses, mais ou menos, eu ia ver o Doutor Riley em Nova Iorque. Nós tínhamos por vezes sessões de trabalho muito exigentes, por vezes também apenas falávamos sobre as vozes, sobre as músicas e os sons que mais gostávamos… Eu saía sempre estimulada, cheia de energia, determinada. Onde quer que eu esteja, em Montreal ou em Paris, ou em qualquer parte da tour, eu faço as minhas vocalizações, eu sigo os meus regimes. Nos dias em que eu cantava eu nunca ingeria produtos lácteos, álcool, refrigerantes, chá, café, frutas ácidos. Apenas água morna, de vez em quando um suco de frutas, uma infusão.

Eu amei apaixonadamente a disciplina, a verdadeira disciplina muito forte e muito rigorosa que eu impus a mim mesma nessa época. Eu fiz isso por quase 10 anos. O mais difícil é nunca desistir. Não comer a sobremesa, batata frita ou amendoins de vez em quando é muito fácil. Se privar todos os dias ao mesmo tempo que muitas outras coisas, é outra história. Temos que nos tornar máquinas que não pensam em algumas coisas e que fazem mecanicamente alguns gestos, que esquece o sabor do bolo de caramelo, do creme inglês e do melaço, que se fecha hermeticamente a certos prazeres da vida e que nunca falha…. Bizarramente, todas essas pequenas privações juntas criaram um bem-estar, felicidade. É o facto de ter controle sobre mim mesma, eu acho.

Eu fazia os meus exercícios e as minhas vocalizações com grande prazer. Antes de cada show eu mergulhava no silêncio absoluto durante vinte e quatro ou quarenta e duas horas, por vezes durante quatro ou cinco dias, para deixar repousar as minhas cordas vocais mas também para descer até ao fundo de mim mesma. Eu dormia muito também, eu evitava correntes de ar, a menor poeira, a fumaça de cigarro. Eu aprendi a fugir dos ambientes com ar condicionado, mesmo quando fazia 35 graus na rua, a fugir de todas as pessoas gripadas ou resfriadas, a não me preocupar ou ficar demasiado angustiada. Eu aprendi a sentir-me bem na minha pele e na minha alma. Eu tornei-me forte.

Eu organizei toda a minha vida em função da minha voz. Por ela eu fiz todo o tipo de exigências, todos os caprichos. Eu sentia-se responsável por ela como se fosse um tesouro.

No fundo, a disciplina tem qualquer coisa de confortável, de confortante. Ela enquadra bem os assuntos, ela delimita o caminho, elimina as escolhas e simplifica a vida.

A minha vida já era linda. Eu era protegida e amada. Tudo o que fazíamos tinha sucesso. Ainda nem tínhamos terminado um projecto e logo outro se apresentava, ainda mais empolgante.

Em 1992, a gala do Óscar aconteceu no dia 30 de Março, no dia do meu 24º aniversário. Eu passei nessa noite grandes momentos. Eu cantei em dueto com Peabo Bryson a canção tema do filme da Disney Beauty and the Beast, já um grande sucesso que se escutava em todo o lugar. Essa canção venceria o Oscar de melhor canção do ano, alguns minutos mais tarde.

[251] Eu tive um medo louco do palco. Primeiro porque, uma pessoa que a gente sabe muito bem quem é, fez questão de me lembrar, não uma mas pelo menos umas dez vezes, que eu ia cantar no meio palco da minha vida, diante da audiência mais vasta, um milhão de pessoas através do mundo inteiro.

Depois, eu tive uma amigdalite nos dias precedentes e o médico tinha-me passado antibióticos muito fortes.

Mas o que me impressionava mais era que eles estariam todos lá no Dorothy Chandler Pavilion: Elizabeth Taylor e Paul Newman, Tom Cruise, Michael Douglas, Barbra Streisand, Liza Minnelli, as maiores estrelas do mundo, todos os meus ídolos que eu tinha sonhado a vida inteira conhecer. Eu via-os agora, aos meus pés e eu cantava para eles, eles viam-me e escutavam-me, como eu sempre os tinha visto e escutado. E eles aplaudiram-me, eles reconheceram-me como um deles.

Diante de todas essas pessoas, eu sentia-me, ao mesmo tempo, forte e frágil, em casa e como uma intrusa. Eu queria agradecer a eles esse grande favor que eles me faziam ao me receber entre eles, no seu castelo, no coração de Hollywood. E eu imaginava a reacção de René.

− Você não tem que agradecer. Ninguém te está fazendo um favor. Se eles te aplaudem é porque acham que você é uma estrela de verdade. Todas essas pessoas estão impressionadas por você, tanto quanto você está impressionada por elas.

Eu não acreditava nele. Eu não me via como uma estrela como aquelas que tinha à minha volta. Eu queria ir mais alto, mais longe. Parecia que eu ainda tinha muito caminho a fazer antes de poder dizer que eu tinha passado para o outro lado do espelho…

René fez-me uma surpresa. Ele convidou os meus pais para Los Angeles e arrumou duas poltronas para eles no Dorothy Chandler Pavilion, o que é quase impossível de fazer na noite dos Óscares.

Depois da gala, nós fomos passear, René e eu, entre as estrelas. Nós estávamos febris, impressionados, como todos os que se encontravam lá. René não parava de nomear as estrelas que ele via. Ele fazia-me rir. A vida inteira ele tinha passado perto das estrelas mas ele ainda ficava encantado por elas, como um menino.

Num momento, os meus olhos cruzaram os de Barbra Streisand e ela me acenou com a cabeça e sorriu. Eu quase desmaiei de emoção. Eu agora era uma pessoa visível, reconhecível porque eu tinha cantado há pouco num palco, diante de um público de estrelas e de câmaras de televisão. Três meses antes eu teria sido, naquela sala de baile, uma pessoa invisível, sem nome. Agora, mesmo o meu maior ídolo sabia quem eu era.

Nesse mesmo dia, o meu segundo álbum em Inglês, banalmente intitulado Celine Dion, foi lançado com grande publicidade no mercado americano e canadiano. O álbum que eu tinha feito com Luc Plamondon, Des Mots Qui Sonnent, acabava de sair na França. Nos meses seguintes eu devia fazer duas frentes de campanha de promoção.

[253] Eu dei um salto a Montreal, dois ou três dias depois da gala do Oscar. E, pela primeira vez, eu disse a uma jornalista do La Presse que eu tinha um homem na minha vida, por quem eu estava loucamente apaixonada. E eu não quis dizer o nome dele.

− É quem estou pensando? – Perguntou-me ela. – Eu conheço?

Eu apenas ri. Para mim, essa meia confissão já foi um imenso alívio. Pelo menos as pessoas saberiam a partir de agora que eu também era marcada pelo amor, que eu não o cantava apenas. Eu também o vivia e também o fazia.

Quanto à pessoa amada, a jornalista conhecia muita gente em Montreal e em Paris. Tinham mesmo escrito nos tablóides que René e eu estávamos juntos. Apesar disso, ele queria esperar ainda antes de falar publicamente.

Alguns dias depois dessa confissão, eu devia partir com ele em tour de promoção, primeiro pelos Estados Unidos e depois pela Europa, vinte cidades grandes, dezenas de entrevistas, emissões de televisão, galas, etc. A vida de nómadas, o nosso ritmo habitual. Nós estávamos muito empolgados.

Mas um acontecimento imprevisto mudou os nossos planos.

 

Eu percebi que, quando as coisas verdadeiramente horríveis acontecem, a gente apercebe-se que tivemos sinais e que a gente devia ter percebido que alguma coisa ruim estava para acontecer. Quando René teve o seu enfarto em Los Angeles, eu percebi que eu estava, há vários dias, sentindo muito medo e preocupação, como se eu estivesse pressentindo o que ia acontecer. E eu senti-me culpada, eu arrependi-me de não ter sido mais atenciosa. Se eu tivesse sido uma namorada melhor, eu teria visto o cansaço, eu teria visto o mal chegar…

Nós tínhamos ido descansar alguns dias no hotel Four Seasons. Eu tinha feito o Tonight Show, onde eu já era convidada habitual, e o Good Morning America. Eu tinha feito várias entrevistas. Em algumas horas devíamos partir para Nova Iorque para encontrar outras câmaras, outros jornalistas. Esperando, fomos pegar um pouco de sol na piscina, René e eu.

Ele subiu para o nosso quarto, queixando-se de uma dor nas costas e do calor, o que me preocupou logo. René nunca se cansa do sol nem do calor.

Eu liguei dez minutos mais tarde. Ele demorou a atender e a sua voz estava fraca. Eu não esperei pelo elevador. Eu corri até ao nosso quarto. Ele estava deitado, confuso, em sofrimento, era óbvio. Em trinta segundos eu tinha mobilizado o hotel todo. Arrumei uma cadeira de rodas e toda a ajuda. Quando a ambulância chegou nós já estávamos no hall do hotel, René na sua cadeira de rodas comigo e com a enfermeira do hotel. Eu pedi que avisassem o serviço de urgência do hospital Cedars Sinai. Tudo isso sem reflectir, muito calmamente.

René achava que ia morrer. Ele chorava. Ele falava-me dos seus filhos, da sua mãe.

[255] − Você, Céline, você tem que continuar. Aconteça o que acontecer, mesmo se eu morrer, você tem que continuar.

Ele dizia-me o nome de todas as pessoas em quem ele confiava e com quem eu devia trabalhar. Eu suplicava para ele se calar, eu jurava para ele que ele não ia morrer, que eu não estava nem aí para a minha carreira.

No hospital, eu movi céus e terra para que cuidassem dele depressa. Depois eu fiquei perto dele, até ter a certeza que ele estava em segurança na sala dos cuidados intensivos e onde eu não podia fazer mais nada do que esperar que o seu estado se estabilizasse.

Falando com os médicos que o tinham examinado e que tentavam confortar-me, eu percebi que ainda estava de maiô de banho… num lugar com ar condicionado, onde eu arriscava pegar um frio que faria mal para a minha voz. Eu tinha esquecido, pela primeira vez, toda a minha prudência e disciplina. Nesse momento, eu não estava nem aí para o estado da minha voz. Mesmo com René fora de perigo, o medo e a dor tomaram conta de mim. Eu acho que nunca me senti tão sozinha e impotente em toda a minha vida.

Assim que foi possível, eu liguei para Tété, a mãe dele. No dia seguinte eles estavam todos lá, do lado de René com todo o seu amor: Teté e os filhos dele, Patrick, Jean-Pierre e Anne-Marie, os seus amigos Marc Verrault, Pierre Lacroix, Paul Sara…

Um deles, Pierre ou Marc, tinha levado a René um exemplar do Wall Street Journal, onde dizia, entre outras belas coisas sobre mim, que eu tinha provado que uma artista to Canadá francês podia ter uma carreira internacional sem abandonar a sua cultura e sem negar as suas raízes. René lia e relia o artigo ao ponto de o saber de cor. Esse reconhecimento deixava-o mais feliz do que todos os elogios que eu tinha recebido desde o começo da minha carreira.

− Você está vendo, mesmo as pessoas que não são da nossa profissão, que não têm nada a ver com o show-business, reconhecem o nosso sucesso.

Eu desejei ter estado, ter ficado com ele. Eu teria cancelado tudo. Nada de promoção, nada de televisão, nada, até que o meu amor ficasse curado. Mas ele nem queria ouvir falar nisso. Ele não queria que eu parasse.

− Mesmo se eu tivesse morrido, eu queria que você tivesse continuado. Se eu tivesse morrido e você tivesse parado assim, eu morreria duas vezes.

Eu entendi que ele estava falando sério. Eu compreendi que a minha carreira é a sua obra prima, a sua canção, a sua sinfonia. A ideia de que ela pudesse ficar inacabada teria enchido ele de dor. Eu compreendi que, se alguma vez ele morresse, eu teria que continuar, sem ele, para ele.

Mas todo esse sucesso perderia o sentindo se René não estivesse mais presente para o ver e para o conhecer, para me relatar dia por dia. Eu precisava desses relatos, eu precisava da sua voz, do seu olhar, da sua admiração e do seu amor. Mais do que nunca as portas abriam-se à minha frente, e mais do que nunca eu precisava dele ao meu lado.

Mais cedo ou mais tarde, todos nos arriscamos a ver desaparecer as pessoas que amamos. Eu pensava nisso muitas vezes. A maioria das pessoas eram todas pelo menos duas vezes mais velhas do que eu. [257] Eu dizia a mim mesma, às vezes, que eu os iria perder um a um. Eu ficaria sozinha… De certa forma, quando eu me deixava invadir por esses pensamentos, eu já me sentia sozinha. E eu fazia filmes tristes na minha cabeça, quase sem acção.

Eu imaginava-me muito velha, sentada na frente de uma janela, com um xaile sobre os ombros, e eu olhava um lindo jardim cheio de pássaros, de flores, uma chuva muito suave caía… Eu não me sentia triste mas sim muito sozinha, definitivamente sozinha. Não havia ninguém em minha volta, nem no jardim, nem na casa. Não havia crianças nem música. Nada mais do que um silêncio que eu nunca quebraria.

A que outra pessoa eu podia contar essas coisas senão a mim mesma? Certamente não podia contar às pessoas que tenho tanto medo de perder: René, os meus pais…

René recuperou-se bem e depressa. Mas a nossa vida nunca mais foi a mesma. A despreocupação desapareceu.

Os médicos disseram que ele tinha que perder peso e fazer exercício mais regularmente, comer menos e melhor. Ele tinha que mudar de vida. E, para começar, tinha que evitar o stress. Isso era pedir demais.

René é como eu, ele ama o stress…. É essa a nossa primeira profissão. O que se faz sem medo e sem stress trás pouco prazer e não vale a pena. Era isso que eu acreditava na época. Quanto mais alto estava o trampolim, mais alto ele queria ir.

Depois do acidente que eu tinha tido na estrada dois anos antes, durante a gravação de Des Fleurs Sur La Neige, René tinha estado constantemente perto de mim, como ele me tinha prometido. Antes de recomeçar a minha tour de promoção, eu insisti para que ele esquecesse essa promessa. Eu queria que ele descansasse, que ele seguisse o seu regime. Essa vez, pela primeira vez na vida, ele escutou-me.

De passagem por Montreal, eu continuei fazendo confidências sobre a minha vida amorosa. Um jornalista perguntou-me se eu tinha tido medo de perder René.

− O maior medo da minha vida – respondi.

− Você teria perdido o seu segundo pai.

− Eu tenho apenas um pai, Adhémar Dion, que eu amo e que me ama. René não é um pai para mim, ele nunca foi nem nunca será. René é o homem que faz o meu coração bater, é o homem da minha vida.

Depois eu disse que eu não queria falar de certas coisas da minha vida, da nossa vida. Até então eu sempre tinha evitado essas questões, fingia que não estávamos juntos. Eu mentia, eu dizia que não amava ninguém, que ninguém me amava. Essas mentiras criavam, por vezes, situações intoleráveis. Os jornalistas não acreditavam mais em mim.

Com essa declaração, eu mudei o rumo das coisas. Eu informei o público que René e eu tínhamos um território onde ninguém podia entrar. Eu deixava entender que nós estávamos apaixonados mas que não queríamos falar sobre isso, que tínhamos uma vida de verdade, um jardim secreto.

− Todo o resto, vocês já sabem. Por vezes melhor do que nós dois.

Eu então parti para a Europa com Suzanne Gingue, primeiro para o World Music Awards, onde recebi um prémio. Choviam prémios de todo o lugar nesse ano. Os meus dois álbuns Céline Dion e Des Mots Qui Sonnent, vendiam aos milhares. Mas quanto mais o álbum vende mais o artista trabalha e ganha prémios. E quanto mais prémios o artista ganha mais álbuns se vendem e mais o artista trabalha. O turbilhão, cada vez mais forte, leva-nos sempre mais longe…

No final, eu tinha que me esforçar, quando acordava de manhã, para me lembrar de onde estava. Oslo, Roma, Munique, Estocolmo, Londres, Paris, Amsterdam… todos os quartos de hotel são iguais. Mármore, bronze, cerâmica, porcelana no banheiro, espelhos por todo o lugar, tapetes fofos, a mesma penumbra…

[259] Para dormir eu tinha uma camisola da minha mãe, cor-de-rosa, tão usada que o pano era quase transparente. Eu não a vestia. Eu usava-a como Charlie Brown usa a sua cobertinha. Eu dormia com o rosto mergulhado nesse pedaço de pano que eu conservava preciosamente… Mas eu tinha medo de o perder nas viagens.

Quando o avião pousava em Dorval ou em Mirabel, o furacão acalmava-se. Durante dias eu vivia uma vida calma. Eu ia às vezes dormir na casa dos meus pais, para passar algum tempo com a minha mãe.

Eu via as minhas irmãs e os meus irmãos. René e eu íamos aos restaurantes onde conhecíamos as pessoas e os clientes. Era outra vida, outro mundo, tipo um oásis. Mas eu ficava cada vez menos tempo.

Na minha casa eu estava apenas de passagem. Cada vez eu tinha mais a impressão de me afastar dos meus irmãos e irmãs. Eles ainda eram calorosos, gentis, eles estavam contentes com o meu sucesso, mas eu não era mais a menininha que eles faziam sonhar, a quem eles ensinavam coisas. Muitos deles tinham todo o talento e todo o desejo que é preciso para vencer. Mas isso tinha acontecido apenas comigo.

Eu ia embora com o sonho deles, com a sorte deles. Eu tinha a sensação que estava roubando alguma coisa deles. Eu vivia agora em outro mundo, quase em outro tempo… Entre eles e eu tinha-se instalado um incomodo, silêncios. As nossas vidas eram tão diferentes…

 

Durante a tour de promoção que fiz na Europa, eu falava com René cinco, seis, dez vezes por dia. Cada um sabia, hora por hora, onde o outro estava e o que estava fazendo. René dizia-me que estava repousando, que caminhava uma hora por dia, que fazia exercício, que jogava golfe com Marc, Jacques, Rosaire, que comia pouco, que dormia muito…

Eu iria descobrir, quando voltei a Montreal, que ele não tinha descansado nada. Ele tinha preparado todo o nosso ano, tinha planificado dia por dia, tinha gerido tudo. Nós partimos juntos para Sevilha, onde estava acontecendo a Expo 1992. Eu devia cantar no pavilhão do Canadá, no dia 1 de Julho, dia do Canadá.

No avião que nos levava a Espanha, ele contou-me as minhas futuras aventuras no maravilhoso mundo do show-business.

Primeiro eu teria uma tour nos Estados Unidos, fazendo a primeira parte de Michael Bolton, depois uma tour pelo Québec um ano mais tarde, no Outono, depois uma tour por todo o Canadá. E, pelo meio, alguns grandes concertos ao ar livre, a gravação de um ou dois videoclipes. Em breve, no Outono e no Inverno seguintes, eu gravaria canções para o meu terceiro álbum em inglês. Ele já tinha feito uma selecção. Ele tinha uns demos que ele me fez escutar, entre elas uma canção da autoria de David Foster, que ele adorava, "The Colour Of My Love".

− Todas as grandes cantoras queriam essa música. Whitney Houston, Barbra Streisand, Natalie Cole… Mas David disse que era a você que ele queria oferecer porque é uma verdadeira canção de amor e ele sabe que estamos apaixonados.

− E porque ele sabe e os meus vizinhos de Montreal não?

Eu não duvidava do amor de René. Mas eu cada vez compreendia menos a sua teimosia em negar o que era óbvio. [261] Ninguém mais acreditava, em lugar nenhum, nem em Paris nem em Montreal. Eu cada vez mais o acusava de me recusar a felicidade de falar para o mundo que ele me amava. Cada vez ele mencionava a nossa diferença de idade, o medo que eu fosse infeliz com ele dentro de 10, 15, 20 anos, quando ele estivesse velho e cansado. Ele também tinha medo que as pessoas rissem ou dissessem que ele tinha abusado do seu poder e da sua experiência e que me explorava.

− A sua carreira pode ser destruída.

− A mentira que eu conto há quatro anos pode ser ainda mais destrutiva, não é? Felizmente as pessoas não acreditam mais. Como você quer que uma mulher que vive sem amor e que nunca o conheceu na sua vida possa cantar as canções que eu canto?

Para mim, nenhum dos argumentos dele tinha fundamento. Há dez anos que partilhávamos as mesmas experiências. Tudo o que ele sabia antes de mim tinha-me ensinado, ele tinha-me contado, ele tinha-me transmitido tudo. Eu tinha a impressão que eu sabia tanto quanto ele sobre a vida, sobre o palco, sobre o público, sobre o show-business. Nós éramos sócios há mais de 10 anos, amantes há pouco mais de 4 anos. E em breve eu teria 25 anos. Eu não entendia porque tinha que esconder o meu amor. As mulheres da minha idade não escondiam. Mas, a cada vez que eu falava no assunto, ele dizia-me que eu tinha que esperar um pouco mais, que mais cedo ou mais tarde o momento ideal apresentaria-se.

− Eu vou-te avisando – eu disse a ele nesse dia, no avião que nos levava para Sevilha – que na primeira vez que eu cantar "The Colour of My Love" em público eu vou cantar de verdade. Eu vou anunciar a cor do meu amor e vou falar o nome.

Ele sabia que eu faria isso. Ele também sabia que eu o amava profundamente. E ele confiava em mim. E amava-me também.

Nessa época, nada deixava ele mais fora de si do que ouvir dizer ou ler que ele exercia sobre mim controle absoluto. Ou pior, que ele me dizia o que pensar, o que dizer, o que fazer, como se eu fosse uma marionete manipulada por ele.

No Québec, especialmente, muitas pessoas acreditavam nisso, ou queriam acreditar. Eu sabia disso. Mas isso era-me indiferente.

Havia um fundo de verdade em tudo isso: no começo da nossa relação [profissional], René tinha-me guiado inteiramente, ele tinha-me ensinado. Eu não vou negar isso e eu agradeço a Deus todos os dias. Mas, pouco a pouco, ele deixou-me voar com as minhas próprias asas.

− Seja você mesma. Fale o que você pensa, fale o que você tiver para falar.

Eu entendo hoje em dia até que ponto ele me encorajou e me instigou para que eu me transformasse numa mulher autónoma, independente e livre.

Eu sei, eu sempre soube, que ele nunca me teria amado tanto se eu tivesse obedecido a tudo o que ele falava. Ele não gosta de pessoas fracas que não têm opinião sobre nada.

Durante algumas entrevistas e no palco, eu dizia algumas besteiras. Isso fazia-o rir. Em Sevilha, no entanto, ele ficou um pouco contrariado porque foi uma grande besteira. Durante a conferência de imprensa que precedeu o concerto do Pavilhão do Canadá, um jornalista de Montreal perguntou-me o que eu achava do movimento separatista do Québec.

Eu respondi espontaneamente que era contra as fronteiras. A media do Québec usou essa declaração. Chegaram a escrever que eu acharia a eventual separação do Canadá uma catástrofe para Québec…

[263] Eu percebi que me tinha aventurado num terreno com minas, desconhecido. Eu devia ter ficado calada, eu devia ter respondido ao jornalista que a política não me interessava e que não tinha nada a dizer sobre isso.

René achava que havia maldade ao perguntar a uma cantora questões de política e pedir para tomar uma posição nesse assunto.

− Será que esse jornalista pensaria em pedir ao Primeiro Ministro para cantar como você canta para vinte mil pessoas? Tudo o que ele tentaria fazer seria evitar passar vergonha.

O que o povo de Québec pensa de mim, sempre teve e sempre terá mais peso do que o que o resto do mundo pensa. O menor prémio, a menor honra que eu recolhesse em outro lugar do mundo, ele queria logo que se falasse disso no Québec. E onde quer que a gente esteja, ele tentava receber por fax tudo o que se tinha escrito sobre mim, mal ou bem, nos jornais e revistas do Québec.

Por isso eu soube das grandes reacções que as minhas palavras tinham provocado. O que me preocupava mais ainda era o facto de ter recebido uma mensagem do Primeiro Ministro do Canadá, que sempre tinha tido um mau relacionamento com os nacionalistas do Québec, que queriam a separação. Eu então encontrava-me metida numa polémica que durava gerações e para a qual eu não via solução. E eu tinha, inocentemente, posto mais lenha na fogueira. E René repetia-me que eu tinha mais que falar o que eu pensava.

− Mesmo que você mude de ideia, se o seu coração te disser. Não escute os outros. Diga o que você pensa. Se você não acha nada, então diga. As pessoas amam-te porque você é honesta.

No dia seguinte à minha declaração de Sevilha, eu estava muito preocupada. Eu tinha a impressão de ter machucado e desapontado as pessoas que amava mais no mundo. Eu tentava explicar, ao encontrar de novo os jornalistas do Canadá. Eu expliquei que achava que a gente não tinha nada a ganhar separando-se e que, se dependesse de mim, não haveria fronteiras em lugar nenhum. Eu sei que é uma visão bem ingénua da política. Mas eu nunca pretendi ser instruída ou informada sobre essas coisas. No fundo, tudo o que eu queria era que as pessoas do Québec soubessem que eu os amava particularmente.

Eu acabava de perceber o poder assustador que o público dava às celebridades, mesmos nos assuntos em que elas não têm qualquer competência. Eu tinha feito comerciais, entre os quais para a Coca-Cola e para a Chrysler, eu tinha sido a porta-voz e a madrinha da Associação do Québec da Fibrose Cística. Eu sabia que, por natureza, uma celebridade é visível, escutada, imitada. Por consequência, o que ela diz e o que ela faz pode ter muito peso. Mas, em Sevilha, o poder apareceu-me uma prisão sufocante.

Tudo o que eu faria a partir de agora, seria retomado, analisado, comentador, mesmo se não tivesse nada a ver com a minha profissão.

− É porque você é mais do que uma cantora − disse-me René. – Você é uma estrela no Québec. A maior estrela que eles já tiveram. E, um dia, não vai demorar muito, você será uma estrela em França também e nos Estados Unidos, em todo o mundo, uma das maiores de sempre.

Isso também me parecia uma besteira. Eu nunca diria esse tipo de coisa. René não tinha vergonha de falar isso entre nós ou em público, diante das pessoas da nossa profissão, diante dos jornalistas. Eu sabia que ele era considerado por muitos como um sonhador que repetia a todos que eu um dia seria a melhor. [265] Isso tornou-se numa piada no Québec.

Mas era a maneira de ser do René. Ele nunca teve medo de "vender a pele do urso antes de o matar". Ele via-se milionário e agia como um muito antes de ser rico. Ele via-me como uma estrela imensa quando eu ainda era, nos Estados Unidos, uma estrelinha que ascendia mas que poderia ser eclipsada e desaparecer. Mas ele tinha uma fé inabalável em mim, nunca teve a menor dúvida. A gente sempre iria mais alto e mais longe.

 

A tour da primeira parte do Michael Bolton foi exaustiva. Estava muito calor. Mudávamos todos os dias de cidade. Mas estávamos finalmente fazendo aquilo que sempre tínhamos sonhado fazer: estávamos no país do big time, tínhamos um bom show e canções vencedoras. No começo eu cantava diante de audiências muito agitadas e impacientes, que esperavam por Bolton e estavam nem aí para mim. Eu tinha um som deficiente e pouquíssimo espaço porque o palco estava ocupado pelas consolas e pelos instrumentos musicais da banda de Bolton. E mais, como ainda era de dia quando eu subia no palco, as minhas iluminações ficavam diluídas.

Mas eu dava toda a minha alma. Eu estava em forma, eu estava feliz. Pouco a pouco começou a correr o rumor de que a cantorazinha que fazia a primeira parte de Bolton merecia destaque, valia a pena chegar mais cedo para a escutar. E, em detrimento de Bolton, René convenceu os produtores a começar o meu show meia-hora mais tarde. No final da tour eu tinha lindas iluminações, um melhor som. E, sem querer me engrandecer, eu cheguei, em algumas noites, a roubar a atenção de Bolton.

Durante esse tempo, o silêncio sobre o nosso amor tinha-se tornado uma loucura. Os jornalistas amavam.

No final do Verão, quando voltei ao Québec depois de ter perdido 3 quilos na tour, toda a imprensa me esperava.

− Então Céline, e a sua vida amorosa?

Eles poderiam ter feito mil e uma questões sobre a minha carreira, sobre a tour que eu tinha acabado nos Estados Unidos, sobre o novo álbum que eu estava preparando, sobre a saúde de René, sobre o peso que eu tinha perdido. Mas nada mais parecia interessar-lhes, só a minha vida pessoal. E eu recusava sempre a falar.

René tinha, no entanto, aceitado que eu passasse uma hora falando com Lise Payette, a rainha da confissão televisiva. Ele sabia que ela tinha os meios para me fazer confessar tudo. Eu também.

Nunca uma entrevista me tinha deixado tão nervosa e preocupada. Eu via aí uma excelente ocasião para dizer toda a verdade. Nessa manhã, eu acusei René de querer guardar segredo sobre o nosso relacionamento porque acreditava que não ia durar.

− Se você não quer que eu fale é porque você não tem a certeza se me ama.

Eu já tinha falado esse argumento muitas vezes. Essa vez, no entanto, eu devo ter achado as palavras e o tom de voz que mexeram com ele, porque ele ficou muito abalado. Ele disse-me que eu tinha razão, que isso não ia durar mais. Ele gostava muito de Madame Payette e considerava que era uma bela ocasião para confiar o nosso segredo, melhor do que deixar os tablóides tomar conta da situação.

No carro que nos levava à Telé-Metrople, ele mudou de ideia. Ele convenceu-me a esperar ainda mais.

[267] − A gente tem que se preparar.

− Para quê?

− Para fazer as coisas em grande… Eu tive uma ideia melhor. Você vai ver.

Eu lembrei-lhe da ideia que eu tinha tido e da qual não tinha desistido:

− Quando eu cantar "The Colour of My Love" eu vou falar o seu nome, você já sabe.

− Foi pensando nisso que eu tive a minha ideia.

Chegando no estúdio, ele foi logo para a sala de controle. A maquilhadora e a cabeleireira devem ter-me achado fria e distante. Eu tinha a cabeça em outro lugar. Eu pensava em toda essa história cada vez mais sem sentido. Em René, que ganhava sempre! E em mim, que cedia sempre!

Madame Payette fez-me falar da minha família, da minha tour, do próximo álbum, do problema cardíaco do René. Eu contei o que tinha acontecido, como se ele tinha sentido mal do lado da piscina, como eu tinha alertado todo o mundo e como eu tinha ido para o hospital de maiô. Ela interrompeu-me para saber se eu estava apaixonada. Eu estava falando tanto de René.

Eu fiquei desestabilizada. Eu comecei a gaguejar que amava um homem mas não podia dizer o seu nome porque comprometeria a minha carreira. Ninguém me compreendia. Eu comecei a chorar. Quando Madame Payette me passou uma caixa de lenços eu comecei a rir através das lágrimas. No fim das contas, nós fizemos um excelente momento de televisão.

Eu tinha desperdiçado uma bela ocasião de confessar, de me libertar. Eu tinha que viver ainda mais meses com esse segredo, com essas mentiras. Eu consolava-me dizendo a mim mesma que era melhor fazer essa revelação junto com René.

Ele ficou muito mexido durante a entrevista, que ele tinha assistido na sala de controle. Por um momento ele tinha desejado muito que eu confessasse.

− Ai é? E o que a gente ia fazer com a sua melhor ideia?

− Não é minha, Céline, é sua.

 

No dia 30 de Março de 1993, no dia em que fiz 25 anos, eu acordei com a garganta ardendo. Dentro de três dias eu teria um importante concerto no Forum de Montreal.

Eu estava cansada. Há seis meses que eu vivia um ritmo infernal. A preocupação que tinha seguido o ataque cardíaco de René, o stress e o esforço constantes que a tour americana tinha exigido, essa espera intolerável, a promoção, as viagens, as galas, as gravações… tudo se acumulava e, por momentos, me esmagava.

Eu tinha o mesmo pesadelo frequentemente. Eu estava no telhado de um prédio muito alto em Nova Iorque, quem sabe, ou Chicago. Havia muitas pessoas em baixo, que me olhavam e gritavam para que eu não me jogasse. Eu queria que eles soubessem que eu não tinha a menor intenção de o fazer. E eles tinham que parar de se preocupar. Mas eles não me ouviam, ou não ligavam. Eu via-os entrando dentro do prédio, milhares de pessoas, como formigas, pegavam o elevador para virem parar-me ou me salvar-me. [269] Eu nem sabia mais. Eles chegavam no telhado. Eles precipitavam-se na minha direcção, sempre gritando, dizendo-me para ser prudente. Mas, essa vez, era eu que nem escutava. Eu saltava para o vazio para escapar deles. E eu caía durante muito tempo, muito lentamente. Eu via a cidade deserta, muito sombria, vazia. Não havia ninguém para me ver cair. Eu tentava gritar mas nenhum som saía da minha boca.

Eu acordava antes de cair. Eu queria encontrar a camisola da minha mãe debaixo do meu travesseiro. Eu teria escondido o meu rosto lá e teria dormido. Eu sentia-me terrivelmente sozinha e ficava muito tempo acordada até saber em que cidade eu estava.

Ao longo das duas ou três semanas precedentes, eu tinha feito promoção na Europa, eu tinha cantado na cerimónia do presidente Bill Clinton em Washington. Apesar de uma enorme gripe, eu tinha apresentado a cerimónia dos Juno em Toronto. Eu tinha cantado na gala dos Grammy em Los Angeles, onde "Beauty And The Beast", que eu interpretava com Peabo Bryson, tinha ganho um troféu. Até aí eu tinha-me sentindo em forma, invulnerável.

Quando eu fui receber o Grammy no palco, eu disse algumas palavras de agradecimento em Inglês e falei ao povo do Québec, em francês, com o nosso sotaque, o sotaque da minha infância. Eu sabia que eles estavam assistindo do outro lado do continente e que tinham orgulho em mim. Eu sabia também que apenas eles entendiam o que eu estava falando. Era como se eu estivesse falando no ouvido deles. E, ao mesmo temo, era uma forma de dizer ao grande público que eu vinha de outro lugar. E que eu sabia manter o contacto com os meus.

Eu não sei bem como, mas no banquete que seguiu a gala, eu sentei-me diante de Michael Jackson e Brooke Shields. Nós rimos muito, especialmente ela e eu. Ele pareceu-me muito tímido. Ele falava tão baixo que eu tinha que me aproximar dele e pedir para ele repetir. Com Brooke, eu falei sobre roupa e cabelo. Ela dizia-me que ela gostaria de cantar, eu dizia que gostaria de fazer cinema. Eu não sei até que ponto ela estava falando sério mas eu estava. Eu adorava fazer videoclipes, eu adorei a minha experiência em Des Fleurs Sur La Neige. E eu desejava várias vezes fazer cinema de verdade, criar uma personagem, dar um look e uma alma.

Mas eu não tinha tempo para o cinema, nem mesmo para o cinema que eu fazia na minha cabeça desde sempre. Eu em breve iria chegar à conclusão que estava sobrecarregada de trabalho.

Eu tinha trabalhado dia e noite na concepção do meu novo concerto, o roteiro, os textos entre as canções, as decorações, as iluminações, o som. Eu tinha mesmo desenhado a minha roupa do palco: uma blusa com babado vermelho de seda e uma calça justa em cabedal negro.

Eu tinha ido longe demais e depressa demais. Eu devia perceber que existia, no fundo de mim, uma menininha exausta e perdida, a quem eu não tinha prestado atenção, quem eu não escutava há muito tempo. Agora ela mostrava-me e recordava-me das suas necessidades.

Essa menininha não queria ser mais aplaudida, em dar os maiores concertos do mundo. Ela queria um pouco de paz, um pouco de repouso de vez em quando, sozinha com ela mesma.

Eu parti, na companhia de Suzanne Gingue para ver os doutores Riley e Korovin em Nova Iorque. Eles escutaram-me, puseram-me de castigo e reconfortaram-me. Depois eles recomendaram-me dois dias de silêncio.

Quando entrámos no fim do dia, René esperava-nos no aeroporto de Dorval. [271] Na limusina que nos levava para a cidade, eu disse que não falaria mais durante dois dias. Ele tinha sempre respeitado os meus silêncios. Mas, nessa noite, ele pediu-me para esperar algumas horas antes de começar.

− Porquê? O que está a acontecer?

− Nada, você vai ver.

Ele tinha reservado uma maravilhosa suite num grande hotel no centro da cidade. Ele tinha pedido jantar para dois, com velas e música barroca.

Durante a refeição, ele tirou uma pequena caixa do seu bolso e colocou-a sobre a mesa, entre nós dois. Ele estava nervoso, intimidado também. Foi comovente.

− Eu amo-te, Céline. Eu amo-te como nunca amei ninguém. Eu quero viver com você.

A voz e o olhar dele eram de veludo.

Eu abri a caixa, vi o anel de noivado e percebi que o nosso amor poderia finalmente ser revelado.

 

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