Dois dias mais tarde, fomos
acolhidos no aeroporto de Mirabel por uma multidão de
jornalistas, de fotógrafos, de câmaras e de pessoas da
profissão. René tinha levado os jornais irlandeses e ingleses. Ele leu-os para eles. Ele mostrou a minha foto, os
grandes títulos, lembrando a importância do concurso da Eurovision, uma instituição quase desconhecida no Canadá.
Ele não se pode impedir de dizer
que eu tinha chorado como uma madalena. E ele fez todo o
mundo rir quando lembrou que fazia muito tempo que isso não
me acontecia.
Depois ele contou em detalhe a
conferência de imprensa que se seguiu à competição, como eu
tinha sido extraordinária. Os jornalistas do mundo inteiro
"seiscentos ou setecentos", como ele dizia, o que me parecia
um grande exagero, tinham ficado maravilhados quando eu
tinha dito que era a mais nova de 14 filhos e que vinha de
uma vila chamada Charlemagne.
− Depois – continuou René – ela
assinou autógrafos em todo o lugar, no hotel, no aeroporto de
Dublin, no avião que nos levou a Londres. O piloto falou mesmo
que Céline estava a bordo e todo o mundo aplaudiu.
Os jornalistas escutavam, muito
surpresos e fascinados.
Mas eu pensava que a maior
notícia que o René poderia dar, e que os deixaria
infinitamente mais satisfeitos, era que estávamos
apaixonados. Eles viam-me radiante e encantada e eles
achavam que era por causa da vitória em Dublin. Mas não
tinha nada a ver.
René lembrou-os então que a CBS
tinha prometido um disco em Inglês e que começaríamos a
trabalhar nisso no Outono, quando tivéssemos terminado a tour "Incognito".
− Com o melhor produtor, com os
melhores autores e com os melhores compositores e nas
melhores condições que possam imaginar. – dizia ele – Vocês
vão cair.
Uma jornalista perguntou-nos se
estávamos felizes juntos, se ainda nos relacionávamos bem.
Eu achei que ela tinha adivinhado tudo. E ela confessou-me
que adivinhou tudo, anos mais tarde. René respondeu
primeiro:
− Eu não trocaria o meu lugar
por todo o dinheiro do mundo. – dizia ele - Muito menos
Céline, eu tenho acerteza. A gente partilha o mesmo sonho.
"E a mesma cama" – eu estava
tentada a falar.
Mas eu não tinha direito. No dia
anterior ele tinha-me convencido a guardar segredo sobre o
nosso amor.
[203] − Por quanto tempo?
− O tempo necessário.
− O tempo necessário para quê?
− Temos que falar com as nossas
famílias, primeiro com os seus pais.
Ele tinha razão. Ele tem
sempre razão, ele pensa sempre em tudo. Só que eu não sabia
que o "tempo necessário" seria dolorosamente longo.
Eu respondi correctamente aos
jornalistas que eu estava feliz com a minha associação
profissional com René. Há sete anos que ele tomava todas as
decisões da minha carreira e ele nunca se tinha enganado.
− Eu confio nele absolutamente.
Mas uma jornalista voltou a
atacar:
− Você fez 20 anos há pouco
tempo, Céline. Você tem um namorado? É normal as meninas da
sua idade terem.
As imagens do dia anterior
desfilaram na minha cabeça. Eu via-me de novo, de pé, contra
a parede do meu quarto, depois de René ter ido embora. As
minhas pernas tremiam tanto que eu quase caí. Eu escutava a
sua voz, como num sonho: "Se você quiser de verdade, eu
serei o primeiro." Eu escutava-me respondendo a ele, com os
olhos cheios de lágrimas: "Claro que eu quero. Você será o
primeiro. E o único."
Diante do meu silêncio, a
jornalista insistiu:
− Você tem um namorado, Céline?
Eu então engoli a minha emoção
antes de responder calmamente e com um sorriso, debaixo do
olhar atento de René:
− Não, eu não tenho tempo, a
minha carreira é a minha prioridade, eu consagro tudo a ela.
Foi a primeira de uma longa e
dolorosa série de mentiras. Eu entrei num período da minha
vida que foi muito feliz e, ao mesmo tempo, muito
atribulado, a época do meu amor clandestino. Eu vivi uma
grande felicidade mas, várias vezes, apesar dos sucessos
profissionais, a jaula de mentiras onde eu tinha, apesar de
tudo, me fechado, quase destruiu a minha felicidade.
Na minha família, pelo
contrário, as coisas acalmaram depressa. Eu já tinha vinte
anos. Os meus pais entenderam que eu não renunciaria a esse
amor que me fazia feliz. Conhecíamos outros casais muito
unidos formados por homens e mulheres, como Eddy e Mia,
separados por quinze, vinte, mesmo trinta anos de diferença
de idade. E havia o exemplo de Charles Chaplin e de Oona
O’Neill, que tinham sido felizes durante mais de trinta anos
e tinham fundado uma família forte e unida.
René contou-me que, quando ele
percebeu que estava se apaixonando por mim, ele tentou me
esquecer. Ele ia para Las Vegas sempre que podia. Ele foi
mesmo a Paris onde ele encontrou Eddy Marnay, que ele sempre
considerou com um pai e a quem ele poderia confessar tudo.
− Você sabe como Eddy é. Ele fez-me andar
quilómetros em Paris enquanto eu falava de você
para ele.
− O que é que ele te falava?
− Ele perguntava-me: "Você ama-a
de verdade?
− E você?
− Eu respondia: "Como um louco.
Eu a vejo em todo o lugar, eu penso nela a toda a hora."
− E ele?
− Ele dizia-me: "Se você a ama
você não tem nada a temer. Você não vai fazer mal para ela."
[205] − Eu teria falado a mesma coisa
para você.
Mas René estava pensando também
na minha carreira. Eu diria mesmo que, nessa época, ele
pensava mais nisso do que na nossa felicidade, o que, por
vezes, partia o meu coração. Ele estava convencido que, se
as pessoas soubessem que nós nos amávamos, tudo o que
tínhamos construído seria destruído.
Nós vivemos muito tempo o nosso
amor no segredo e na intimidade das nossas famílias. Ele
estava muito bem com isso. Mas eu não. Eu sofri, eu chorei,
quem sabe porque eu era muito jovem. E porque era o meu
primeiro amor. Eu queria, desde o primeiro dia, contar ao
mundo inteiro. Ser amada por René Angélil era a coisa mais
linda que eu já tinha vivido em toda a minha vida.
Mas, por amor, porque ele me
tinha pedido, para agradar a ele, eu aceitei ficar calada.
Mas foi por tempo demais.
No começo do Verão, David Foster
avisou René que ele estaria pronto para trabalhar com a
gente em breve, mas primeiro ele queria ver-me em concerto. Uma semana depois da Eurovisão,
eu voltei para a Europa para uma tour rápida. Dez cidades em
dez dias. Foi uma loucura. Conferências de imprensa,
entrevistas, televisão, rádios, alguns encontros muito
especiais como um com Elton John em Munique, e um grande show
enquadrado no festival de Cannes com Julia Migenes-Johnson e
Michel Legrand. De volta ao Québec, eu retomei a tour
"Incognito". O nosso concerto estava plenamente treinado.
David Foster não poderia pegar melhor concerto. Os músicos
estavam em plena forma, bem como a minha voz.
Mas o destino, sempre dando
voltas, quis que o momento em que David estivesse no Québec
fosse o dia em que eu ia dar um concerto debaixo de uma tenda, em Sainte-Agathe, em
Laurentides, diante de um público de turistas. René bem que
tentou adiar a viagem dele.
− Dentro de duas semanas Céline
vai estar no mais importante teatro de Montreal, − dizia ele
– nas condições ideais.
David não quis, ou não pôde
adiar a sua viagem. Ele chegou na companhia da ex-mulher de Elvis, Linda Thompson, com quem ele tinha acabado de casar.
Estava muito calor nesse dia e chovia muito. Debaixo da
tenda, a humidade sufocava. O som estava horrível. Por
momentos, a chuva caía tão forte sobre a tenda que nem dava
para me ouvir correctamente.
Mesmo assim, eu sentia-me bem,
confiante e calma, apesar do calor esmagador. As canções
saíram perfeitamente. No meio do show, eu apresentei David Foster, dizendo que era o melhor produtor de álbuns do mundo
e que ele trabalhava com as mais brilhantes estrelas da
canção americana. O público de Sainte-Agathe, que nunca deve
ter ouvido falar dele, levantou-se educadamente para aplaudir,
ao que David não ficou indiferente.
Depois do concerto,
encontrámo-nos os quatro num restaurante de Laurentides. David
não me fez elogios, não faz o tipo dele. Ele manifesta de
outra forma o seu entusiasmo ou a sua aprovação.
− Contem comigo. – Ele disse-nos
– Encontrem as canções e liguem-me.
[207] René e Vito Luprano,
director
artístico da CBS, que se tornou Sony, fizeram uma selecção
das canções que tínhamos juntado ao longo dos últimos meses.
Depois do Natal, com a tour
"Incognito" terminada, nós partimos para a Califórnia,
o René
e eu. Nós instalamo-nos numa pequena residencial em Malibu
Beach, não longe da casa de David Foster. Não conhecíamos
mais ninguém em Los Angeles.
David contou-nos, anos mais
tarde, que o que mais o encantou na gente nessa época, foi a
nossa felicidade, a nossa alegria. Quando ele passava na
residencial com a Linda, eles encontravam-nos jogando basquete
ou caminhando na praia, onde fazíamos longos passeios. Por
vezes eles acompanhavam-nos.
Os meus pais e uns amigos do
Québec também nos visitaram. Mego e Suzanne vieram. Por
vezes pessoal da Sony, Vito vinha mais vezes, e fazia-nos
escutar canções. René fazia uma selecção, como se fosse um
top. Pouco a pouco, aquilo que seria o meu primeiro álbum em
inglês, ganhou forma. Seria feito exclusivamente de canções
de amor. A maioria das quase 200 canções que gravei
em toda a minha vida, falam de amor. Das alegrias e das
dores que o amor nos trás.
Nós estávamos sozinhos, longe de
todos os rumores que circulavam sobre nós. Eu vivia
finalmente intimamente com o homem que eu amava. Formávamos
um casal, um casal de verdade.
Pela primeira vez na vida eu
podia ser amante e esposa, eu entrava na cozinha e preparava
massas, fazia um bolo. Eu não sou uma cozinheira muito boa.
Em casa, a minha mãe fazia tudo e sabia fazer tudo. Excepto a
massa à bolonhesa, os meus talentos são muito limitados.
René é guloso. Ele era, na época, muito melhor cozinheiro do
que eu. Ele colocava temperos na minha comida e mudava tudo.
Ele deixava-me dormir até tarde.
Eu sou da noite e ele é da manhã… Ele saía do quarto na
ponta dos pés, pelas 6 horas da manhã, e ia comprar os seus jornais e as suas revistas,
que ele lia no terraço. Ele queria saber sempre todas as
noticias e todos os resultados desportivos: hóquei, baseball,
futebol, boxe, ele quer saber quem ganhou, quem perdeu, em
todos os jogos, em todas as guerras.
Quando eu acordava, por volta do
meio-dia, ele trazia-me de volta ao mundo. Ele preparava-me
sumo de frutas. Por vezes não fazíamos mais nada para além
de
caminhar na praia e aproveitar o sol.
Passámos nesse inverno, em Malibu
Beach, dias tranquilos. Foram os últimos antes desse grande
turbilhão nos levar.
Na Califórnia ninguém nos
conhecia. O nosso amor e a nossa felicidade podiam florescer
à luz do dia. Tudo era novo para mim: o amor, a paisagem, as
palavras… Mesmo a minha voz parecia nova. Eu sabia que
ela soaria diferente em Inglês. Quando passamos de uma
língua para a outra, a textura da voz muda, mesmo o registo.
Mas era mais do que isso. Eu
também tinha mudado. Eu estava consciente dessa mudança. Eu
via-a em mim, nos meus gestos, nos meus pensamentos, em toda
a minha vida. Eu era uma mulher feita, confiante na sua
feminilidade, confiante em mim mesma, confiante no poder que
tinha sobre o homem que amava.
[209] Eu sentia-me mais livre do que
nunca. No estúdio de Chartmaker, onde passávamos os serões, por
vezes as noites, todo o mundo sabia que René e eu estávamos
juntos. Não tínhamos nada a esconder. Nós podíamo-nos
beijar, pegar a mão, chamar de "meu amor" um ao outro sem
que ninguém ficasse surpreso ou chocado. Eu acho que essa
liberdade e essa felicidade que eu vivia agiram sobre a
minha voz. Eu
sentia-a mais flexível, mais perto de mim, mais livre também,
mais brilhante.
Como sempre, René achava que
tudo o que estávamos fazendo era de alta importância.
− Com esse álbum você vai entrar
no show-business internacional. Se você falhar…
− Eu sei, meu amor. Se eu falhar
nós voltamos à estaca zero. E provavelmente vamos ficar
lá até ao fim dos nossos dias.
Eu fazia-o rir. Muito. Eu sempre
o fiz rir muito. Mesmo assim, durante o tempo em que
gravámos Unison, mais ou menos durante um ano, ele esteve
sempre inquieto e preocupado, sempre a colocar tudo em
questão. Em alguns dias ele queria mudar tudo, recomeçar,
tentar outra coisa, mudar o ritmo, instrumentos de sopro ao
invés de instrumentos de corda, dois pianos aqui, tirar a
guitarra dali, ou mesmo esquecer essa e partir para outra
canção…
Ele entendia-se maravilhosamente
bem com David Foster, que era também minucioso, maníaco,
nunca satisfeito. Nem com ele mesmo, nem com músicos, nem
comigo. Ouvindo-o a ele, poderíamos pensar que poderíamos
fazer ainda melhor. Podíamos sempre recomeçar. E era isso
que fazíamos várias vezes.
Os patrões da Sony estavam muito
empolgados por David Foster estar a trabalhar com a gente,
mas eles queriam alargar o meu público, queriam que eu
trabalhasse com outros produtores, com outros compositores,
com outros estúdios em outras cidades. Eu não desgostava da
ideia. Muito menos René, que tinha sido sempre obcecado com
a ideia de alargar o meu público e de variar o meu
repertório. Até David achava isso uma boa ideia. Eu então
iria gravar outras canções em Nova
Iorque primeiro, com Andy Goldmark, e depois em Londres com
Christopher Neil.
Foi assim que entramos no grande
turbilhão que, durante mais de 10 anos, não nos deixou em
nenhuma pausa e nos fez viver momentos extraordinários. Nós
ainda não éramos ricos mas tínhamos meios técnicos e
financeiros enormes. Tínhamos a confiança dos grandes
patrões da Sony, contactos privilegiados com as grandes
esferas da indústria do disco, ligações de amizade muito
forte com os músicos e com os técnicos de grandes estúdios
de gravação.
Quando deixamos Malibu para ir
para Nova Iorque, na Primavera de 1989, sabíamos que iríamos
agora viver como ciganos, nómadas, que só passariam por
Montreal, por Paris, por Los Angeles, por Las Vegas. Apenas passar, nunca ficar mais do
que algumas semanas no mesmo lugar. E depois partir em tour.
Eu imagino que os pilotos da
Fórmula 1, no volante dos seus carros, não têm tempo de
admirar a paisagem porque ela passa depressa demais. Mas eles
vivem intensamente, eu tenho certeza. De facto, eles apenas
vêem a paisagem de um jeito diferente da gente. Como eles,
eu iria ver a minha juventude passar correndo. As paragens
seriam raras e curtas.
[211] Mas eu veria outras coisas que a
maioria das pessoas não vê, eu viveria outra vida, muito
intensa, muito preenchida, aquela que eu sempre tinha
sonhado viver, ao ponto que eu tinha por vezes a sensação de
já conhecer tudo, de ter entrado em todos os estúdios, de
ter escutado todas as músicas, de ter trabalhado com todos
esses músicos. Por momentos, tudo me parecia dejá-vu.
Eu sentia-me em casa em Los
Angeles. Também me sentia à vontade no Chartmaker, tanto
quanto no estúdio Saint-Charles de Longueuil, ou mesmo
no Family Song de Paris, onde
tinha feito as minhas primeiras gravações. Eu cantava diante
de desconhecidos, pessoas da profissão, músicos curiosos
para escutar a minha voz, todo um público de pessoas que
entendem da profissão, de profissionais. Duas vezes pediram-me para fazer duetos para álbuns de outros, um com Billy Newton-Davis, outro com Dan Hill, com quem eu tinha a
impressão de ter cantado há milhões de anos atrás.
Em Los Angeles, uma cantora está
mais visível do que em qualquer outro lugar. Seria nessa
cidade que, com o famoso Tonight Show, eu faria a
minha entrada, em breve, no mundo do show-business
internacional, no big time, como dizia René. Eu
cantaria no Óscar, diante do público mais glamoroso que se
possa imaginar. E seria aí que Prince me veria e me ligaria
para me escrever uma canção, "With This Tear".
Em Nova Iorque, depressa me
senti em casa. É uma cidade rude, simples mas encantadora.
Não é tão boa como Los Angeles mas é vibrante, dá-nos
energia. Todo o mundo fala com todo o mundo, todo o mundo
toca todo o mundo, como se nos conhecêssemos a vida inteira.
Andy Goldmark, os técnicos e os
músicos que ele dirigia, que, segundo René, eram "os
melhores do mundo", acolheram-nos como se fossemos família.
Nem mais nem menos. Fizemos juntos uma canção, "Unison", uma
canção de palco, para dançar, fisicamente exigente.
Alguns artistas fazem carreira
apenas com discos, raramente no palco. Mas eu queria os
dois. Gravar um álbum era como preparar as provisões, os
mantimentos e as munições para levar em tour. Enquanto
fazíamos a escolha das canções, tínhamos em conta o
potencial que elas poderiam ter no palco, diante de uma
multidão.
Andy produzia-me com muito rigor
e controlo. Ele tinha uma ideia muito precisa dos sons e dos
ritmos que ele queria. E, para cada canção, nós trabalhámos
com ele até ele os encontrar.
O britânico Chris Neil tinha
outro jeito de trabalhar. Mais do que me impor a sua visão
das coisas, como Foster e Goldmark, ele levou-me a encontrar
por mim mesma o som que eu queria, os ritmos, as cores que
me convinham e me inspiravam. Isso era novo para mim. Eu
fiquei desestabilizada no começo. Saber o que queremos e o
que gostamos nem sempre é simples. Especialmente quando,
durante muitos anos, deixámos que escolhessem tudo no nosso
lugar. A tentação ainda era grande em confiar neles. Mas Chris
queria consultar-me em tudo. Eu aprendi muito com ele,
sobre mim mesma, sobre os meus gostos.
Ele encontrou-me várias semanas
antes da gravação, para preparar os instrumentais e os
arranjos de "Where Does My Heart Beat Now". Ele queria saber
qual a tonalidade em que eu iria cantar, mas também queria
saber como trabalhar.
[213] No
começo eu não sabia exactamente como responder. Eu estava
tentada a dizer que gostava de trabalhar quando tudo estava
indo bem, quando sentia que,à
minha volta, os outros estavam implicados e com vontade de
fazer tudo bem feito. Mas ele queria saber mais: − Diga-me
onde, quando, como você gosta de trabalhar. De manhã? De
tarde? De noite? Você gosta de cantar à luz de velas? Você
prefere cantar atrás de um biombo? Você gosta de ter muitas
pessoas à sua volta?
René tinha falado para ele que
eu não gostava de cantar, nem mesmo de falar antes do meio
dia. E que eu nem era eu mesma antes das 3 ou das 4 da
tarde. Chris então reservou os estúdios e os engenheiros
para a noite.
Com o clima, eu disse para ele
não se preocupar. Eu sempre adorei os estúdios, eu sinto-me
bem lá. A gente sente-se fora do mundo, fora do tempo
também. Paris ou Los Angeles, meio-dia ou meia-noite, era
igual.
Quando eu escuto uma ou duas
vezes uma canção que eu gosto, eu decoro-a sem dificuldade,
letra e música, e nunca preciso de muito tempo para preparar
uma gravação. Quando eu entro em estúdio, eu tenho a canção
na cabeça e no coração. Geralmente tudo acontece rapidamente e
bem.
Na noite da gravação, foi
exactamente isso que aconteceu. Eu fiz uma gravação para
aquecer a voz enquanto esperava o René e o Vito, que jogavam
sinuca na sala do lado.
− Foi perfeito. – Disse Chris.
Ele correu para dizer aos
jogadores de sinuca que estava feito. Escutamos a gravação.
Para ficar de consciência tranquila fizemos outra gravação.
Mas foi a primeira que entrou no álbum.
René e Vito estavam no topo da
felicidade. Eles deixaram-me no hotel e foram para o casino.
Não para fazer dinheiro mas para ter a certeza que a sorte
estava do nosso lado. A famosa teoria das sequências de
René… Mais tarde, quando ele voltou ao hotel, ele acordou-me
para me dizer que tinha ganho muito e que estava certo que
essa canção iria muito longe. E nós também.
− Você vai fazer o "Tonight
Show" com essa música, – ele repetia-me – eu estou te
dizendo!
Depois da cirurgia que a minha
mãe tinha feito, eu comprei uma casa em Sainte-Anne-des-Lacs, para que ela pudesse repousar. Era uma
grande casa, toda branca: paredes, tetos, mobílias, com
muitas janelas. Era uma coisa muito luminosa, quase demais,
sobretudo de Inverno, quando a neve cobria o lago e a
floresta. Era quase preciso usar óculos escuros dentro de
casa durante o dia. Mas os meus pais adoravam essa casa. Eu
também. No Outono, quando terminei a gravação de Unison,
eu passei lá algumas semanas.
Há um ano que eu vivia quase
sempre em hotéis no centro das grandes cidades, Los Angeles,
Nova Iorque, Paris, Londres. Eu precisava de ar puro, de
espaço. Eu queria reflectir, pensar em mim.
Quando estávamos no Québec, René
e eu tínhamos que fingir não estar juntos. Aos jornalistas
que me perguntavam se eu estava apaixonada, eu tinha que
responder ainda que eu não tinha tempo nem lugar na minha
vida nem no meu coração para um homem.
[215] Essas mentiras repetidas,
vividas à luz do dia, causavam-me muita dor. Eu estava
confusa e dividida.
Eu tinha acabado de gravar o meu
primeiro álbum em Inglês. Doze canções que falavam de amor,
de grandes paixões. Eu preparava-me para gravar, em New
Orleans, um videoclipe no qual aparecia muito sensual, provocante, com uma grande
experiência nas coisas do amor. Para as fotos de imprensa
e para o lançamento de Unison, pentearam-me, maquiaram-me e
vestiram-me de um jeito mais sensual ainda. Eu tinha jeans
justos, um corpete preto que mostrava os meus ombros e a
minha barriga.
Na vida real eu devia continuar
a dizer que era uma menina que não sabia nada de amor. Pelo
contrário, no palco e na televisão e nas minhas canções eu
devia-me comportar como uma mulher feita, preenchida e
amada. Era um jogo, com certeza. Era o show-business,
fingir. Mas, para mim, era o mundo pelo avesso.
Estranhamente, no universo do show-business, o mundo de ilusão e de ficção, nas canções,
nos videoclipes, nas fotos, onde todas as mentiras e
maquilhagens são permitidas, eu dizia a verdade. Na vida real,
onde eu queria ser verdadeira, eu tinha que me forçar a
mentir todos os dias e dizer que vivia sem amor. O meu maior
sonho era que o mundo inteiro soubesse que eu amava René
Angélil e que ele me amava, que fazíamos amor, que queríamos
ter filhos um dia, que queríamos construir uma vida juntos.
Mas René recusava.
− É muito cedo. Vamos esperar
mais um pouco.
Mesmo assim, cada vez mais
pessoas sabiam muito bem o que estava acontecendo.
Paul Burger, que se tinha
tornado presidente da Sony-Canadá, contou-me anos mais
tarde:
− Desde que eu vi vocês eu
percebi que vocês estavam juntos. Era evidente. Eu não
entendia porque demorou tanto tempo até vocês confessarem.
− Pergunte a René.
Paul veio ver-me em Sainte-Anne-des-Lacs. A nossa casa estava cheia de gente,
como sempre: os meus pais, os meus irmãos, as minhas irmãs,
René, os seus filhos. Nós tínhamos-nos tornado no centro de
atenção das nossas famílias.
Paul é americano, mas ele viveu
em Israel, na França, na Inglaterra. Ele falava várias
línguas, entre as quais Francês com a minha mãe e com as
minhas irmãs, que o achavam lindo e charmoso. Ele iria-se
tornar num amigo íntimo e precioso. E ele teria, durante
anos, um papel muito importante na minha carreira.
Ele tinha-nos vindo dizer, entre
outras coisas, que ele não estava muito satisfeito com todas
as canções que tínhamos gravada para o álbum Unison.
− Na minha opinião falta uma ou
duas canções com mais ritmo, para valorizar ainda mais a sua
voz. Se você estiver de acordo, voltamos para o estúdio que
você quiser, com quem você quiser.
Eu escolhi Londres com Chris
Neil.
René estava feliz. Ele estava
muito satisfeito com a maioria das canções que tínhamos
gravado mas ele achava também que faltava qualquer coisa no
total.
[217] Mas ele tinha tido medo que a Sony recusasse investir
mais nesse álbum que já estava custando muito caro.
Nesse dia, em
Sainte-Anne-des-Lacs, Paul falou do meu look, para me dizer
que o achava um pouco velho, para não dizer com todas as
letras que estava fora de moda. Ele repetiu-me que, para
colocar um disco no mercado, a cantora tem que ter um look…
e que eu não tinha o meu look.
− Tenho certeza que você não
se está a vestir como você gostaria de se vestir.
Era verdade. Eu tinha canções
com as quais me identificava. Mas as roupas não me diziam
nada. Muitas vezes nem tinham nada a haver comigo. Eu tinha
um closet cheio, pelo menos cem pares de sapatos, uns cem
vestidos, três ou quatro casacos de pele, muita roupa
interior e lingerie chique. Eu seguia a moda. Eu seguia os
outros, na verdade.
− Não é isso que você tem que
fazer. – Dizia Paul – Você tem que criar a moda.
Eu queria. Mas, ao mesmo tempo,
eu não era do tipo provocador capaz de representar um
personagem, que nem Madonna, por exemplo, que tinha já um
teatro inteiro e uma lenda bem estabelecidas.
Eu adorava criar looks, eu já
tinha uma paixão pela moda. Mas o que eu amava, acima de
tudo, era cantar, o prazer físico de cantar diante de uma
multidão. Quanto maior a multidão e quanto maior o palco,
maior o meu prazer.
Eu sabia bem que era com a minha
voz que eu tocava as pessoas, não com o meu look. Mas mesmo
assim, Paul tinha razão. O show-business é um negócio
visual. As observações que ele me fez nesse dia em
Sainte-Anne-des-Lacs convenceram-me que eu devia trabalhar
igualmente esse lado, ter mais audácia, ser menos correcta.
− Você só tem que se deixar
levar. – Dizia-me ele – Vá ao limite da sua loucura. Eu sei
que você gosta da moda. Dá para ver.
O que me comovia mais na
intervenção dele foi o facto de ver que o grande patrão da
Sony se importava com o meu futuro.
Eu tinha o apoio de uma enorme
multinacional. Perto de mim eu tinha um manager atencioso e
com experiência, apaixonado, cada vez mais conhecedor das
engrenagens do show-business americano.
Todas as esperanças me eram
permitidas. A minha vida começava a parecer um verdadeiro
conto de fadas.
Pouco depois do lançamento de Unison, três anos depois de Incognito, eu aceitei entrar na
mini-série Des Fleurs Sur La Neige. Eu tinha a personagem de
uma jovem mulher, Élisa, abandonada muito jovem pela sua
mãe, espancada por um pai bêbedo, estuprada pelo seu
padrasto, abusada por um marido brutal e maldoso… Era uma
história real, insuportável.
Durante algumas semanas, eu vivi
o contrário do meu conto de fadas, todos os dias no fundo
dos infernos. Eu não era mais a cantora que se preparava
para conquistar o mercado americano. Eu era uma pobre menina
desfeita e infeliz, sem meios, sem futuro, sem outro
projecto
senão escapar de um meio insuportável.
A gravação foi penosa. Primeiro,
eu tinha tido medo de entrar na pele de um personagem tão
infeliz, tão ameaçado e magoado. Eu tive que aprender a
andar com as costas curvadas, a ter sempre o olhar baixo, a
falar baixinho e a me comportar como uma vítima.
[219] Havia também, especialmente no
começo, uma certa antipatia da parte dos actores saídos das
escolas de teatro, que me viam como uma intrusa e que, até
no final, se recusaram a me considerar como uma deles. Isso
ajudava-me, de certa forma, a entrar na pele de Élisa, que
também era rejeitada e ignorada pelas pessoas em sua volta.
Eu representava até no limite. Eu vivia o seu inferno.
Eu gravei muitas cenas
violentas, moralmente e fisicamente. Quando era preciso
chorar, eu chorava de verdade, quando era preciso sofrer eu
sofria. Depois de alguns dias, eu fiquei cheia de hematomas,
eu tinha o coração partido, eu tinha medo de todo o mundo.
Era terrível. Mas eu adorei essa experiência. E, desde esse
dia, eu sonho fazer cinema. Interpretar um personagem,
entrar na sua pele e dar uma alma é uma experiência única e
maravilhosa.
Numa sexta-feira à noite,
voltando para Sainte-Anne-des-Lacs depois de um longo dia de
gravação, eu reconheci na estrada o carro do sobrinho de
René, Martin. Ele levava Karine para passar o final de
semana na minha casa. O ar puro de Laurentides fazia bem
para ela. Ela estava cada vez mais enfraquecida pela doença,
cada vez mais pálida e derrotada, que nem o meu personagem.
Mas ela tinha o seu bom humor, ela lutava sempre.
Ultrapassando o carro de Martin, eu fiz um grande sorriso
para ele e acenei com a mão. Depois eu perdi o controle do
carro, que fez um violento pião e saiu da estrada em recuo.
Eu não fiquei machucada mas o
carro ficou muito estragado. Eu não me lembro de ter tido
medo. Pelo contrário, acho que o choque me acordou, me fez
sair da pele de Élisa para me trazer de volta para a minha.
Eu acreditava, nessa época, que
nada de ruim poderia acontecer a mim, Céline Dion. Eu tinha
muitos projectos, esperanças e sonhos que, no meu espírito,
não podiam ficar por realizar.
Eu descobriria em breve que as
coisas não eram assim tão simples. Não é suficiente querer
ou sonhar. Mas mesmo assim, eu tive períodos na vida em que
me sentia invulnerável. E esse era um desses períodos.
Avisado pela minha mãe, René
voltou correndo de Las Vegas. Ele jurou-me que nunca mais me
deixaria sozinha quando eu estivesse trabalhando.
Eu sabia que era uma promessa
impossível. Eu sabia que seriamos um casal diferente dos
outros. Ele tinha as suas paixões: Las Vegas, o jogo, o
golfe, os seus amigos, o seu trabalho, toda essa rede de
contactos que ele estava estabelecendo com o show-business
americano. Eu achava, e ainda acho, que uma mulher não pode
impedir o homem que ela ama de viver a sua vida, os seus
sonhos, de ter o seu mundo. E vice-versa. Senão o
relacionamento vira uma escravidão. Cada um diminui-se do
seu lado ou diminui a sua porção de felicidade, de sonhos. E
isso acaba fatalmente por diminuir o relacionamento…
Eu estava feliz, é claro, quando
René estava perto de mim. Quando ele me falava dos nossos
projectos ou quando ele me contava as aventuras dos Beatles
ou do Elvis. Mas eu amava-o também pelo seu amor pelo jogo,
todos os jogos, por essa necessidade de estar sempre rodeado
pelos seus amigos.
[221] Eu amava-o porque ele era livre e
imprevisível. Eu amava-o mesmo pelas suas ausências, as suas
ausências físicas quando ele ia para Las Vegas ou Los
Angeles. Então eu sonhava com ele, a gente se falava muitas
vezes e por muito tempo ao telefone, a sua voz deixava-me
sempre feliz.
Eu amava-o por esses momentos
que ele passava na Lua, mesmo do meu lado, mergulhado nos
seus pensamentos, reflectindo no que devíamos fazer, o que
ele devia dizer aos patrões da Sony ou aos jornalistas. Eu
sabia que ele trabalhava para alargar a minha carreira, que
ele colocava todo o seu talento, todo o seu tempo, todo o
seu amor. Ele amava-me, entre outras coisas, por essa
confiança que eu tinha nele e porque eu sabia ser autónoma e
independente. Eu não era uma menina-mulher. Eu era uma
mulher madura e forte. Eu tornei-me no tipo de mulher que
ele amava: uma mulher livre que confiava nele e que o deixava
livre.
− Eu sei que você está a ser
sincero, − eu falava para ele – e eu acredito em você mas eu
nunca vou ficar brava com você, eu te juro, se você não
cumprir essa promessa.
E depois era eu quem prometia.
Eu nunca te impedirei de viajar,
de jogar blackjack ou golfe do outro lado do mundo, com
Marc, Jacques, Ben, Rosaire e os outros. Eu amo-te como você
é. Nunca mude. Mas a gente tem que falar tudo um para o
outro, sempre.
Eu aceitei mesmo guardar segredo
sobre o nosso amor porque ele queria. Mesmo quando nós
estávamos, como nesse Verão, mergulhados os dois na acção,
com mil coisas para fazer, a nossa vida mudava
constantemente. Por momentos eu era verdadeiramente muito
feliz, realizada.
Nós passámos o final de semana
juntos. Na segunda-feira de manhã, ele levou-me a Montreal,
onde devíamos recomeçar as gravações de Les Fleurs Sur La
Neige. Eu mostrei o lugar onde tinha tido o acidente na
passada sexta-feira.
− Não podemos correr riscos. –
Dizia-me ele – A partir de agora, se eu não puder estar
perto de você, eu vou dar um jeito de você ter sempre um
motorista.
− Mas eu não quero um motorista.
Eu adoro guiar, você sabe. E eu adoro estar sozinha. Ou
com você. Se eu tiver um motorista, você sabe como eu sou,
vou sentir-me obrigada a falar com ele.
− Você tem que se acostumar,
Céline. Um dia você vai ter um guarda-costas com você, uma
mulher para te vestir, uma estilista, uma secretária, tudo o
que as grandes estrelas têm em sua volta. Ele dizia-me,
muito calmamente, sem sombra de dúvida na voz, que eu
cantaria em breve, dentro de dois ou três anos, pelo mundo
inteiro. Mas, no mesmo fôlego, ele me informou que o álbum Unison
não estava tendo o sucesso que ele esperava. Tinha sido
concebido para o mercado americano mas não tinha saído do Québec. Apesar da
grande campanha de promoção que eu tinha feito na Canadá
inglês, nenhuma rádio tocava as minhas canções, nem em
Toronto, nem em Vancouver, nem em Halifax. E os patrões da
Sony americana tinham decidido esperar mais algum tempo antes de
o lançar nos
Estados Unidos.
Eram essas as más notícias. Ele
nunca me teria contado isso se não tivesse tido, para
finalizar, uma boa notícia ou pelo menos uma solução para os
nossos problemas.
Em Las Vegas, René tinha
descoberto que a Sony-Internacional iria fazer a sua
convenção anual no Chateau Frontenac, no Québec. Ele tinha
mobilizado Paul Burger e toda a Sony-Canadá para que eles
convencessem os patrões a me deixarem cantar duas
cançõezinhas durante essa convenção.
Se existe uma pessoa no mundo
sensível ao charme de René Angélil, essa pessoa sou eu. Mas,
mesmo assim, eu estava fascinada e maravilhada com o jeito
que ele tinha de criar ligações e pontes por todos os
lugares onde passávamos, o seu jeito de convencer as
pessoas.
Eu gosto de falar com as pessoas
também, mas eu não tenho o mesmo sentido de organização que
o René tem. Eu não vou pedir a todas as pessoas que conheço
para entrarem no meu barco, mesmo quando elas são todas
muito simpáticas. Ele fazia sempre isso. Assim que ele considerava
que essa pessoa nos podia trazer alguma coisa de bom, ajudar
os nossos planos, fazer avançar o barco, nem que fosse para
nos fazer rir, ele convidava-s para o nosso barco.
[223] Quando nós tínhamos começado a
preparar Unison em Malibu, ele conheceu um monte de pessoas
do show-business. Se, para a gravação de uma canção, ele precisava de um
trompetista ou um tocador de triângulo, ele sabia quem era o
melhor e contactava com ele. O trompetista ou o tocador de
triângulo chegavam depois, cheios de ideias, felizes por
trabalhar com a gente. Unison era, por isso, um álbum de
grande qualidade, tecnicamente impecável.
− Você sabe, Céline, que esse
álbum é um grande álbum?
− Claro que sim, claro que sei.
− Agora temos que levá-lo a ser
escutado e colocá-lo no mercado. Para isso temos que ter o
apoio da grande máquina da Sony. Quando eles te virem
cantando no Québec, eles vão apostar, confie em mim.
No Québec, eu tinha que cantar
às nove e meia da manhã, enquanto os congressistas e os
jornalistas tomavam o café da manhã. Eu acho que nunca na
vida eu tinha cantado antes do meio da tarde, mesmo quando
morava em Charlemagne e quando a casa estava cheia de
música. Eu detestava as manhãs, excepto quando se passavam em
calma absoluta e com o maior silêncio possível.
E mais, eu sabia que muitos
congressistas nem estariam bem acordados. A maioria deles
teriam ido para a balada até tarde na noite anterior –
o Québec é uma cidade onde se faz muitas festas. Muitos deles
estariam de ressaca e não teriam a menor vontade de escutar
uma cantora que eles conheciam mal cantando sobre
instrumental gravado.
Eu acordei de madrugada, para
ter tempo de acordar bem, de tomar o café, fazer as minhas
vocalizações e exercícios vocais. Para me ter em boa forma,
René repetia-me que os grandes patrões da Sony estariam
presentes, bem como os jornalistas mais sérios do show-business americano e que era a ocasião perfeita para eu
me fazer escutar… ou voltar para a estaca zero.
René tinha mandado instalar na
sala de baile do Chateau Frontenac um potente sistema de
som, capaz de fazer tremer o Cabo Diamant e acordar os
mortos.
Eu cantei "Where Does My Heart
Beat Now" às nove e meia da manhã enquanto eles tomavam o
seu segundo café. Durante um momento eles tinham um ar
paralisado, tanto que eu quase comecei a rir.
Quando a minha canção terminou,
eu fiquei de pé diante deles. Eu escutava o chiar dos
amplificadores. Os meus olhos cruzaram-se com os de René,
que estava no fundo da sala. Eu disse a mim mesma que ele
devia estar-se perguntando, como eu, o que estava
acontecendo. Nada durante uns segundos. Depois eles
explodiram. Eles levantaram-se em massa e fizeram-me uma
ovação que nem um trovão, mesmo os grandes patrões da Sony,
os jornalistas de Hollywood e da Broadway, do Québec, de Trois-Rivières, de Val-D’Or e de Sept-Îles.
No dia seguinte, o grande patrão
da Sony teve uma reunião com René. Ele tinha tomado a
decisão de avançar com o lançamento de Unison nos Estados
Unidos. Ele faria uma vasta campanha de promoção. Tínhamos
vencido.
Dois meses mais tarde, a
previsão que René tinha feito em Londres, diante de Chris
Neil e de Vito, no dia da gravação de "Where Does My Heart
Beat Now" realizava-se. Eu ia cantar essa mesma canção no
Tonight Show, diante de nem sei quantos milhões de
americanos. De todas as canções que eu
gravei, foi a primeira que vendeu nos Estados Unidos e noutros
países.
[225] Foi também por causa dessa canção que James
Horner e Will Jennings, compositor e autor de "My Heart Will
Go On", a canção do filme Titanic, me conheceram e
quiseram trabalhar comigo.
Eu já tinha ido várias vezes a
Los Angeles, eu já tinha viajado muito pelos Estados Unidos
e pela Europa e mesmo no Japão, por vezes em primeira classe… mas foi nessa viagem de
três ou quatro dias a Los Angeles que eu senti, pela
primeira vez, que tinha entrado no famoso "big time" de
René.
Dentro da limusina que nos
levava ao nosso hotel de Beverly Hills, eu ouvi pela
primeira vez na vida uma canção minha na rádio americana. O
locutor pronunciou o meu nome "Celeenn Dionn"… e disse duas
ou três palavras sobre o álbum Unison, que iria estar à
venda dentro de alguns dias. René estava radiante. Ele
perguntou ao motorista se ele conhecia a cantora que tinha
cantado.
− Não faço ideia.
Então René repetiu o meu nome
duas ou três vezes.
Diante do hotel, ele perguntou
ao motorista o seu nome, que era Brian, se a minha memória é
boa.
− Brian, essa é Celeen Dionn.
Eu apertei a mão que me estendeu
Brian e falei para René que ele era um "bebé grande". Mas eu
também estava no topo da felicidade.
Na tarde seguinte, ainda com
Brian, nós fomos na Sunset Boulevard ver as vitrinas da mais
famosa loja de música do mundo: Tower Records.
Havia três cartazes enormes,
milhares de discos de George Michael, New Kids on the Block
e Céline Dion. Uma enorme foto minha, com o texto escrito
"Remember the name because you will never forget the voice."
Lembrem do nome porque vocês
numa irão esquecer a voz… Era a fórmula de Michel Drucker,
com a qual ele me tinha recebido nos "Champs-Elysées". Parecia
que tinha passado uma eternidade e, ao mesmo tempo, parecia
que tinha acontecido ontem.
O ar de Los Angeles estava doce.
Nós andamos de mãos dadas um longo momento sem falar. Eu
tenho a certeza que estávamos pensando na mesma coisa.
Tínhamos completado um círculo. Estávamos no ponto de
realizar os nossos sonhos mais loucos. As grandes portas do
show-business americano estavam-se abrindo na nossa frente.
Dentro de alguns meses, nós poderíamos entrar aí com o
concerto que estávamos preparando e que, no Outono,
levaríamos pelo Québec e pelo Canadá inglês. Tudo parecia
escrito no céu.
Mas antes eu teria que enfrentar
uma das mais terríveis provações de toda a minha carreira.
Durante dias, durante semanas, nós acreditamos os dois que
tudo estava definitivamente comprometido.
E dessa vez, a fasquia estava
mais alta do que nunca. E não foi nem René nem eu que a
fizemos subir.
[227] Eu devia começar a minha tour
"Unison" diante do meu público fiel de Québec, com quatro
concertos seguidos. Dois em Drummondville e dois em Sherbrooke.
O drama aconteceu na terceira
noite.
A minha voz quebrou-se do nada.
Ela desfez-se como um papel molhado.
Foi um vazio, uma escuridão
total. Eu tinha a impressão de estar soprando para dentro de
um balão furado. Eu acreditei, naquele momento, que a minha
voz nunca mais voltaria. Ou que voltaria desfeita, mudada,
irreconhecível.
Eu saí do palco durante um solo
de guitarra e dei a entender ao director que não podia
continuar. René subiu ao palco para informar o público do
que tinha acontecido, assegurando
que eles seriam reembolsados e que faríamos o concerto mais
tarde, quando eu pudesse. Então as pessoas começaram a
aplaudir. Elas levantaram-se para me mostrar o seu apoio. E
eu desfiz-me em lágrimas. Nos bastidores eu encontrei Suzanne e ela chorava também. E Mégo. Todo o mundo chorava
ou ficava calado.
René chegou na sala e pegou a
minha cabeça nas suas mãos. Diante dos músicos, mas como se
estivéssemos sozinhos no mundo, ele beijou-me, ele apertou-me nos seus braços muito carinhosamente e embalou-me.
Estávamos de pé os dois, junto das escadas do palco. Ele não
chorava. Dizia-me:
− Não chore, não chore. Vamos
dar um jeito, você vai ver.
Ele tinha razão. Tudo se iria resolver. Mas, de facto, essa experiência ia mudar toda a
minha vida, mudar todos os meus costumes, o meu corpo e a
minha alma. E, por consequência, a minha voz. Eu não estou
exagerando. Dizemos que todas as coisas más nos trazem uma
coisa boa. Nesse caso precisamente, isso foi totalmente
verdade. Eu iria aprender muito com essa infelicidade que
caiu sobre mim nessa noite de Outono em Sherbrooke.
Voltámos a Montreal nessa noite,
os dois em silêncio, aterrorizados mas, ao mesmo tempo,
juntos, como dizia René, no mesmo barco, vivendo o mesmo
drama.
Estávamos a duas semanas da
nossa grande estreia em Montreal onde René esperava atrair
os grandes patrões da Sony-USA, os produtores, os promotores
americanos, para que eles me vissem, me achassem maravilhosa
e aceitassem fazer uma tour por toda a América do Norte,
depois na Europa, e porque não no mundo inteiro.
Tão perto do sonho, tudo parecia
destruir-se.
No dia seguinte de manhã,
René ligou para aquele que era considerado o melhor
otorrinolaringologista do Québec. Ele marcou com o doutor
Marcel Belzile. Eu nunca esquecerei o seu nome, a sua
preocupação gentil nem a terrível lição que ele me deu.
A sua clínica, onde ele nos
esperava no final da tarde, ficava em Longueuil, na margem
sul. Eu tinha passado a noite na minha casa em Duvernay, na
margem norte. Eu tinha que atravessar toda a cidade, em
plena hora de pico, e atravessar três pontes com muitos
obstáculos. Depois de ter passado uma meia hora nos
engarrafamentos, ficou evidente que nunca poderíamos chegar
a tempo e que seria melhor pegar o metro. Eu já tinha
viajado de metro com a minha mãe e as minhas irmãs em
Montreal, em Tóquio e em Paris.
Mas, nesse dia, eu não tinha
vontade. Os corredores e as escadarias por onde passamos
para chegar ao metro eram atravessadas por violentas
correntes de ar. Um ar frio misturado com calor, não há nada
pior para a garganta e para os brônquios.
[229] Eu estava triste, agoniada,
pressionada e muito brava. Eu não tinha vontade de me
misturar com a multidão. Havia viajantes por tudo quanto é
canto. Todos os metros estavam cheios até arrebentar. Mas eu
não tinha escolha. Se eu queria terminar a minha tour e
fazer a minha estreia em Montreal, eu tinha que ir no doutor
Belzile e tinha que ir de metro.
Eu tinha um casaco com capuz (eu
sempre adorei capuz), que tinha puxado para a frente do meu
rosto. As pessoas pareciam intrigadas, mas ninguém me
reconheceu. Ou melhor, ninguém me quis reconhecer, por
respeito a René. Ele era conhecido no Québec há mais tempo
do que eu, as pessoas devem tê-lo reconhecido. Por
consequência, todo o mundo devia saber que quem se escondia
debaixo do capuz era eu. Mas ninguém falou. Ninguém me pediu
para assinar autógrafos nem para me dizer que amava as
minhas canções. As pessoas tinham percebido, eu acho, que
alguma coisa fora do normal ou grave estava acontecendo.
Deviam ter visto no rosto sombrio do René que ele não tinha
vontade de rir ou de falar.
Isso é uma coisa que eu sempre
amarei no Québec, essa educação, essa gentileza, essa
inteligência. Eles respeitaram o nosso anonimato. Essa
cumplicidade emocionou-me muito.
Eu apercebi-me, nesse dia,
olhando em minha volta, que eu não vivia uma vida normal. Eu
fiquei observando discretamente aquelas pessoas. Era o meu
mundo, eram os rostos que eu via todas as noites nas salas
onde eu cantava. Eu agora os observava e escutava. Eu dizia
a mim mesma que trabalhava para eles. Eram eles que me
aplaudiam, que me escutavam, que me amavam. Era por eles
que, dentro de alguns dias, eu cantaria no palco do Teatro
Saint-Denis.
Numa estação, provavelmente
Berri-de-Montigny, tivemos que descer para procurar outra
linha. René, que nunca tinha andado de metro, foi pedir
informações com os passageiros. Um rapaz, estudante, ofereceu-se para nos guiar, sem pedir nada, mesmo sem apertar a
nossa mão. Ele não tentou ver quem estava debaixo do capaz.
Ele sabia certamente que era eu. Quando ele nos deixou, ele
disse:
− Boa sorte, Monsieur Angélil.
Cinco minutos mais tarde,
estávamos em Longueuil, na clínica do doutor Belzile, que
ficava mesmo por cima da estação de metro. No meu espírito,
isso demoraria apenas alguns minutos. Ele me examinaria, me daria medicamentos ou me daria uma
injecção. Ele me diria
para repousar e tomar muitos líquidos. E eu poderia cantar
amanhã.
Foi um pouco o que ele fez. Mas
ele deu-me um sermão que me iria forçar a repensar a minha
carreira. Ele deu-me o maior susto da minha vida.
− As suas cordas vocais estão
cansadas e irritadas porque você as treinou mal e tratou
mal. Você pode continuar a cantar por mais algum tempo mas
você tem que, mais cedo ou mais tarde, deixar a sua voz
repousar por alguns dias, quem sabe semanas. Senão você tem
que ser operada. Essa operação poderá mudar a sua voz,
provavelmente o timbre.
[231] Eu arriscava a tornar-me na
versão feminina de Joe Cocker ou de Serge Gainsburg.
− As cordas vocais são tão frágeis
que têm inimigos em todo o lugar, tanto dentro de você como
no ambiente.
Contrariamente ao que eu sempre
tinha achado, não são os resfriamentos nem o calor que temos
que temer mais. Uma voz em boa condição pode resistir a esse
tipo de agressão. É a fumaça do cigarro, o pó, a poluição…
são irritantes muito mais perigosos. Mas, pior do que tudo,
é o stress, a fadiga e o mau uso da voz.
A fumaça sempre podemos banir do
nosso ambiente. O pó também. Podemos ficar longe das pessoas
gripadas ou resfriadas. Mas viver sem stress ou sem fadiga,
quando o nosso sonho é cantar diante de grandes multidões e
por todo o mundo, é um desafio. Eu sabia que, no meu caso, o
problema era esse. O problema era o cansaço, a pressão, o
stress constante.
− E também o mau uso que você
faz das suas cordas vocais há muito tempo – repetia-me o
doutor Belzile.
Ele explicou-nos que os nódulos
ou pólipos que se desenvolvem nas cordas vocais, e acabam
por tirar a sua flexibilidade e elasticidade, não provêm de
uma infecção mas sim de um defeito técnico. Uma cantora sem
experiência que força a sua voz cantando fora do seu registo natural, por exemplo, ou indo além dos seus
limites, pode machucar seriamente as suas cordas vocais.
Temos que saber forçar, aprender a colocar a voz.
− Eu posso te curar
momentaneamente. Existem misturas de cortisona e de
xilocaína que se podem aplicar directamente nas suas cordas
vocais. Terá efeitos imediatos a curto termo que vão parecer
milagrosos. Mesmo que vocês esteja totalmente afónica agora,
você será capaz de cantar com a sua melhor voz daqui a umas
horas. Mas há grandes riscos. Se você recorrer a isso
regularmente você pode causar rupturas, rasgões. E depois
disso você pode ficar incapaz de cantar durante semanas,
quem sabe meses. Você pode acabar com a sua voz para sempre.
E aí não haveria mais o que fazer. Até uma cirurgia seria
inútil.
Ele olhava-me directamente nos
olhos, muito intensamente. Eu sentia que o seu maior desejo
era curar-me. A sua compaixão emocionava-me.
− Eu estou falando muito sério.
Uma vez, duas vezes pode ser, você pode recorrer a esses
medicamentos. Mas com a condição de não forçar a voz. Depois
você vai ter que aprender de novo a cantar.
Eu bebia as suas palavras. Eu
compreendia tudo, todos os perigos que eu tinha corrido,
todos os erros que tinha cometido. Eu tomei as minhas
decisões na hora. Eu iria curar-me, eu ia mudar. Eu evitaria
todos os ambientes com fumaça, com pó ou poluição. Eu
evitaria misturar-me com multidões e as visitas de grupo ao
meu camarim. Eu ia parar de beijar todo o mundo como sempre
fazia.
[233] E eu nunca mais ficaria cansada.
A partir de agora eu devia dormir bem e por muito tempo,
devia relaxar, desfazer do stress, comer bem, não demais
e apenas coisas boas. E eu ia rir muito e estar feliz porque
o riso e a felicidade são bons para a saúde e inimigos do
stress.
Mas, primeiro do que tudo, eu
iria desfazer-me daquilo que o doutor chamava "os maus
hábitos de cantora". Eu ia aprender a cantar. Eu voltaria à
estaca zero, se fosse preciso, refazer as escalas mais
básicas.
Eu saí da clínica do doutor
Belzile com essas decisões na cabeça, inabaláveis, eu sabia.
Eu sentia-me como um soldado que parte para a guerra. E
estava certa da minha cura. Eu sabia que ela dependia apenas
de mim. O doutor Belzile tinha-me dito:
− Você pode-se curar se você
quiser. É você quem decide.
Quando íamos a sair, ele disse:
− Eu ficaria mais descansado se
você consultasse o doutor William Gould, em Nova York. Ele é
o melhor otorrinolaringologista do mundo. Tudo o que eu sei
eu aprendi dele. Ele te dirá se você tem que ser operada ou
se existe outra solução.
Nós tínhamos previsto uma
paragem de mais de um mês por volta do Natal. Eu
aproveitaria para encontrar o Doutor Gould, esperando que
não fosse tarde demais e fazendo o melhor possível para cuidar
e proteger a minha voz.
Eu retomei a minha tour depois
de dois dias de silêncio. Antes dos concertos eu fazia
exercícios de aquecimento e vocalizações. Entre os meus
concertos eu ficava em silêncio.
Eu sabia que a minha vida de cantora tinha mudado.
Eu sentia-me um pouco como as
mulheres que iam para o convento. Eu as imaginava felizes e,
ao mesmo tempo, assustadas pela perspectiva de viver toda a
sua vida até ao fim na presença de Deus, em silêncio e na
oração, sozinhas. Durante anos a minha vida iria parecer com
a delas, feita de disciplina e de privação, de silêncio, de
meditação, de visualização… E, claro, de alegrias intensas.
Mas antes de mergulhar nessa
nova vida, eu tinha que terminar a minha tour no Québec e
apresentar no meu concerto no teatro de Saint-Denis.
Eu acho que nunca vivi uma
estreia tão mexida. Por causa do que me tinha acontecido,
tínhamos adiado o concerto por uma semana. Eu estava
descansada, a minha voz estava de novo em forma. Mas, por
diversas razões, eu não consegui evitar viver momentos de
stress assustador.
Primeiro, corria um rumor de que
eu estava esgotada. Diziam no nosso meio e nos jornais que
os especialistas tinham falado que a minha voz estava
acabada. E essa estreia em Saint-Denis seria o meu último
concerto, a minha despedida, o meu adeus definitivo ao
show-business. Era isso que se escrevia em grandes páginas
dos tablóides, o que se dizia na rádio e muitas pessoas
acreditavam.
[235] Nós
sabíamos bem que era mentira. Mas René tinha medo que os
produtores canadianos e
americanos acreditassem nesses rumores e deixassem de se
envolver nos nossos projectos. Eu tinha então que, nessa
noite em Saint-Denis, provar que a minha voz estava em
perfeita condição.
Como para me dar ainda mais
pressão, eu tinha criado, dois dias antes, um escândalo na
Gala ADISQ, recusando o Felix destinado à Cantora de Língua
Inglesa do Ano.
As coisas nunca foram fáceis
entre o Canadá inglês e o Québec. Montar um concerto em
inglês, para um artista do Québec, era considerado na época,
mais do que hoje em dia, uma operação extremamente delicada.
Eu tinha aprendido isso dois
anos antes, quando a comunidade falante de Francês de
Toronto me tinha convidado a cantar no concerto de S.
João, apresentado num palco exterior, no Harbour Front, em
frente ao lago Ontário.
Eu tinha previsto cantar algumas
canções em inglês, entre as quais a velha "What a feeling" e
outros clássicos como "Over the Rainbow" e "Summertime"…
Quando comecei a cantar em inglês as pessoas vaiaram-me. A
maioria dos falantes de francês de Toronto usavam o inglês
no seu trabalho e na rua. Mas a festa de S. João é um
momento sagrado em que eles reafirmam a sua identidade. Eu
não estava acostumada a ser vaiada. Eu comecei a entrar em
pânico quando uma grande chuva caiu sobre o Harbour Front e
tivemos que interromper o concerto.
Mais tarde, depois do lançamento
de Unison, eu tinha apresentado um concerto em inglês, uma
noite em Montreal e uma noite em Toronto. Os jornalistas,
tanto de um lado como de outro, interrogavam-se se o público
do Québec aceitaria que eu cantasse em inglês. No nosso
meio, diziam que eu arriscava a perder a minha carreira no Québec.
Mas nada nem ninguém me podia
fazer renunciar ao meu sonho de cantar em inglês. Era o
único jeito de uma cantora, seja ela de Charlemagne, de
Bobigny, de Barcelona ou de Quioto, ser ouvido no mundo
inteiro. René e eu tínhamos a certeza que o público do Québec aceitava essa decisão e que me davam a sua bênção.
Era a media que fazia essa polémica inútil.
Recusando o Félix destinado à
Melhor Cantora de Língua Inglesa do Ano, eu queria colocar
os pontos nos is. Eu admito que não fui muito bem na minha
declaração:
− Eu não sou uma cantora
anglófona. Onde quer que eu vá no mundo, eu digo que sou do Québec.
Do nada, os falantes de Inglês
de Montreal ficaram furiosos. A minha declaração dava a
entender que eles não eram do Québec, mesmo morando no Québec.
Isso é muito complicado por
aqui. A minha estreia em Saint-Denis estava tornando-se num
evento político. Tínhamos medo que surgissem manifestações,
que eu fosse vaiada…
No entanto, nessa noite, René e
eu tivemos direito a aplausos enormes. A noite foi, para nós
os dois, um triunfo absoluto. Quando René entrou na sala,
poucos minutos antes de subir a cortina, as pessoas
aplaudiram muito.
[237] No Québec já havia uma aura em
volta dele, por causa do que ele tinha conseguido fazer
junto dos grandes patrões do show-business, por causa dos
grandes contratos que ele tinha feito com eles e por causa
da forma que ele geria a minha carreira. Também pelo seu
charme pessoal. Quem sabe também porque as pessoas estavam
emocionadas com a nossa história de amor. Mas René não
queria saber disso, ele não acreditava ainda.
Quando a tour terminou, eu fui
para Nova Iorque encontrar o doutor Gould, um homem
adorável, muito delicado e cheio de humor.
Nas paredes da pequena sala de
espera onde esperámos alguns minutos, havia fotos dele com
John Kennedy, Frank Sinatra, Walter Kronkite e muitas outras
celebridades que ele tinha curado ao longo de quase meio
século de trabalho.
Ele repetiu-me, no geral, o que
o doutor Belzile me tinha dito, que as minhas cordas vocais
estavam mal. E que era culpa dos meus maus hábitos.
− Provavelmente vamos ter que
operar. – Disse-me ele.
Lágrimas rolaram pelo meu rosto.
Eu pensava no que o doutor Belzile me tinha falado, que a
minha voz ficaria irreconhecivelmente alterada, mudada ao
ponto de ficar desconhecida, baça, áspera, acabada.
− Há outra solução – disse o
doutor Gould.
− Eu aceito essa – disse eu.
− Se você ficar em silêncio três
semanas, podemos quem sabe fazer um tratamento infinitamente
menos arriscado e sem qualquer efeito secundário.
Eu fiz um gesto para mostrar que
as minhas três semanas de silêncio tinham acabado de
começar.
− Quando eu falo de silêncio, é
de silêncio absoluto – disse-me ele. – Você nem pode falar
durante o sono, nem rir. É muito difícil, você sabe. E não
tente enganar. Se você falar, nem que seja uma vez, eu verei
quando te examinar.
Eu levantei os meus polegares e
pisquei o olho.
Quando eu me fui embora, ele beijou-me muito carinhosamente na testa.
Eu passei o Natal mais estranho
de toda a minha vida. Quase todas as noites, os meus irmãos
e irmãs cantaram juntos, como sempre tínhamos feito desde
que eu me lembro. Mas, pela primeira vez, eu não podia
misturar a minha voz com a deles. Eu fazia precursão,
maracas ou tamborins. Mas eu sentia-me terrivelmente sozinha
no meu silêncio.
Quando o doutor Gould me
examinou a meio de Janeiro, ele disse-me que estava
orgulhoso de mim.
− Sinceramente, eu achava que
você não ia ser capaz – ele disse-me.
Ele parecia verdadeiramente
feliz, como se eu lhe tivesse dado um presente.
− Você agora pode começar a
treinar.
O seu sócio, o doutor William
Riley, iria cuidar de mim e restaurar a minha voz, o que foi
um longo trabalho, por vezes penoso mas maravilhoso.
Ele fazia-me trabalhar de pé, na
maior parte das vezes. A gente falava um pouco, fazíamos
exercícios de aquecimento e depois ele jogava-se para cima
de mim, literalmente. Ele pressionava-me na parede com todo
o seu peso e fazia-me cantar escalas.
[239] Ou então ele colocava-me em posições verdadeiramente desconfortáveis para
cantar, como por exemplo, com os braços cruzados, com a
cabeça inclinada. E eu tinha que cantar naturalmente.
Com ele, tanto quanto com Eddy
Marnay em outros, eu descobri o grande prazer de
estudar, de trabalhar, de fazer exercício e esforço. Eddy
tinha mudado a minha relação com as palavras. Ele tinha-me
ensinado a dor, cor, sentido e peso a cada
uma das palavras que eu cantava. Com o doutor Riley eu tinha
a impressão de encontrar de novo os ensinamentos do Eddy, a
mesma paixão, a mesma intensidade, o mesmo prazer.
Um dia, enquanto fazíamos os
nossos exercícios, bateram na porta. O doutor Gould entrou,
seguido de um homem terrivelmente imponente. Era Luciano
Pavarotti. Depois das apresentações, o doutor me pediu para
que eu cantasse qualquer coisa.
− É apenas para Luciano escutar
a sua voz – disse ele.
Eu estava tão intimidada que nem
pensei em recusar.
− O que você quer que eu cante?
– Eu perguntei.
− Não importa, é o que você
quiser.
Eu cantei o que me passou pela
cabeça, alguns acordes de uma canção que eu não ouvia há
muito tempo: "You Bring Me Joy". Luciano Pavarotti fez
todo o tipo de elogios e me disse que eu tinha uma voz que
tocava directamente o coração. Eu fiquei muito emocionada,
com os olhos cheios de lágrimas. O doutor Gould olhava-me,
orgulhoso e emocionado, também como se eu fosse sua neta.
Depois disso, durante os meus exercícios, no palco e em
estúdio, eu pensei muitas vezes na frase de Pavarotti: ter
uma voz que toca directamente no coração. E o doutor Riley lembrou-me disso também.
William Riley também é um
músico. Ele tem uma voz muito bonita. Ele mostrou-me as
infinitas sonoridades que podemos dar às palavras, aos sons,
mudando a posição da língua, os lábios e das bochechas. Ele
mostrou-me como apoiar a minha voz no rosto, como colocar a
cabeça, como utilizar o peito, o rosto. Ele tirava de mim
sons que eu nunca tinha escutado, que eu nunca pensei ser capaz de
produzir. Graças a ele eu descobri um novo universo musical,
vasto, fascinante…
Eu cantava menos com o nariz do
que no começo na minha carreira mas ainda havia um toque de
nasal na minha voz. Para me corrigir, eu tinha desenvolvido
técnicas vocais que o médico achava ineficazes. Ele iria
ajudar-me a livrar delas. Ele me propôs exercícios de
aquecimento e de elasticidade que deviam durar pelo menos
meia hora antes de cada concerto, além de longas sessões de
vocalizações.
Ele estava-me fazendo uma
demonstração do tipo de exercícios que eu devia fazer a
partir de agora todos os dias quando René o interrompeu para
lhe perguntar dentro de quanto tempo veríamos os resultados
desse trabalho.
− Não haverá nada de perceptível
antes de três anos. Dentro de cinco anos Céline terá uma voz
melhor.
René ficou boquiaberto. Ele não
abriu mais a boca durante toda a sessão. Enquanto
esperávamos o elevador para sair da clínica, ele olhou para
mim e disse que compreenderia se eu me recusasse a viver
isso.
[241] − Eu não te posso pedir para
mudar a sua vida durante cinco anos para obter resultados
que nem temos a certeza se vamos ver ou não.
Quando entramos no elevador, ele
disse:
− Se alguém me oferecesse um
regime que me fizesse emagrecer daqui a cinco anos, você
pode ter a certeza que eu recusaria logo.
Mas eu já tinha aceitado. Eu não
recuaria jamais nem colocaria em questão por uma fracção de
segundo. Eu não tinha a menor dúvida. Seria extremamente
exigente. Mas teria sido muito mais difícil renunciar:
quando desejamos muito conquistar
alguma coisa (ou alguma pessoa), temos que ter bons meios
para chegar lá.
Alguns dias mais tarde, eu
voltei sozinha ao escritório do doutor Riley. Ele tinha-me
preparado um conjunto de exercícios que eu tinha que fazer
todos os dias, excepto na véspera de um show ou de uma
gravação, porque eu tinha que fazer silêncio.
Depois ele fez-me recomendações.
E, como bom artista que ele era, ele aconselhou-me a esquecer
essas técnicas quando estava no palco.
− Você não pode deixar isso
transparecer senão vai perder o sentimento. E não faça
demais. Mesmo que você treine 12 horas por dia, não vai
acontecer mais depressa. Você tem que dar tempo para a sua
voz se desacostumar dos maus hábitos e assimilar novos.
Demais por vezes é pior do que pouco.
Do outro lado havia o
consultório de outra otorrinolaringologista, que iria, ela
também, se tornar numa grande amiga, Gwen Korovin. Eu passei
horas com ela estudando os órgãos da voz. Ela mostrava-me
imagens de livros: a laringe com as cordas vocais de cada
lado, a traqueia, a faringe. Ela colocava-me uma câmara
dentro da garganta e eu via, num monitor, a fonte da minha
voz, as cordas vocais que palpitavam… ela explicava-me que a
tensão e os movimentos que eu lhes dava produziam um som
mais ou menos sem forma. A minha boca e a minha língua
modelavam esse som e criavam palavras e notas.
Mas tudo isso se parece com o
golfe: no começo ficamos paralisados. Quando começamos a
seguir as aulas, descobrimos que existe um milhão de coisas
nas quais pensar: posição dos ombros, da cabeça, movimento
dos braços, estratégia do olhar,
etc. Com Gwen, eu descobri até que ponto cantar, falar,
proferir um simples som, mesmo respirar, eram respirações
complexas.
Era como se eu recomeçasse do
zero, como se eu reaprendesse não apenas a cantar mas também
a falar, a respirar, a mexer, a andar, a ficar de pé ou
sentada. Eu ganhei o costume de não me apoiar nas costas da
cadeira, de não colocar os cotovelos sobre a mesa ou apoiar
a cabeça com as mãos. Eu nem gostava mais de poltronas
demasiado profundas e moles. Eu era dura: um verdadeiro
soldado em treino.
Felizmente, eu esquecia tudo
isso quando chegava ao palco. Eu cantava por prazer, sem
pensar no que estava aprendendo.
Eu segui o meu regime vocal como
uma maníaca. Todos os dias, excepto quando era dia de
silêncio. Eu adorei isso. Eu encontrei nisso um prazer
verdadeiro, quase desportivo. De facto, o meu treino era muito
próximo do treino dos atletas.
Eu começava por fazer
inspirações e alongamentos, torções do pescoço. Depois aquecia a voz, pegava uma nota e segurava o maior tempo
possível, sem forçar, até ao fim do meu fôlego.
[243] Eu fazia a
minha voz viajar pelo meu corpo: a voz da cabeça, a voz do
nariz, a voz da garganta, a voz do ventre.
Eu pensava em texturas e em
cores e tentava traduzir, transmitir na minha voz. Eu fazia
um crescendo de séries de sons, apoiando-me cada vez
mais em cada nota, mudando de ritmo e de tonalidade. E eu
recomeçava, recomeçava, recomeçava… É esse o segredo: ser
capaz de recomeçar, continuando a colocar o seu coração, a
paixão.
Era um jogo. Era um tipo de
teste também. Se eu não estava bem, se eu estava distraída
ou preocupava, dava logo para ouvir. Então eu tinha que recomeçar, acalmar-me, controlar-me, até que a minha voz encontrasse a vibração, a cor
e a textura desejada.
A voz tem costumes e caprichos.
E também tem ciclos. Em alguns dias, por exemplo, quando
estou menstruada, ela parece-me ter menos cor. E não há nada
a fazer. Por vezes ela está menos dócil, quer dizer, eu tenho mais dificuldade em controlá-la. Então, é como se nós
duas brigássemos. Ela ficava amuada comigo, ela afasta-se de
mim.
Mas, com os exercícios do doutor
Riley, eu conseguia sempre encontrá-la. Passamos sozinhas, a
minha voz e eu, dentro do meu camarim ou do meu quarto,
lindos momentos.
O mais difícil, no começo, era o
silêncio, os grandes mergulhos solitários no silêncio. Na
primeira vez, especialmente. Durante três semanas eu
atravessei um deserto, eu achei que nunca mais acabaria.
Eu via na minha cabeça filmes de
terror, verdadeiros pesadelos. Há um do qual ainda me
lembro: eu tinha ficado muda para sempre. Eu estava
aterrorizada, desfeita. Mas eu ia até ao fim. A minha mãe
entrava no quarto e encontrava-me chorando. Eu interrompia
os meus pensamentos para dizer, por gestos, que isso era um
jogo, que ela não tinha que se preocupar. Quando ela me
deixava, eu voltava para os meus pensamentos. E eu levava
até ao final, até ter um final feliz: eu não cantava mais
mas eu dava entrevistas, Manon estava lá, ou Suzanne, elas
liam os meus lábios e traduziam as minhas respostas aos
jornalistas. Eu tinha coisas a dizer e eu trabalhava. Eu
tinha-me tornado numa grande pianista, eu escrevia letras e
melodias de canções, romances, roteiros de filmes,
videoclipes, eu tinha ideias…. Tudo o que eu tinha no meu coração e que antes passava pela minha voz, agora tomava
outro caminho. Isso consolava-me, a vida continuava.
Pouco a pouco eu iria acostumar-me
a esses períodos de silêncio, esses momentos de repouso, que
me permitiam desligar de verdade. É um mundo à parte, um
país. Eu voltarei sempre para ele, do mesmo jeito que sempre
volto ao Québec.
Com a minha irmã Manon e com
Suzanne Gingue e algumas outras pessoas, eu desenvolvi uma
linguagem de sinais que funciona muito bem. Elas podem ler
facilmente e rapidamente os meus lábios também. As mulheres
da minha equipa são muito mais hábeis a entender-me do que
os homens.
[245] René precisa que eu faça um desenho ou chame Manon para o ajudar. Por vezes, pensando que ia facilitar as
coisas, ele fingia que me entendia. Mas ele finge mal. Eu
sei, eu vejo. O meu irmão Michel é igual. Os homens têm a
reacção de, quando eu me exprimo assim, falar mais alto e
mais lentamente como se eu fosse surda ou retardada. As
meninas, pelo contrário, fazem que nem eu, elas falam baixo,
por vezes sem voz. E isso cria entre nós um clima de paz.
Maman e eu tínhamos um código
para falar o telefone.
− Você dormiu bem, minha
pequenininha?
Eu batia uma vez com a unha no
telefone para dizer que sim.
− Você cortou o cabelo?
Batia duas vezes com a unha para
dizer não.
− O seu pai está mandando um
beijo e eu também.
Eu batia uma série de vezes com
a unha para mandar beijos para eles.
O silêncio tornou-se, cada vez
mais, uma espécie de refúgio. Eu tinha a impressão, em
alguns dias, de ser invisível, como se os outros não me
vissem, não me falassem, como se eu não
tivesse nada para lhes dizer. Eu observava o mundo sem ser
vista.
Foi nessa época que comecei a escutar dentro de mim uma vozinha que vinha na
minha cabeça e que me contava melodias que me deixavam
alegre. Eu trabalhava-as durante alguns dias mas depois esquecia-as. Eu cheguei a guardar algumas e pensar em fazer
delas canções. Mas eu nunca levei esses projectos para a frente.
Eu faria isso quem sabe um dia.
Eu sentia que eu saía sempre
mais forte dos meus períodos de silêncio, tão bem que eu
nunca mais poderia viver sem eles. Hoje em dia, mesmo quando
não tenho que cantar e proteger a voz, eu fico longas horas
em silêncio. As religiosas e os monges fechados num convento
fazem isso desde sempre. Não é sem motivo. Isso dá uma visão
diferente do mundo, muito clara e transparente.
Eu não sou religiosa mas eu
tenho muito respeito pelas pessoas que praticam seriamente
uma religião, devido à disciplina que é imposta sobre eles.
Existe uma verdade nisso. E o silêncio para mim é o ponto de
partida. É muito vasto, como a solidão, como a música.
Depois de longos meses de
vocalizações e mergulhada em silêncio, eu não via nenhuma
mudança na minha voz. Mas eu nunca desisti. Eu nunca
duvidei. E eu descobria a cada dia que cantar era um prazer
maior.
René procurava constantemente
criar eventos. Cada vez que ele via um palco em algum lugar,
ele queria que eu subisse nele. Onde quer que se reunisse
uma multidão, ele queria que eu cantasse, que me escutassem,
que me aplaudissem. Ele dava um jeito em tudo para que isso
acontecesse. Ele trabalhava o tempo todo, em tudo quanto era
canto.
Ele não tinha um escritório. De
facto, o seu escritório era onde ele estava: no restaurante,
no carro, na sua casa, na minha casa. Tinha sempre pessoas
para encontrar, mil e uma ligações de telefone… Mas ele não
tinha agenda nem bloco de notas nem lista telefónica. Eu não
conhecia ninguém que trabalhasse assim. Ele tem uma memória
fenomenal para os números e para as datas e para os números
de telefone.
Ele acorda de manhã dizendo que
é o aniversário de alguma pessoa que ele conhece ou de um
evento importante da sua vida ou da minha carreira. Ele
dirá, por exemplo:
− Faz dois anos que você gravou
Unison em Nova Iorque.
Ou:
− O meu pai faria hoje 81 anos.
Ou ainda:
− Na primeira vez que você foi
no Tonight Show foi no dia 21 de Setembro mas foi
numa sexta-feira, não num domingo como este ano.
Ele tinha decidido que o dia em
que a minha carreira tinha começado tinha sido no dia 19 de
Junho de 1981, no dia em que eu tinha feito a emissão de
televisão com Michel Jasmim. Dez anos mais tarde, ele tinha
um pretexto para celebrarmos no Forum de Montreal, os meus
dez anos de carreira.
[247] Eu tinha acabado a minha
primeira tour pelo Canadá inteiro. Tinha durado todo o
Inverno. Essa tour tinha começado muito devagar. Eu tinha
cantado em pequenas salas no Oeste Canadense, Edmonton,
Calgary, Vancouver. Mas depois de ter vencido dois Juno
(Melhor Cantora e Melhor Álbum do Ano), "Where Does My Heart
Beat Now" subiu no topo de quase todos os tops americanos e
David Letterman convidou-me para o seu "Late Show". Eu tornei-me numa grande
estrela do dia para a noite, de um lado ao outro do país.
Num piscar de olhos os ingressos venderam-se. Eu fui cantar
concertos esgotados nas maiores salas da maioria das cidades
canadenses.
Eu tinha então medo que essa
noite de aniversário se tornasse num momento triunfalista.
Eu não gosto das pessoas que proclamam o seu sucesso e a sua
boa sorte. Eu não queria parecer uma menina que vive
cantando vitória.
− Porquê não? – dizia-me René –
Você conseguiu o que mais nenhum artista Canadense
conseguiu. Você triunfou em todo o Canadá. Agora você está
voltando a casa. Você tem que celebrar. Você tem o direito
de estar orgulhosa do que você conseguiu. Não é arrogância,
é alegria. Você tem que mostrar a sua felicidade ao mundo.
Como sempre, ele tinha razão.
Como ele sempre faz, ele levou-me, ele envolveu-me no seu projecto. É essa a sua força, o seu génio, ele sempre leva
todo o mundo no seu projecto, começando por mim.
Ele queria que esse concerto no
Forum lembrasse os grandes momentos da minha carreira. Em
canções, claro, mas também com imagens projectadas numa tela
gigante. Eu passei então duas longas noites assistindo com
ele a emissões de TV e de concertos que eu tinha feito ao
longo dos últimos anos e que ele me mostrou em ordem
cronológica. Por momentos eu não podia acreditar no que estava
vendo nem no que estava ouvindo.
− O quê? Eu tinha um vestido
ridículo! Eu fui para a televisão com aqueles dentes? E com
aqueles cabelos? E com aquela voz nasal?
René estava emocionado,
maravilhado.
− Você está vendo o caminho que
você percorreu? – Dizia ele – Você evoluiu sem parar, você
mudou, você aprendeu sem parar.
Graças a ele, eu reconciliei-me
com algumas imagens minhas que eu nunca tinha gostado. Para
começar, com a imagem daquela menina de 13 anos que, dez
anos antes, tinha cantando "Ce N’Était Qu’Un Rêve" na
emissão de Michel Jasmin e que lhe tinha dito que não
precisava de aulas de canto nem de aprender nada.
Essa menina emocionou-me pela
sua ingenuidade. Eu encontrava a sua voz, nos seus olhos,
mesmo nas suas palavras desajeitadas, o fervor e a frescura
do seu sonho, do meu sonho.
Eu revivi momentos muito
emocionantes como o dia em que cantei "Une Colombe" na
frente do Papa no estádio Olímpico. Eu ri muito ao me ver
chorar nas galas ADISQ. Eu revi-me nas ruas de Paris com Mia
e Eddy, depois no teatro Budokan de Tóquio quando venci o
grande prémio do festival Yamaha, no palco de Tonight Show
também, sentada entre Jay Leno e Phil Collins, que me tinha
tido, depois de me ver cantar:
− A gente vai-se ver de novo.
E eu tinha-lhe respondido:
− Pode apostar.
E eles tinham rido os dois.
Eu revi-me no palco do Olympia.
Depois, no enorme palco flutuante do Vieux-Port do Québec,
com um monte de besouros à minha volta. Também em Los
Angeles, com René, abraçados na frente da Tower Record...
Ao longo dos dias seguintes,
fizemos uma seleção de imagens e de canções. Eu estava feliz
e orgulhosa.
O show do dia 19 de Junho foi,
do começo ao fim, um delírio total. Eu fui acompanhada pela
Orquestra Sinfónica Metropolitana, 65 músicos e, na maioria
do tempo, pelos milhares de fãs que enchiam o fórum e
conheciam todas as minhas canções. Eu falei muito. Eu
agradeci aos autores e aos compositores que trabalharam
comigo. Antes de cantar "Ce N’Était Qu’Un Rêve", eu fiz uma
homenagem à minha mãe, ela que tinha começado toda essa
aventura. Os fãs levantaram-se para aplaudir.
Quando voltei ao palco, no
encore, trazia vestido uma camisa da equipe de hockey do
Canadá e, na mão, uma bandeira de Québec. Tinha sido ideia
do René, tipo uma piscada de olho e um jeito de reconciliar
independentistas e federalistas, intelectuais e desportistas… Eu nunca
tinha escutado um aplauso assim. Durante muitos minutos eu
não conseguir falar. Depois as pessoas fizeram a onda e
começaram a cantar a bela canção de Gilles Vigneault, que se
canta no Québec ao invés da canção de Parabéns:
Minha querida Céline
Agora é a sua vez
De se deixar
Falar de amor
Eu cantei, no Forum, um medley de canções da ópera-rock
Starmania, que eu cantava no tempo da tour "Incognito".
Seduzido, Vito Luprano propôs-me fazer um álbum com os
maiores sucessos de Luc Plamondon. A ideia agradou-me logo.
Não só porque eu adorava trabalhar com Luc Plamondon mas
porque é um grande desafio retomar canções conhecidas e
popularizadas por outros cantores e dar uma interpretação
diferente.
[249] Fazer o novo com o velho. E mais, Luc iria escrever-me quatro canções novas.
Eu me envolvi mais do que nunca
nesse álbum. Até aí, eu apenas entrava em estúdio quando
tudo estava pronto. Os arranjos estavam feitos, a orquestra
estava gravada. Eu apenas tinha que cantar.
Dessa vez eu trabalhei na
escolha das canções e na produção, com a pessoa que fazia os
arranjos, com o produtor, com o autor e os compositores… Nós
gravamos no Outono, no estúdio de Michel Berger, na avenida
Batignolles, em Paris. Eu vivi aí, momentos de grande
felicidade.
Uma noite depois da gravação de
uma das quatro canções originais do álbum, René e eu
encontramo-nos, sozinhos na pequena cozinha do estúdio (um iorgurte para mim,
uma Coca-Cola light para ele). Ele falou para
mim, baixinho, como se fosse um segredo:
− Sabe, o Doutor Riley tinha
razão. A sua voz está mais linda do que nunca…
− Mas nem faz um ano, meu amor,
que eu estou treinando com ele! Ele disse que a gente só ia
ver os resultados dentro de quatro ou cinco anos.
− Então imagine como será quando
a gente for ver finalmente os famosos resultados!
Eu não tinha falado a ninguém
mas eu também achava que a minha voz tinha começado a mudar.
Estava mais ampla, com mais nuances, mais flexível. O timbre
estava claro e transparente. E, acima de tudo, eu tinha uma
escolha de cores e textura cada vez mais larga: veludo,
cristal, verduras, etc. Cantar trazia-me mais felicidade do
que eu jamais tinha sentido.
A cada dois meses, mais ou
menos, eu ia ver o Doutor Riley em Nova Iorque. Nós tínhamos
por vezes sessões de trabalho muito exigentes, por vezes
também apenas falávamos sobre as vozes, sobre as músicas e
os sons que mais gostávamos… Eu saía sempre estimulada,
cheia de energia, determinada. Onde quer que eu esteja, em
Montreal ou em Paris, ou em qualquer parte da tour, eu faço
as minhas vocalizações, eu sigo os meus regimes. Nos dias em
que eu cantava eu nunca ingeria produtos lácteos, álcool,
refrigerantes, chá, café, frutas ácidos. Apenas água morna,
de vez em quando um suco de frutas, uma infusão.
Eu amei apaixonadamente a
disciplina, a verdadeira disciplina muito forte e muito
rigorosa que eu impus a mim mesma nessa época. Eu fiz isso
por quase 10 anos. O mais difícil é nunca desistir. Não
comer a sobremesa, batata frita ou amendoins de vez em
quando é muito fácil. Se privar todos os dias ao mesmo tempo
que muitas outras coisas, é outra história. Temos que nos
tornar máquinas que não pensam em algumas coisas e que fazem
mecanicamente alguns gestos, que esquece o sabor do bolo de
caramelo, do creme inglês e do melaço, que se fecha
hermeticamente a certos prazeres da vida e que nunca falha….
Bizarramente, todas essas pequenas privações juntas criaram
um bem-estar, felicidade. É o facto de ter controle sobre mim
mesma, eu acho.
Eu fazia os meus exercícios e as
minhas vocalizações com grande prazer. Antes de cada show eu
mergulhava no silêncio absoluto durante vinte e quatro ou quarenta e duas
horas, por vezes durante quatro ou cinco dias, para deixar
repousar as minhas cordas vocais mas também para descer até
ao fundo de mim mesma. Eu dormia muito também, eu evitava
correntes de ar, a menor poeira, a fumaça de cigarro. Eu
aprendi a fugir dos ambientes com ar condicionado, mesmo
quando fazia 35 graus na rua, a fugir de todas as pessoas
gripadas ou resfriadas, a não me preocupar ou ficar
demasiado angustiada. Eu aprendi a sentir-me bem na minha
pele e na minha alma. Eu tornei-me forte.
Eu organizei toda a minha vida
em função da minha voz. Por ela eu fiz todo o tipo de
exigências, todos os caprichos. Eu sentia-se responsável por
ela como se fosse um tesouro.
No fundo, a disciplina tem
qualquer coisa de confortável, de confortante. Ela enquadra
bem os assuntos, ela delimita o caminho, elimina as escolhas
e simplifica a vida.
A minha vida já era linda. Eu
era protegida e amada. Tudo o que fazíamos tinha sucesso.
Ainda nem tínhamos terminado um projecto e logo outro se
apresentava, ainda mais empolgante.
Em 1992, a gala do Óscar
aconteceu no dia 30 de Março, no dia do meu 24º aniversário.
Eu passei nessa noite grandes momentos. Eu cantei em dueto
com Peabo Bryson a canção tema do filme da Disney Beauty and
the Beast, já um grande sucesso que se escutava em todo o
lugar. Essa canção venceria o Oscar de melhor canção do ano,
alguns minutos mais tarde.
[251]
Eu tive um medo louco do palco.
Primeiro porque, uma pessoa que a gente sabe muito bem quem
é, fez questão de me lembrar, não uma mas pelo menos umas
dez vezes, que eu ia cantar no meio palco da minha vida,
diante da audiência mais vasta, um milhão de pessoas através
do mundo inteiro.
Depois, eu tive uma amigdalite
nos dias precedentes e o médico tinha-me passado
antibióticos muito fortes.
Mas o que me impressionava mais
era que eles estariam todos lá no Dorothy Chandler Pavilion:
Elizabeth Taylor e Paul Newman, Tom Cruise, Michael Douglas,
Barbra Streisand, Liza Minnelli, as maiores estrelas do
mundo, todos os meus ídolos que eu tinha sonhado a vida
inteira conhecer. Eu via-os agora, aos meus pés e eu cantava
para eles, eles viam-me e escutavam-me, como eu sempre os
tinha visto e escutado. E eles aplaudiram-me, eles reconheceram-me como um deles.
Diante de todas essas pessoas,
eu sentia-me, ao mesmo tempo, forte e frágil, em casa e como
uma intrusa. Eu queria agradecer a eles esse grande favor
que eles me faziam ao me receber entre eles, no seu castelo,
no coração de Hollywood. E eu imaginava a reacção de René.
− Você não tem que agradecer.
Ninguém te está fazendo um favor. Se eles te aplaudem é
porque acham que você é uma estrela de verdade. Todas essas
pessoas estão impressionadas por você, tanto quanto você
está impressionada por elas.
Eu não acreditava nele. Eu não
me via como uma estrela como aquelas que tinha à minha
volta. Eu queria ir mais alto, mais longe. Parecia que eu
ainda tinha muito caminho a fazer antes de poder dizer que
eu tinha passado para o outro lado do espelho…
René fez-me uma surpresa. Ele
convidou os meus pais para Los Angeles e arrumou duas
poltronas para eles no Dorothy Chandler Pavilion, o que é
quase impossível de fazer na noite dos Óscares.
Depois da gala, nós fomos
passear, René e eu, entre as estrelas. Nós estávamos febris,
impressionados, como todos os que se encontravam lá. René
não parava de nomear as estrelas que ele via. Ele fazia-me
rir. A vida inteira ele tinha passado perto das estrelas mas
ele ainda ficava encantado por elas, como um menino.
Num momento, os meus olhos
cruzaram os de Barbra Streisand e ela me acenou com a cabeça
e sorriu. Eu quase desmaiei de emoção. Eu agora era uma
pessoa visível, reconhecível porque eu tinha cantado há
pouco num palco, diante de um público de estrelas e de
câmaras de televisão. Três meses antes eu teria sido,
naquela sala de baile, uma pessoa invisível, sem nome.
Agora, mesmo o meu maior ídolo sabia quem eu era.
Nesse mesmo dia, o meu segundo
álbum em Inglês, banalmente intitulado Celine Dion,
foi lançado com grande publicidade no mercado americano e
canadiano. O álbum que eu tinha feito com Luc Plamondon,
Des Mots Qui Sonnent, acabava de sair na França. Nos
meses seguintes eu devia fazer duas frentes de campanha de
promoção.
[253]
Eu dei um salto a Montreal, dois
ou três dias depois da gala do Oscar. E, pela primeira vez,
eu disse a uma jornalista do La Presse que eu tinha um homem
na minha vida, por quem eu estava loucamente apaixonada. E
eu não quis dizer o nome dele.
− É quem estou pensando? –
Perguntou-me ela. – Eu conheço?
Eu apenas ri. Para mim, essa
meia confissão já foi um imenso alívio. Pelo menos as
pessoas saberiam a partir de agora que eu também era marcada
pelo amor, que eu não o cantava apenas. Eu também o vivia e
também o fazia.
Quanto à pessoa amada, a
jornalista conhecia muita gente em Montreal e em Paris.
Tinham mesmo escrito nos tablóides que René e eu estávamos
juntos. Apesar disso, ele queria esperar ainda antes de
falar publicamente.
Alguns dias depois dessa
confissão, eu devia partir com ele em tour de promoção,
primeiro pelos Estados Unidos e depois pela Europa, vinte
cidades grandes, dezenas de entrevistas, emissões de
televisão, galas, etc. A vida de nómadas, o nosso ritmo
habitual. Nós estávamos muito empolgados.
Mas um acontecimento imprevisto
mudou os nossos planos.
Eu percebi que, quando as coisas
verdadeiramente horríveis acontecem, a gente apercebe-se que
tivemos sinais e que a gente devia ter percebido que alguma
coisa ruim estava para acontecer. Quando René teve o seu
enfarto em Los Angeles, eu percebi que eu estava, há vários
dias, sentindo muito medo e preocupação, como se eu
estivesse pressentindo o que ia acontecer. E eu senti-me
culpada, eu arrependi-me de não ter sido mais atenciosa. Se
eu tivesse sido uma namorada melhor, eu teria visto o
cansaço, eu teria visto o mal chegar…
Nós tínhamos ido descansar
alguns dias no hotel Four Seasons. Eu tinha feito o
Tonight Show, onde eu já era convidada habitual, e o
Good Morning America. Eu tinha feito várias entrevistas.
Em algumas horas devíamos partir para Nova Iorque para
encontrar outras câmaras, outros jornalistas. Esperando,
fomos pegar um pouco de sol na piscina, René e eu.
Ele subiu para o nosso quarto, queixando-se de uma dor nas costas e do calor, o que me
preocupou logo. René nunca se cansa do sol nem do calor.
Eu liguei dez minutos mais
tarde. Ele demorou a atender e a sua voz estava fraca. Eu
não esperei pelo elevador. Eu corri até ao nosso quarto. Ele
estava deitado, confuso, em
sofrimento, era óbvio. Em trinta segundos eu tinha
mobilizado o hotel todo. Arrumei uma cadeira de rodas e toda
a ajuda. Quando a ambulância chegou nós já estávamos no hall
do hotel, René na sua cadeira de rodas comigo e com a
enfermeira do hotel. Eu pedi que avisassem o serviço de
urgência do hospital Cedars Sinai. Tudo isso sem reflectir,
muito calmamente.
René achava que ia morrer. Ele
chorava. Ele falava-me dos seus filhos, da sua mãe.
[255]
− Você, Céline, você tem que
continuar. Aconteça o que acontecer, mesmo se eu morrer,
você tem que continuar.
Ele dizia-me o nome de todas as
pessoas em quem ele confiava e com quem eu devia trabalhar.
Eu suplicava para ele se calar, eu jurava para ele que ele
não ia morrer, que eu não estava nem aí para a minha
carreira.
No hospital, eu movi céus e
terra para que cuidassem dele depressa. Depois eu fiquei
perto dele, até ter a certeza que ele estava em segurança na
sala dos cuidados intensivos e onde eu não podia fazer mais
nada do que esperar que o seu estado se estabilizasse.
Falando com os médicos que o
tinham examinado e que tentavam confortar-me, eu percebi que
ainda estava de maiô de banho… num lugar com ar
condicionado, onde eu arriscava pegar um frio que faria mal
para a minha voz. Eu tinha esquecido, pela primeira vez,
toda a minha prudência e disciplina. Nesse momento, eu não
estava nem aí para o estado da minha voz. Mesmo com René
fora de perigo, o medo e a dor tomaram conta de mim. Eu acho
que nunca me senti tão sozinha e impotente em toda a minha
vida.
Assim que foi possível, eu
liguei para Tété, a mãe dele. No dia seguinte eles estavam todos lá,
do lado de René com todo o seu amor: Teté e os filhos dele,
Patrick, Jean-Pierre e Anne-Marie, os seus amigos Marc
Verrault, Pierre Lacroix, Paul Sara…
Um deles, Pierre ou Marc, tinha
levado a René um exemplar do Wall Street Journal,
onde dizia, entre outras belas coisas sobre mim, que eu
tinha provado que uma artista to Canadá francês podia ter
uma carreira internacional sem abandonar a sua cultura e sem
negar as suas raízes. René lia e relia o artigo ao ponto de
o saber de cor. Esse reconhecimento deixava-o mais feliz do
que todos os elogios que eu tinha recebido desde o começo da
minha carreira.
− Você está vendo, mesmo as
pessoas que não são da nossa profissão, que não têm nada a
ver com o show-business, reconhecem o nosso sucesso.
Eu desejei ter estado, ter
ficado com ele. Eu teria cancelado tudo. Nada de promoção,
nada de televisão, nada, até que o meu amor ficasse curado.
Mas ele nem queria ouvir falar nisso. Ele não queria que eu
parasse.
− Mesmo se eu tivesse morrido,
eu queria que você tivesse continuado. Se eu tivesse morrido
e você tivesse parado assim, eu morreria duas vezes.
Eu entendi que ele estava falando
sério. Eu compreendi que a minha carreira é a sua obra
prima, a sua canção, a sua sinfonia. A ideia de que ela
pudesse ficar inacabada teria enchido ele de dor. Eu
compreendi que, se alguma vez ele morresse, eu teria que
continuar, sem ele, para ele.
Mas todo esse sucesso perderia o
sentindo se René não estivesse mais presente para o ver e
para o conhecer, para me relatar dia por dia. Eu precisava
desses relatos, eu precisava da sua voz, do seu olhar, da
sua admiração e do seu amor. Mais do
que nunca as portas abriam-se à minha frente, e mais do que
nunca eu precisava dele ao meu lado.
Mais cedo ou mais tarde, todos
nos arriscamos a ver desaparecer as pessoas que amamos. Eu
pensava nisso muitas vezes. A maioria das pessoas eram todas
pelo menos duas vezes mais velhas do que eu.
[257] Eu dizia a mim
mesma, às vezes, que eu os iria perder um a um. Eu ficaria
sozinha… De certa forma, quando eu me deixava invadir por
esses pensamentos, eu já me sentia sozinha. E eu fazia
filmes tristes na minha cabeça, quase sem acção.
Eu imaginava-me muito velha,
sentada na frente de uma janela, com um xaile sobre os
ombros, e eu olhava um lindo jardim cheio de pássaros, de
flores, uma chuva muito suave caía… Eu não me sentia triste
mas sim muito sozinha, definitivamente sozinha. Não havia
ninguém em minha volta, nem no jardim, nem na casa. Não
havia crianças nem música. Nada mais do que um silêncio que
eu nunca quebraria.
A que outra pessoa eu podia
contar essas coisas senão a mim mesma? Certamente não podia
contar às pessoas que tenho tanto medo de perder: René, os
meus pais…
René recuperou-se bem e
depressa. Mas a nossa vida nunca mais foi a mesma. A
despreocupação desapareceu.
Os médicos disseram que ele
tinha que perder peso e fazer exercício mais regularmente,
comer menos e melhor. Ele tinha que mudar de vida. E, para
começar, tinha que evitar o stress. Isso era pedir demais.
René é como eu, ele ama o
stress…. É essa a nossa primeira profissão. O que se faz sem
medo e sem stress trás pouco prazer e não vale a pena. Era
isso que eu acreditava na época. Quanto mais alto estava o
trampolim, mais alto ele queria ir.
Depois do acidente que eu tinha
tido na estrada dois anos antes, durante a gravação de Des
Fleurs Sur La Neige, René tinha estado constantemente perto
de mim, como ele me tinha prometido. Antes de recomeçar a
minha tour de promoção, eu insisti para que ele esquecesse
essa promessa. Eu queria que ele descansasse, que ele
seguisse o seu regime. Essa vez, pela primeira vez na vida,
ele escutou-me.
De passagem por Montreal, eu
continuei fazendo confidências sobre a minha vida amorosa.
Um jornalista perguntou-me se eu tinha tido medo de perder
René.
− O maior medo da minha vida –
respondi.
− Você teria perdido o seu
segundo pai.
− Eu tenho apenas um pai,
Adhémar Dion, que eu amo e que me ama. René não é um pai
para mim, ele nunca foi nem nunca será. René é o homem que
faz o meu coração bater, é o homem da minha vida.
Depois eu disse que eu não
queria falar de certas coisas da minha vida, da nossa vida.
Até então eu sempre tinha evitado essas questões, fingia que
não estávamos juntos. Eu mentia, eu dizia que não amava
ninguém, que ninguém me amava. Essas mentiras criavam, por
vezes, situações intoleráveis. Os jornalistas não
acreditavam mais em mim.
Com essa declaração, eu mudei o
rumo das coisas. Eu informei o público que René e eu
tínhamos um território onde ninguém podia entrar. Eu deixava
entender que nós estávamos apaixonados mas que não queríamos
falar sobre isso, que tínhamos uma vida de verdade, um
jardim secreto.
− Todo o resto, vocês já sabem.
Por vezes melhor do que nós dois.
Eu então parti para a Europa com
Suzanne Gingue, primeiro para o World Music Awards, onde
recebi um prémio. Choviam prémios de todo o lugar nesse ano.
Os meus dois álbuns Céline Dion e Des Mots Qui Sonnent,
vendiam aos milhares. Mas quanto mais o álbum vende mais o
artista trabalha e ganha prémios. E quanto mais prémios o
artista ganha mais álbuns se vendem e mais o artista
trabalha. O turbilhão, cada vez mais forte, leva-nos sempre
mais longe…
No final, eu tinha que me
esforçar, quando acordava de manhã, para me lembrar de onde
estava. Oslo, Roma, Munique, Estocolmo, Londres, Paris,
Amsterdam… todos os quartos de hotel são iguais. Mármore,
bronze, cerâmica, porcelana no banheiro, espelhos por todo o
lugar, tapetes fofos, a mesma penumbra…
[259]
Para dormir eu tinha uma
camisola da minha mãe, cor-de-rosa, tão usada que o pano era
quase transparente. Eu não a vestia. Eu usava-a como Charlie
Brown usa a sua cobertinha. Eu dormia com o rosto mergulhado
nesse pedaço de pano que eu conservava preciosamente… Mas eu
tinha medo de o perder nas viagens.
Quando o avião pousava em Dorval
ou em Mirabel, o furacão acalmava-se. Durante dias eu vivia
uma vida calma. Eu ia às vezes dormir na casa dos meus pais,
para passar algum tempo com a minha mãe.
Eu via as minhas irmãs e os meus
irmãos. René e eu íamos aos restaurantes onde conhecíamos as
pessoas e os clientes. Era outra vida, outro mundo, tipo um
oásis. Mas eu ficava cada vez menos tempo.
Na minha casa eu estava apenas
de passagem. Cada vez eu tinha mais a impressão de me
afastar dos meus irmãos e irmãs. Eles ainda eram calorosos,
gentis, eles estavam contentes com o meu sucesso, mas eu não
era mais a menininha que eles faziam sonhar, a quem eles
ensinavam coisas. Muitos deles tinham todo o talento e
todo o desejo que é preciso para vencer. Mas isso tinha
acontecido apenas comigo.
Eu ia embora com o sonho deles,
com a sorte deles. Eu tinha a sensação que estava roubando
alguma coisa deles. Eu vivia agora em outro mundo, quase em
outro tempo… Entre eles e eu tinha-se instalado um incomodo,
silêncios. As nossas vidas eram tão diferentes…
Durante a tour de promoção que
fiz na Europa, eu falava com René cinco, seis, dez vezes por
dia. Cada um sabia, hora por hora, onde o outro estava e o
que estava fazendo. René dizia-me que estava repousando, que
caminhava uma hora por dia, que fazia exercício, que jogava
golfe com Marc, Jacques, Rosaire, que comia pouco, que
dormia muito…
Eu iria descobrir, quando voltei
a Montreal, que ele não tinha descansado nada. Ele tinha
preparado todo o nosso ano, tinha planificado dia por dia,
tinha gerido tudo. Nós partimos juntos para Sevilha, onde
estava acontecendo a Expo 1992. Eu devia cantar no pavilhão
do Canadá, no dia 1 de Julho, dia do Canadá.
No avião que nos levava a
Espanha, ele contou-me as minhas futuras aventuras no
maravilhoso mundo do show-business.
Primeiro eu teria uma tour nos
Estados Unidos, fazendo a primeira parte de Michael Bolton,
depois uma tour pelo Québec um ano mais tarde, no Outono,
depois uma tour por todo o Canadá. E, pelo meio, alguns
grandes concertos ao ar livre, a gravação de um ou dois
videoclipes. Em breve, no Outono e no Inverno seguintes, eu
gravaria canções para o meu terceiro álbum em inglês. Ele já
tinha feito uma selecção. Ele tinha uns demos que ele me fez
escutar, entre elas uma canção
da autoria de David Foster, que ele adorava, "The Colour Of
My Love".
− Todas as grandes cantoras
queriam essa música. Whitney Houston, Barbra Streisand,
Natalie Cole… Mas David disse que era a você que ele queria
oferecer porque é uma verdadeira canção de amor e ele sabe
que estamos apaixonados.
− E porque ele sabe e os meus
vizinhos de Montreal não?
Eu não duvidava do amor de René.
Mas eu cada vez compreendia menos a sua teimosia em negar o
que era óbvio.
[261] Ninguém mais acreditava, em lugar nenhum, nem
em Paris nem em Montreal. Eu cada vez mais o acusava de me
recusar a felicidade de falar para o mundo que ele me amava.
Cada vez ele mencionava a nossa diferença de idade, o medo
que eu fosse infeliz com ele dentro de 10, 15, 20 anos,
quando ele estivesse velho e cansado. Ele também tinha medo
que as pessoas rissem ou dissessem que ele tinha abusado do
seu poder e da sua experiência e que me explorava.
− A sua carreira pode ser
destruída.
− A mentira que eu conto há
quatro anos pode ser ainda mais destrutiva, não é? Felizmente
as pessoas não acreditam mais. Como você quer que uma mulher
que vive sem amor e que nunca o conheceu na sua vida possa
cantar as canções que eu canto?
Para mim, nenhum dos argumentos
dele tinha fundamento. Há dez anos que partilhávamos as
mesmas experiências. Tudo o que ele sabia antes de mim tinha-me ensinado, ele tinha-me contado, ele tinha-me
transmitido tudo. Eu tinha a impressão que eu sabia tanto
quanto ele sobre a vida, sobre o palco, sobre o público,
sobre o show-business. Nós éramos sócios há mais de 10 anos,
amantes há pouco mais de 4 anos. E em breve eu teria 25
anos. Eu não entendia porque tinha que
esconder o meu amor. As mulheres da minha idade não
escondiam. Mas, a cada vez que eu falava no assunto, ele dizia-me que eu tinha que esperar um pouco mais, que mais cedo
ou mais tarde o momento ideal apresentaria-se.
− Eu vou-te avisando – eu disse
a ele nesse dia, no avião que nos levava para Sevilha – que
na primeira vez que eu cantar "The Colour of My Love" em
público eu vou cantar de verdade. Eu vou anunciar a cor do
meu amor e vou falar o nome.
Ele sabia que eu faria isso. Ele
também sabia que eu o amava profundamente. E ele confiava em
mim. E amava-me também.
Nessa época, nada deixava ele
mais fora de si do que ouvir dizer ou ler que ele exercia
sobre mim controle absoluto. Ou pior, que ele me dizia o que
pensar, o que dizer, o que fazer, como se eu fosse uma
marionete manipulada por ele.
No Québec, especialmente, muitas
pessoas acreditavam nisso, ou queriam acreditar. Eu sabia
disso. Mas isso era-me indiferente.
Havia um fundo de verdade em
tudo isso: no começo da nossa relação [profissional], René
tinha-me guiado inteiramente, ele tinha-me ensinado. Eu não
vou negar isso e eu agradeço a Deus todos os dias. Mas,
pouco a pouco, ele deixou-me voar com as minhas próprias
asas.
− Seja você mesma. Fale o que
você pensa, fale o que você tiver para falar.
Eu entendo hoje em dia até que
ponto ele me encorajou e me instigou para que eu me
transformasse numa mulher autónoma, independente e livre.
Eu sei, eu sempre soube, que ele
nunca me teria amado tanto se eu tivesse obedecido a tudo o
que ele falava. Ele não gosta de pessoas fracas que não têm
opinião sobre nada.
Durante algumas entrevistas e no
palco, eu dizia algumas besteiras. Isso fazia-o rir. Em
Sevilha, no entanto, ele ficou um pouco contrariado porque
foi uma grande besteira. Durante a conferência de imprensa
que precedeu o concerto do Pavilhão do Canadá, um jornalista
de Montreal perguntou-me o que eu achava do movimento
separatista do Québec.
Eu respondi espontaneamente que
era contra as fronteiras. A media do Québec usou essa
declaração. Chegaram a escrever que eu acharia a eventual
separação do Canadá uma catástrofe para Québec…
[263] Eu percebi que me tinha aventurado num terreno com minas, desconhecido. Eu devia ter
ficado calada, eu devia ter respondido ao jornalista que a
política não me interessava e que não tinha nada a dizer
sobre isso.
René achava que havia maldade ao
perguntar a uma cantora questões de política e pedir para
tomar uma posição nesse assunto.
− Será que esse jornalista
pensaria em pedir ao Primeiro Ministro para cantar como você
canta para vinte mil pessoas? Tudo o que ele tentaria fazer
seria evitar passar vergonha.
O que o povo de Québec pensa de
mim, sempre teve e sempre terá mais peso do que o que o
resto do mundo pensa. O menor prémio, a menor honra que eu
recolhesse em outro lugar do mundo, ele queria logo que se
falasse disso no Québec. E onde quer que a gente esteja, ele
tentava receber por fax tudo o que se tinha escrito sobre
mim, mal ou bem, nos jornais e revistas do Québec.
Por isso eu soube das grandes
reacções que as minhas palavras tinham provocado. O que me
preocupava mais ainda era o facto de ter recebido uma
mensagem do Primeiro Ministro do Canadá, que sempre tinha
tido um mau relacionamento com os nacionalistas do Québec,
que queriam a separação. Eu então encontrava-me metida numa polémica que durava gerações e para a qual eu não via
solução. E eu tinha, inocentemente, posto mais lenha na
fogueira. E René repetia-me que eu tinha mais que falar o
que eu pensava.
− Mesmo que você mude de ideia,
se o seu coração te disser. Não escute os outros. Diga o que
você pensa. Se você não acha nada, então diga. As pessoas amam-te porque você é honesta.
No dia seguinte à minha
declaração de Sevilha, eu estava muito preocupada. Eu tinha
a impressão de ter machucado e desapontado as pessoas que
amava mais no mundo. Eu tentava explicar, ao encontrar de
novo os jornalistas do Canadá. Eu expliquei que achava que a
gente não tinha nada a ganhar separando-se e que, se
dependesse de mim, não haveria fronteiras em lugar nenhum.
Eu sei que é uma visão bem ingénua da política. Mas eu nunca
pretendi ser instruída ou informada sobre essas coisas. No
fundo, tudo o que eu queria era que as pessoas do Québec
soubessem que eu os amava particularmente.
Eu acabava de perceber o poder
assustador que o público dava às celebridades, mesmos nos
assuntos em que elas não têm qualquer competência. Eu tinha
feito comerciais, entre os quais para a Coca-Cola e para a
Chrysler, eu tinha sido a porta-voz e a madrinha da
Associação do Québec da Fibrose Cística. Eu sabia que, por
natureza, uma celebridade é visível, escutada, imitada. Por
consequência, o que ela diz e o que ela faz pode ter muito
peso. Mas, em Sevilha, o poder apareceu-me uma prisão
sufocante.
Tudo o que eu faria a partir de
agora, seria retomado, analisado, comentador, mesmo se não
tivesse nada a ver com a minha profissão.
− É porque você é mais do que
uma cantora − disse-me René. – Você é uma estrela no Québec.
A maior estrela que eles já tiveram. E, um dia, não vai
demorar muito, você será uma estrela em França também e nos
Estados Unidos, em todo o mundo, uma das maiores de sempre.
Isso também me parecia uma
besteira. Eu nunca diria esse tipo de coisa. René não tinha
vergonha de falar isso entre nós ou em público, diante das
pessoas da nossa profissão, diante dos jornalistas. Eu sabia
que ele era considerado por muitos como um sonhador que
repetia a todos que eu um dia seria a melhor.
[265] Isso tornou-se numa piada no Québec.
Mas era a maneira de ser do René. Ele
nunca teve medo de "vender a pele do urso antes de o matar".
Ele via-se milionário e agia como um muito antes de ser
rico. Ele via-me como uma estrela imensa quando eu ainda
era, nos Estados Unidos, uma estrelinha que ascendia mas que
poderia ser eclipsada e desaparecer. Mas ele tinha uma fé
inabalável em mim, nunca teve a menor dúvida. A gente sempre
iria mais alto e mais longe.
A tour da primeira parte do
Michael Bolton foi exaustiva. Estava muito calor. Mudávamos
todos os dias de cidade. Mas estávamos finalmente fazendo
aquilo que sempre tínhamos sonhado fazer: estávamos no país
do big time, tínhamos um bom show e canções vencedoras. No
começo eu cantava diante de audiências muito agitadas e
impacientes, que esperavam por Bolton e estavam nem aí para
mim. Eu tinha um som deficiente e pouquíssimo espaço porque
o palco estava ocupado pelas consolas e pelos instrumentos
musicais da banda de Bolton. E mais, como ainda era de dia
quando eu subia no palco, as minhas iluminações ficavam
diluídas.
Mas eu dava toda a minha alma.
Eu estava em forma, eu estava feliz. Pouco a pouco começou a
correr o rumor de que a cantorazinha que fazia a primeira
parte de Bolton merecia destaque, valia a pena chegar mais
cedo para a escutar. E, em detrimento de Bolton, René
convenceu os produtores a começar o meu show meia-hora mais
tarde. No final da tour eu tinha lindas iluminações, um
melhor som. E, sem querer me engrandecer, eu cheguei, em
algumas noites, a roubar a atenção de Bolton.
Durante esse tempo, o silêncio
sobre o nosso amor tinha-se tornado uma loucura. Os
jornalistas amavam.
No final do Verão, quando voltei
ao Québec depois de ter perdido 3 quilos na tour, toda a
imprensa me esperava.
− Então Céline, e a sua vida
amorosa?
Eles poderiam ter feito mil e
uma questões sobre a minha carreira, sobre a tour que eu
tinha acabado nos Estados Unidos, sobre o novo álbum que eu
estava preparando, sobre a saúde de René, sobre o peso que
eu tinha perdido. Mas nada mais parecia interessar-lhes, só
a minha vida pessoal. E eu recusava sempre a falar.
René tinha, no entanto, aceitado
que eu passasse uma hora falando com Lise Payette, a rainha
da confissão televisiva. Ele sabia que ela tinha os meios
para me fazer confessar tudo. Eu também.
Nunca uma entrevista me tinha
deixado tão nervosa e preocupada. Eu via aí uma excelente
ocasião para dizer toda a verdade. Nessa manhã, eu acusei
René de querer guardar segredo sobre o nosso relacionamento
porque acreditava que não ia durar.
− Se você não quer que eu fale é
porque você não tem a certeza se me ama.
Eu já tinha falado esse
argumento muitas vezes. Essa vez, no entanto, eu devo ter
achado as palavras e o tom de voz que mexeram com ele,
porque ele ficou muito abalado. Ele disse-me que eu tinha
razão, que isso não ia durar mais. Ele gostava muito de
Madame Payette e considerava que era uma bela ocasião para
confiar o nosso segredo, melhor do que deixar os tablóides
tomar conta da situação.
No carro que nos levava à
Telé-Metrople, ele mudou de ideia. Ele convenceu-me a
esperar ainda mais.
[267] − A gente tem que se preparar.
− Para quê?
− Para fazer as coisas em
grande… Eu tive uma ideia melhor. Você vai ver.
Eu lembrei-lhe da ideia que eu
tinha tido e da qual não tinha desistido:
− Quando eu cantar "The Colour
of My Love" eu vou falar o seu nome, você já sabe.
− Foi pensando nisso que eu tive
a minha ideia.
Chegando no estúdio, ele foi
logo para a sala de controle. A maquilhadora e a cabeleireira
devem ter-me achado fria e distante. Eu tinha a cabeça em
outro lugar. Eu pensava em toda essa história cada vez mais
sem sentido. Em René, que ganhava sempre! E em mim, que
cedia sempre!
Madame Payette fez-me falar da
minha família, da minha tour, do próximo álbum, do problema
cardíaco do René. Eu contei o que tinha acontecido, como se ele tinha
sentido mal do lado da piscina, como eu tinha alertado todo
o mundo e como eu tinha ido para o hospital de maiô. Ela interrompeu-me para saber se eu estava apaixonada. Eu
estava
falando tanto de René.
Eu fiquei desestabilizada. Eu
comecei a gaguejar que amava um homem mas não podia dizer o
seu nome porque comprometeria a minha carreira. Ninguém me
compreendia. Eu comecei a chorar. Quando Madame Payette me
passou uma caixa de lenços eu comecei a rir através das
lágrimas. No fim das contas, nós fizemos um excelente
momento de televisão.
Eu tinha desperdiçado uma bela
ocasião de confessar, de me libertar. Eu tinha que viver
ainda mais meses com esse segredo, com essas mentiras. Eu consolava-me dizendo a mim mesma que era melhor fazer essa
revelação junto com René.
Ele ficou muito mexido durante a
entrevista, que ele tinha assistido na sala de controle. Por
um momento ele tinha desejado muito que eu confessasse.
− Ai é? E o que a gente ia fazer
com a sua melhor ideia?
− Não é minha, Céline, é sua.
No dia 30 de Março de 1993, no
dia em que fiz 25 anos, eu acordei com a garganta ardendo.
Dentro de três dias eu teria um importante concerto no Forum
de Montreal.
Eu estava cansada. Há seis meses
que eu vivia um ritmo infernal. A preocupação que tinha
seguido o ataque cardíaco de René, o stress e o esforço
constantes que a tour americana tinha exigido, essa espera
intolerável, a promoção, as viagens, as galas,
as gravações… tudo se acumulava e, por momentos, me
esmagava.
Eu tinha o mesmo pesadelo
frequentemente. Eu estava no telhado de um prédio muito alto
em Nova Iorque, quem sabe, ou Chicago. Havia muitas pessoas
em baixo, que me olhavam e gritavam para que eu não me
jogasse. Eu queria que eles soubessem que eu não tinha a
menor intenção de o fazer. E eles tinham que parar de se
preocupar. Mas eles não me ouviam, ou não ligavam. Eu via-os
entrando dentro do prédio, milhares de pessoas, como
formigas, pegavam o elevador para virem parar-me ou me
salvar-me.
[269] Eu nem sabia mais. Eles chegavam no telhado. Eles precipitavam-se na minha
direcção, sempre gritando, dizendo-me
para ser prudente. Mas, essa vez, era eu que nem escutava.
Eu saltava para o vazio para escapar deles. E eu caía
durante muito tempo, muito lentamente. Eu via a cidade
deserta, muito sombria, vazia. Não havia ninguém para me ver
cair. Eu tentava gritar mas nenhum som saía da minha boca.
Eu acordava antes de cair. Eu
queria encontrar a camisola da minha mãe debaixo do meu
travesseiro. Eu teria escondido o meu rosto lá e teria
dormido. Eu sentia-me terrivelmente sozinha e ficava muito
tempo acordada até saber em que cidade eu estava.
Ao longo das duas ou três
semanas precedentes, eu tinha feito promoção na
Europa, eu tinha cantado na cerimónia do presidente Bill
Clinton em Washington. Apesar de uma enorme gripe, eu tinha
apresentado a cerimónia dos Juno em Toronto. Eu tinha
cantado na gala dos Grammy em Los Angeles, onde "Beauty And
The Beast", que eu interpretava com Peabo Bryson, tinha
ganho um troféu. Até aí eu tinha-me sentindo em forma,
invulnerável.
Quando eu fui receber o Grammy
no palco, eu disse algumas palavras de agradecimento em
Inglês e falei ao povo do Québec, em francês, com o nosso
sotaque, o sotaque da minha infância. Eu sabia que eles
estavam assistindo do outro lado do continente e que tinham
orgulho em mim. Eu sabia também que apenas eles entendiam o
que eu estava falando. Era como se eu estivesse falando no
ouvido deles. E, ao mesmo temo, era uma forma de dizer ao
grande público que eu vinha de outro lugar. E que eu sabia
manter o contacto com os meus.
Eu não sei bem como, mas no
banquete que seguiu a gala, eu sentei-me diante de Michael Jackson e Brooke Shields. Nós rimos muito, especialmente ela
e eu. Ele pareceu-me muito tímido. Ele falava tão baixo que
eu tinha que me aproximar dele e pedir para ele repetir. Com Brooke, eu falei sobre roupa e cabelo. Ela dizia-me que ela
gostaria de cantar, eu dizia que gostaria de fazer cinema.
Eu não sei até que ponto ela estava falando sério mas eu
estava. Eu adorava fazer videoclipes, eu adorei a minha
experiência em Des Fleurs Sur La Neige. E eu desejava várias
vezes fazer cinema de verdade, criar uma personagem, dar um look e uma alma.
Mas eu não tinha tempo para o
cinema, nem mesmo para o cinema que eu fazia na minha cabeça
desde sempre. Eu em breve iria chegar à conclusão que estava
sobrecarregada de trabalho.
Eu tinha trabalhado dia e noite
na concepção do meu novo concerto, o roteiro, os textos
entre as canções, as decorações, as iluminações, o som. Eu
tinha mesmo desenhado a minha roupa do palco: uma blusa com
babado vermelho de seda e uma calça justa em cabedal negro.
Eu tinha ido longe demais e
depressa demais. Eu devia perceber que existia, no fundo de
mim, uma menininha exausta e perdida, a quem eu não tinha prestado atenção, quem eu
não escutava há muito tempo. Agora ela mostrava-me e recordava-me das suas necessidades.
Essa menininha não queria ser
mais aplaudida, em dar os maiores concertos do mundo. Ela
queria um pouco de paz, um pouco de repouso de vez em
quando, sozinha com ela mesma.
Eu parti, na companhia de
Suzanne Gingue para ver os doutores Riley e Korovin em Nova
Iorque. Eles escutaram-me, puseram-me de castigo e reconfortaram-me. Depois eles recomendaram-me dois dias de
silêncio.
Quando entrámos no fim do dia,
René esperava-nos no aeroporto de Dorval.
[271] Na limusina que
nos levava para a cidade, eu disse que não falaria mais
durante dois dias. Ele tinha sempre respeitado os meus
silêncios. Mas, nessa noite, ele pediu-me para esperar
algumas horas antes de começar.
− Porquê? O que está a
acontecer?
− Nada, você vai ver.
Ele tinha reservado uma
maravilhosa suite num grande hotel no centro da cidade. Ele
tinha pedido jantar para dois, com velas e música barroca.
Durante a refeição, ele tirou
uma pequena caixa do seu bolso e colocou-a sobre a mesa,
entre nós dois. Ele estava nervoso, intimidado também. Foi
comovente.
− Eu amo-te, Céline. Eu amo-te
como nunca amei ninguém. Eu quero viver com você.
A voz e o olhar dele eram de
veludo.
Eu abri a caixa, vi o anel de
noivado e percebi que o nosso amor poderia finalmente ser
revelado. |