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 INFOZONE » MA VIE MON RÊVE EM PORTUGUÊS

  Capítulo 4

 

Ser a artista de abertura de um concerto é uma experiencia muito formativa e necessária. Toda a gente sabe disso. É também uma experiência penosa que exige muita energia e uma boa dose de humildade. O público veio ver e escutar a grande estrela que tem o seu nome no alto do cartaz. Como podem estar eles interessados numa pequena cantora que procura chamar as suas atenções com as suas baladas sentimentais, e que fala, entre as canções, sobre a sua infância, os seus sonhos.

Por vezes a audiência não escuta nada, eles levantam-se, eles falam, eles riem, eles lêem um programa ou, simplesmente, não estão presentes. Eles só entram quando eu sair do palco e quando começar o verdadeiro concerto pelo qual eles pagaram.

É uma dura lição!

No Outono dos meus 16 anos, eu fiz, durante 5 semanas, a primeira parte do concerto de Patrick Sébastien no Olympia. Eu já tinha uma boa experiência no palco e não era desconhecida na França. Muitas das minhas canções tinham tocado muito nas rádios e eu tinha sido convidada para várias emissões de televisão importantes, mas eu não era ainda o que se chama uma estrela estabelecida. E eu ainda não tinha feito das minhas provas sobre um palco.

No Québec, pelo contrário, eu já tinha conseguido. Nas últimas semanas eu tinha feito dois grandes concertos ao ar livre, diante dezenas de milhares de pessoas.

A primeira foi no Vieux-Port de Québec, onde festejávamos o 450º aniversário da descoberta do Canadá por Jacques Cartier. Eu tinha cantado, numa noite de Agosto, com mais de 30 músicos e coristas extraordinários. Fazia bom tempo. Era uma noite mágica, magnífica, que quase se tornou num drama, o drama mais engraçado que possamos imaginar.

Quando eu avancei para o palco flutuante, eu vi que milhões de besouros excitados pela luz voavam em volta dos músicos. Depois, alguns vieram para os meus cabelos, o meu nariz, as minhas orelhas e nos meus olhos e dentro da minha boca. Eu via as minhas irmã, Claudette, Denise, Pauline, Ghislaine, Dada, Manon, sentadas na primeira fila, assustadas e, ao mesmo tempo, morrendo de rir quando me viam engolir penosamente… e continuar a canção como se nada tivesse acontecido.

Eu tinha mais dificuldade em segurar a vontade de rir do que a minha náusea. E eu não podia mais olhar as minhas irmãs, com medo de gargalhar se os meus olhos se cruzassem com os de Ghislaine ou com os de Dada, com quem eu sempre adorei rir.

[139] Duas ou três semanas mais tarde, em Setembro, quando o Papa veio visitar Montreal, eu cantei no Estádio Olímpico, cheio até arrebentar. Diante das câmaras de televisão do Canadá, dos Estados Unidos, da França. Mais uma vez, quase vivemos um drama. E tivemos direito a um verdadeiro milagre.

Era o fim da tarde de um dia ventoso e chuvoso. Uma hora antes das cerimónias, os meteorologistas previam o pior. Mas quando o apresentador, Michel Jasmin, aquele que me tinha recebido na televisão pela primeira vez, avançou para o palco, o céu mudou bruscamente. Uma última rajada de vento afastou as nuvens. E, no momento em que Michel pronunciava o meu nome, o sol encheu o estádio. Eu nem tinha aberto a boca quando a multidão começou a gritar e a aplaudir.

Enquanto eu cantava "Une Colombe", uma canção escrita para a circunstância, dois mil jovens que seguravam uma bandeirola branca desenharam no estádio uma gigantesca pomba que mexia as asas… Foi magnífico, grandioso, muito comovente. Eu terminei a minha canção chorando muito, por causa do sol, do Papa, da pomba e da multidão.

Eu não sabia ainda segurar as lágrimas, apesar de todos os meus esforços. Mas eu conseguia mesmo chorar enquanto cantava (ou cantar enquanto chorava) sem que a minha voz fosse afectada e começasse a tremer e a quebrar. Isso já era um progresso.

Para mim, esses grandes concertos do Vieux-Port e do Estádio Olímpico de Montreal não representavam grandes desafios. Eu tinha tido muito medo antes de subir no palco, mas eu já sabia que tinha vencido. Depois de alguns minutos o medo desaparecia e eu sentia-me muito bem.

No Olympia, pelo contrário, era outro assunto. Eu tinha que fazer uma prova.

Patrick Sébastien e eu pertencíamos a mundos diferentes e a dois públicos que não se cruzavam, que não tinham os mesmos gostos nem a mesma idade, nada em comum.

Patrick contava histórias picantes a um auditório barulhento, muito gritador e que gosta de rir, que veio para o Olympia para se divertir. Isso não tinha nada a ver comigo. Eu gostava de fazer as pessoas rir mas não era do mesmo jeito do que ele.

René tinha-me avisado. E, como sempre, ele aproveitou para elevar a fasquia o mais alto possível.

− Evidentemente que esse não é o seu público. Mas você pode ter certeza que, nessa sala, vai ter algumas pessoas que terão vontade de te escutar, que vão amar o que você faz e que vão te ajudar. Mas não perca tempo com esses. Cante, acima de tudo, para os que não estão te escutando, para os que não querem saber de você. Vai pegar eles um a um, se for necessário.

Eu nunca tinha lutado por nada na vida. Muito menos pela atenção dos outros. Pelo contrário. Mas, por causa de René, porque ele queria, eu lutei todas as noites. Eu quase fiquei sem voz do esforço que fiz. Era violento, era duro, era esgotante. [141] Mas cada noite era uma vitória. Não necessariamente na audiência mas em mim, nos meus medos.

Quando eu era pequena o meu pai dizia-nos:

− Faz aquilo que te assusta. Começa por fazer o que tens menos vontade de fazer.

Eu avançava para os meus medos, eu cantava para aqueles e aquelas que não me queriam escutar e que me mostravam isso claramente, falando alto e forte, até que Patrick Sébastien chegasse para tomar o meu lugar.

Mas aconteceu em algumas noites eu conseguir tocar as pessoas de verdade. Essas reviravoltas surpresa tornaram-se em alguns dos momentos mais lindos que vivi no palco. Acontecia em poucos segundos. Do nada, as pessoas calavam-se e escutavam, imóveis, fascinadas. Era como a bonança depois da tempestade. E quando a minha canção acabava, eles aplaudiam e gritavam "bravo". Eles tinham ficado verdadeiramente encantados e emocionados pela jovem cantora do Canadá? Ou estavam impressionados pela sua determinação, pela sua audácia e pela sua inocência? Pouco importa. Eles sabiam agora que eu existia. E era isso que contava para mim.

Eles nunca iam ao delírio. Mas pelo menos eu sabia que, durante um ou dois minutos, tinha colocado todo o mundo no mesmo comprimento de onda.

Eu provavelmente nunca teria conseguido isso, nem sequer teria tentado com tanta força e determinação se o René não estivesse estado na sala, lá em baixo, em algum lugar na escuridão. Ele tinha-me repetido várias vezes que não devemos pregar a quem está convertido mas era para ele, acima de tudo e todos, que eu cantava e lutava contra aquela sala e contra os meus medos.

Esses concertos no Olympia em primeira parte ficaram como uma experiência inesquecível. Não marcaram uma mudança na minha carreira mas, durante cinco semanas, eu mudei profundamente, eu aprendi e, sobretudo, eu entendi que tinha crescido.

Um ano antes, quando preparávamos "Les Chemins de Ma Maison", o Eddy tinha-me dito que esse seria o último vestígio que eu deixaria da minha infância. E eu senti, nesse Outono, em Paris, enquanto eu lutava contra um público indiferente a mim no Olympia, que a minha infância estava, de facto, muito longe de mim.

Eu tinha-me tornado uma jovem mulher capaz de jogar no duro, de exercer um controle cada vez maior sobre as minhas emoções, capaz de, acima de tudo, não renunciar à realização, de não voltar as costas à glória e ao sucesso. Isso não é fácil. Aceitar o nosso sucesso é, de uma certa forma, aceitar deixar para trás quem amamos, os irmãos e as irmãs que não tiveram a sorte e os meios de chegar aqui.

Eu só tinha 16 anos e não entendia correctamente esse medo de causar dor, de trair ou pior, de parecer uma metida, mas eu sentia esse medo. E eu sabia, graças ao René, que eu não me devia deixar levar por esse medo, que eu devia vencer esse medo, como todos os outros.

Eu tinha que me fortalecer. Como um lutador de boxe, como qualquer atleta que fica musculoso, que trabalha para desenvolver a resistência. Ao mesmo tempo, eu tinha que continuar a ser uma artista sensível, capaz de sentir e de levar a emoção a uma canção. E descobri acima de tudo que tinha que lutar, não apenas no palco mas também na vida.

 

[143] Mesmo debaixo dos meus olhos estava o exemplo de Karine, que eu visitava quando estava em Montreal. Ela lutava também. Todos os dias. Desesperadamente. E, apesar dos cuidados de Liette, ela estava cada vez mais doente e ameaçada, condenada todos os dias pela doença. Foi ela que inspirou Eddy a escrever a canção que dava título ao meu álbum mais recente, Mélanie.

Eu devo muito a Karine. Mesmo sem querer, ela abriu os meus olhos para as realidades tristes da vida. Nessa época eu nunca lia os jornais, eu nunca assistia televisão. Eu vivia no mundo fechado do show-business. Karine lembrou-me constantemente, apenas pela sua presença, que existe sofrimento, dor, injustiça nesse mundo. E há um mistério sem solução que, em alguns dias, me deixava muito perturbada e para o qual eu nunca achava resposta:

"Porquê ela e não eu? Porque é que a vida e o mundo têm que ser injustos?"

Eu nunca tive resposta. Eu trabalhava muito. "Não temos nada sem fazer nada", dizia a minha mãe. Eu estava de acordo com ela, com certeza. Mas eu vencia em todo o lugar, o tempo todo. Eu não conhecia o amor como eu tanto queria mas eu tinha saúde, fortuna, glória. Regularmente, uma das minhas canções subia ao top do Québec. O meu começo de carreira na França era mais do que promissor. Pessoas competentes cuidavam de mim, aconselhavam-me. Eu tinha um fã-clube, roupas de luxo, eu viajava, eu cantava, eu realizava todos os meus sonhos um a um…

Karine vivia uma guerra perdida, ela sabia. Todos nós sabíamos. Por maiores que fossem os seus e os nossos esforços, ela não teria nada. Ou quase nada. Apenas uma vida muito curta com sofrimentos constantes. A única esperança, bem pequena, era a pesquisa que os cientistas faziam.

Desde há alguns anos que eu era a madrinha da campanha de financiamento da Associação da Fibrose Quística do Québec. Como todos os membros da minha família, eu seguia de perto as descobertas dos investigadores, graças aos fundos angariados pelas associações de todo o mundo. Mas a esperança média de vida de uma criança com fibrose quística, hoje de 30 anos, na época, no meio dos anos 80, era de 15 anos.

Karine, com 8 anos, já tinha vivido metade da sua vida, estava a meio caminho da sua passagem na terra. E ela continuava lutando com todas as suas forças. Liette também, como se elas acreditassem que poderiam vencer a doença.

Nesse verão eu conheci a atleta profissional Sylvie Bernier, que tinha ganho a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, na modalidade de salto ornamental. Nós não nos vimos mais do que meia dúzia de vezes e por pouco tempo mas a conivência e a cumplicidade entre nós eram fortes. Eu tinha a impressão que nos conhecíamos desde sempre. Eu achava que tínhamos semelhanças assustadoras, não fisicamente mas na alma, nós éramos como irmãs, a nossa cumplicidade era forte.

[145] Ela tinha os olhos azuis que nem os de Karine. Como Karine, ela era muito meiga com as pessoas. E muito dura com ela mesma, muito disciplinada, muito forte.

Sylvie era, para a sua idade, uma mulher madura e muito confiante, muito reflectida. Ela conhecia os seus meios, as suas potencialidades e os seus limites. Ela tinha, como todos os outros atletas de elite, uma força de carácter e um poder de concentração fora do comum. Ela também lutou todos os dias, durante anos. Sem nunca desistir. Como Karine. Mas ela tinha subido no lugar mais alto do pódio. Ela tinha vencido. E Karine sonhava conhecê-la.

Juntas nós falamos dos nossos treinos, dos regimes alimentares que seguíamos, dos nossos truques para lutar contra o medo, preparar um show ou uma prova. E eu entendia, e acho que ela também, que o jeito como vivíamos as nossas profissões tinham muito em comum. Eu descobria com ela a vida terrível que vivem os grandes atletas, uma vida feita de renuncias, perseverança e de solidão.

Ela contava-me como se preparava para uma competição, repetindo o seu salto cem mil vezes na sua cabeça, depois de o ter feito cem mil vezes no ar. Ela repetia cada volta, cada pirueta, até na perfeição. Até mais do que na perfeição. Antes de um concerto ou de uma gravação eu fazia a mesma coisa… cem mil vezes na minha cabeça.

Karine também queria saber como Sylvie treinava, especialmente se ela se sentia desmotivada em alguns dias, se ela já tinha tido vontade de desistir. Eu nunca tive interesse pelo desporto. Ainda não tenho grande interesse, excepto pelo golfe, é claro. Mas desde que conheci Sylvie eu  sinto-me muito próxima dos atletas. Eu tenho muitas vezes a impressão de que tenho infinitamente mais afinidade com eles do que com muita gente do show-business. Eu amo a mentalidade deles, a sensibilidade, a necessidade e o desejo de vencer e qualquer coisa que é muito dificilmente definível, que se pode chamar a pureza, a pureza do gesto, do esforço, o ideal…

René estava tão próximo do desporto como estava do show-business. De facto, para ele, não havia uma fronteira definida entre esses dois universos. Durante duas semanas, ele seguiu de manhã até de noite todas as competições dos Jogos Olímpicos de Los Angeles. Ele conhecia o nome de todos os campeões. Ele nos contava as suas proezas em detalhe, mesmo quando tínhamos assistido na televisão. Ele reparava sempre em coisas que nos tinham escapado, como um olhar de cumplicidade entre o treinador e o atleta, o medo no olhar de um, o pressentimento da vitória no olhar de outro…

A todos os jornalistas que encontramos no nosso regresso de Paris, ele explicou que eu treinava como uma atleta olímpica. Ele contava como eu ensaiava as minhas canções na minha cabeça. Ele dizia que um cantor, como um atleta, deve treinar todos os dias para que as suas cordas vocais estejam em boa forma. E ele os fazia rir, pegando a sua voz rouca e carregando ainda mais na rouquidão, para dizer:

−Vejam o que acontece quando paramos de treinar.

Ele não cantava desde a época dos Les Baronets, que se tinham separado há uns 15 anos. E a sua voz, já aveludada, tinha-se tornado mais rouca.

Um pouco antes do Natal, apenas um mês depois das minhas cinco semanas no Olympia, eu iria numa grande tour pelo Québec. René tinha impresso um programa que ele tinha preparado com o Eddy e com a Mia. Tinha uma foto em que eu estava na companhia da Sylvie, a atleta radiante, e Karine, a criança desfeita. [147] Duas almas gémeas, duas lutadoras que me tinham marcado e ensinado muito.

 

Eu celebrei os meus 17 anos no palco de uma escola polivalente em Val-D’Or, em Abitibi. Estávamos bem no meio da minha primeira tour de verdade, que nos levou de um extremo ao outro do Québec, em todo o este e o norte de Ontário e em Acadie. Não víamos mais o fim. E não queríamos mais que ela acabasse porque estávamos muito empolgados.

O nosso show crescia de dia para dia e a tour prolongava-se de cidade para cidade. Nós deixávamos marcas antes de chegarmos e depois de partirmos.

Eu tinha uma nova orquestra dirigida por Paul Baillargeon, que tinha composto a música "Une Colombe", que se tinha tornado num sucesso enorme no Québec. Eu tinha preparado o conteúdo desse concerto com o René, o Paul e o Eddy. Eu cantava uma mistura de canções que eu amava, de todos os géneros.

− É a sua primeira tour de verdade. - Tinha dito René - Você tem que apresentar todo o arsenal, tudo o que você sabe fazer."

Por isso eu cantava rock, canções suaves, ópera, blues… Eu cantava "Mamy Blue" de Giraud, "Le train du Nord" de Félix Leclerc, velhos clássicos como "Over the Rainbow", a minha inseparável "What a feeling". Eu cantava também uma peça retirada da ópera "Carmen", de Bizet. E "Up where we belong", em dueto com Paul, que tinha uma voz muito semelhante com a de Joe Cocker… Eddy tinha-me feito descobrir a música de Michel Legrand, um amigo dele, e tinha-me preparado um medley das suas canções que eu adorava. E eu cantava, evidentemente, os meus sucessos mais importantes, como "Ce N’Était Qu’Un Rêve" ou "D’Amour ou D’Amitié".

Mas não era sempre fácil. Cantar de novo a mesma canção pela centésima vez, colocando alma e coração, mesmo uma canção que amamos de paixão, isso requer um poder de concentração que eu nem sempre tinha.

Sem pensar, eu entrava em piloto automático e eu deixava a minha canção seguir o seu caminho. René percebia todas as vezes. Nos comentários que ele fazia depois do concerto, ele lembrava-me que eu tinha perdido a concentração e a presença nas minhas canções mais conhecidas. Elas se tornaram nas mais difíceis de cantar.

− Você tem que lutar contra o costume, contra a rotina… Isso faz parte da sua profissão.

René ficava de olho em tudo: no roteiro e nas decorações, nos arranjos musicais, nas luzes, na ordem das canções, mesmo nas roupas que eu usava, no meu cabelo. Ele tinha escrito os textos que eu dizia entre as canções, por vezes mesmo no que eu devia dizer aos jornalistas que eu encontrava ou que pose fazer na frente de um fotógrafo. Muitas vezes, durante a tour, ele tomava conta da direcção e das iluminações, dos cartazes, da promoção.

E quase todas as noites ele jogava cartas com os músicos e os técnicos, que ele tinha convertido. Ele tinha criado um sistema de jogo, uma combinação que ele achava que lhe permitiria ganhar sempre no black-jack. [149] Ele falava disso a todo o mundo. Até a mim, a quem o jogo não interessava nada. Ele tinha o feltro verde, os dados, uma caixa de cartas. Eles poderiam jogar grande parte da noite. René estava maravilhado pelo seu sistema, que ele aperfeiçoava com os que nos acompanhavam ou com os seus amigos que, por vezes, se juntavam a nós.

Ele falava-nos também da sua teoria das sequências.

− No jogo, bem como na vida, existem sequências. Um azar nunca vem só, nem uma vitória, nem uma derrota. Temos que ter em conta as sequências. Temos que apostar grande quando temos chances de ganhar… e sair fora quando nos sentimos ameaçados, azarados.

− Mas como sabemos que estamos azarados?

− A gente sente. Quando a sorte está do seu lado você sente-a.

A minha carreira e o jogo o ocupavam cada dia mais. Certo dia, poucas semanas depois da nossa partida em tour, a sua mulher Anne-Renée ficou cheia e ela deu a entender a ele que tinha intenções de o deixar.

Estávamos então em Gaspésie, a mil quilómetros de Montreal. René voltou para a cidade de noite, sozinho. A tour foi interrompida. Durante semanas eu não o vi. Ele trabalhava, sem dúvida, para consertar o que tinha feito de errado. Eu deixei-me cair no desleixo total. Sem ele para me motivar e me inspirar, eu não tinha a menor vontade de trabalhar a minha voz, de treinar, de ficar em forma. Estávamos na época mais sombria e fria do Inverno. Eu ficava na casa dos meus pais, sem sair, eu dormia e assistia televisão, eu esperava…

Os meus pais, Eddy e Mia, de vez em quando passavam para me ver, fizeram-me revelações sobre René que me deixaram perturbada. Desde que ele tinha começado a cuidar da minha carreira, há quatro anos, ele não tinha deixado de jeito nenhum que eu percebesse que ele tinha problemas financeiros, sentimentais e familiares. Ele tinha-me feito viver sempre numa bolha, ele tinha afastado de mim todo o perigo, tudo o que causasse angústia. Dito de outra forma, eu tinha sido uma artista mimada e superprotegida, nenhum problema de ordem material, sem o menor stress financeiro. Eu tinha 17 anos, 4 anos de carreira e nunca tinha pensado que alguma coisa (um show, uma gravação, uma viagem) não pudesse acontecer por causa de dinheiro. Eu vivia sem contar dinheiro.

Desde então eu li nas revistas, me contaram ou eu vi na televisão, a vida dos artistas e nunca encontrei uma história comparável à minha. Eu nunca ouvi falar de uma artista, como Streisand, Piaf ou Tina Turner, que tenha sido tão abrigada, protegida, que tenha evitado problemas da ordem material no começo da carreira. René tinha cuidado disso tudo sozinho, sem deixar transparecer a menor preocupação. Nunca na minha vida eu teria adivinhado que ele tinha tido que pedir emprestado grandes quantidades de dinheiro e que ele tinha ficado falido. Por minha causa.

Durante todo esse tempo, eu tinha vivido como uma princesa. Eu tinha comprado em Duvernay, uma grande casa para onde eu me tinha mudado com os meus pais. [151] Eu tinha um carro, peles, jóias, tudo o que eu queria. E mesmo mais.

E foi então que eu soube, dois anos depois, que ele tinha hipotecado a sua casa para financiar um dos meus álbuns. E ao invés de pagar essa hipoteca, ele tinha investido todos os lucros na produção de outro álbum. No ano precedente, ele tinha preferido declarar falência do que aceitar uma oferta financeiramente muito interessante de um promotor que queria produzir na tour comigo. Ele achava que eu não estava pronta e que eu não tinha ainda desenvolvido um repertório original suficientemente completo.

Eu compreendia porquê Anne-Renée estava cheia. René não era o marido mais fiel nem o mais atencioso na face da terra. E ele jogava muito. As suas viagens a Las Vegas e a Atlantic City podiam ser desastrosas ou bem sucedidas. Ele ganhava muito dinheiro. Mas ele o gastava como se fosse uma fonte inesgotável.

Eddy disse-me mais tarde que René sempre se comportou como um milionário e, por isso, quando ele ficou milionário, nada mudou na sua vida.

Portanto, depois do jogo, eu tinha culpa nas dificuldades que ele estava vivendo. Fosse como fosse, eu queria ter responsabilidade.

Anne-Renée, que tinha sido muito amiga no começo, foi-se afastando pouco a pouco. Ela não assistia mais aos meus concertos, mesmo quando eu estava na região de Montreal. No fundo, eu ficava muito feliz. Eu ignorava cada vez mais o facto de que eu estava apaixonada, eu tinha todos os sintomas. E ver os dois juntos deixava-me deprimida. Mesmo sem querer, sem me dar conta, eu ficava amuada. Eu acho que não dava um bom concerto quando ela estava presente.

Eu não duvidava mais, especialmente depois das revelações que os meus pais e Eddy me fizeram, e eu agora era o centro da vida de René Angélil. Ele tinha sacrificado tudo, tinha arriscado tudo por mim. Mesmo se esse jogador estava apenas interessado na minha carreira no começo, ele tinha acreditado em mim de verdade, ele tinha tido a certeza que eu tinha valor, para investir tudo o que ele tinha: o seu tempo e o seu dinheiro…

Quando retomamos a nossa tour no Québec, eu sabia que o nosso relacionamento não seria mais o mesmo. Eu não podia evitar pensar em tudo o que ele tinha feito por mim, em tudo o que eu representava para ele, no que eu tinha transformado a sua vida e a importância enorme que eu tinha tomado. Eu tinha outro olhar sobre ele. Eu estava mais intimidada do que nunca. Eu esperava que ele me fosse falar da sua vida. Eu achava que ele saberia ter um relacionamento diferente entre nós, um relacionamento adulto.

Mas a sua atitude, para minha grande desilusão, não mudou. De jeito algum. Ele nunca me disse o que tinha resolvido com Anne-Renée mas parecia que ela não devia estar muito feliz por vê-lo partir de novo em tour e passar os seus dias e as suas noites num estúdio ou ao telefone com produtores, autores, compositores, músicos que ele mobilizava com um único objectivo: fazer de mim uma estrela, uma grande estrela.

Ele ainda vinha ao nosso quarto, todas as noites, e nos recontava, à maman e a mim, canção por canção, o concerto que eu acabava de dar. [153] Ele dizia-me que eu tinha trabalhado bem mas havia sempre alguma critica a fazer, nunca era perfeito, eu tinha sempre que fazer melhor ou tentar fazer melhor na próxima vez…. Eu poderia segurar mais aquela nota, mais alto, por mais tempo; aquele gesto, eu devia fazê-lo menos vezes; eu devia mudar a tonalidade dessa ou daquela canção, etc.

Fazer melhor, ser melhor. Cada noite ele me convencia que era possível. Ele dava-me o gosto, a vontade e a necessidade de ir além de mim mesma. Depois de ter elevado a fasquia ainda mais alto, sempre mais alto, ele cumprimentava a maman e dizia-me:

− Boa noite, durma bem.

E dava-me dois beijos no rosto. Como se eu ainda tivesse 13 anos. E ele ia viver a sua vida. Sem mim.

 

Na minha família ninguém duvidava há muito tempo que eu estava apaixonada por René Angélil. Inconscientemente, eu tinha feito tudo para que isso fosse visível. Antes mesmo que eu percebesse que estava apaixonada, muitas pessoas, nos estúdios onde íamos gravar, nos estúdios de televisão ou nas salas dos concerto por onde eu passava, tinham percebido que havia alguma coisa entre o René e eu. Eu só tinha olhos, ouvidos, sorrisos e pensamentos para ele. Tudo o que ele dizia era como a bíblia para mim. Eu não podia passar um quarto de hora sem falar o nome dele. Se ele saía, eu procurava por ele por todo o lugar, eu esperava por ele…

No começo, a minha mãe não se preocupava. Ela dizia a ela mesmo que isso ia passar, que mais cedo ou mais tarde eu acharia um rapaz da minha idade por quem me apaixonaria e com quem casaria.

Nós nunca falamos abertamente. Eu sentia a minha mãe vigilante, pronta a me defender desse amor que ela achava despropositado. Eu continuava dormindo com a foto de René contra o meu rosto, contra o meu pescoço. Eu gastei várias. Eu tinha, em alguns dias, um sentimento de profunda solidão. Eu estava fechada nesse amor, sobre o qual eu não podia falar com ninguém.

E eu sabia que isso não ia passar. Eu era uma mulher feita, uma mulher de verdade, ia fazer 18 anos, queria que René me pegasse nos seus braços, me abraçasse e fizesse amor comigo. De verdade.

− Quem sabe ele não vê nada disso, pensava eu - quem sabe ele não está interessado mais em mim.

Eu tentava entender porque eu o amava tanto. Eu achava ele lindo. Eu amava os seus olhos tão doces, os seus gestos, a sua voz, a cor da sua pele, as suas mãos, o seu perfume, a força tranquila que emanava dele, a sua calma, a autoridade que ele exercia sobre todo o mundo, até sobre os meus pais, mesmo sobre os patrões das gravadoras. Eu amava a sua paixão pelo jogo, a sua risada também, e aquele jeito que ele tinha de analisar as situações, de tomar decisões, de se impor e, acima de tudo, o olhar dele sobre mim, a confiança que ele tinha em mim e o que ele esperava para o meu futuro…

Eu tive uma grande esperança quando Anne-Renée (que amava outro, como diziam os tablóides), pediu o divórcio, que ele tinha garantido, bem como a guarda das crianças.

Mas eu depressa compreendi que ele estava desfeito por isso é que ele considerava como uma derrota enorme e irreparável. [155]

Ele tinha conseguido manter bom contacto com Denise, a mãe de Patrick, o seu filho mais velho, que era mais velho do que eu algumas semanas. Mas com Anne-Renée, com quem ele tinha dois filhos, Anne-Marie e Jean Pierre, que apenas tinham 11 e 8 anos, as coisas não se estavam ajeitando facilmente. Ele achava que os filhos estavam sofrendo. Eu entendi mais tarde que era isso que doía nele, saber que os filhos não conheceriam a estabilidade de um lar unido. Demorei muito tempo para entender isso. Na época eu achava que ele estava sofrendo por ter sido abandonado por uma mulher que ainda amava.

Ele ainda a ama, - eu dizia a mim mesma - ela ainda faz ele sentir dor.

Eu teria amado tanto fazer ele sofrer, fazer ele sentir a dor do amor. Para poder consolá-lo. Para o ouvir dizer que ele me amava e que sofria por minha causa.

E voltei aos meus filmes secretos, que eu montava vezes sem conta. Ele amava-me e eu ignorava-o. Ele ficava infeliz por minha causa. Por vezes até eu amava outro. Ele fazia de tudo para me seduzir. Eu resistia. E depois, numa cena magnífica, eu cedia. Eu o consolava. Fazíamos amor e ele me levava até ao fim do mundo.

Um clássico que repeti 100 vezes. O mais extraordinário de tudo isso é que rumores começaram a circular sobre nós. Amigos ou colegas de trabalho perguntavam aos meus irmãos e irmãs se estava acontecendo alguma coisa entre o René e eu. E o rumor depressa chegou nos tablóides que, mais do que inventar histórias, faziam sondagens para saber a opinião dos leitores. Muitas pessoas diziam-se chocadas por causa da nossa diferença de idade ou consideravam que o René tinha abusado da sua autoridade e do seu poder de manager…

Ele nunca falou desses rumores que circulavam sobre nós. Mas eu soube mais tarde que isso o perturbava profundamente. E por causa disso, nós perdemos muito tempo de amor.

Esses rumores não facilitaram as coisas.

Mas não eram infundados. Pelo menos pela metade. Quem sabe até menos. Eu estava verdadeira e completamente apaixonada por ele. E ele, de uma certa maneira, também estava. Eu sabia, eu sentia, eu via. E, acima de tudo, eu queria.

Quando estávamos juntos ele estava subjugado, fascinado por mim. Ele só tinha olhos para mim. Ele também olhava para mim o tempo todo. E estávamos sozinhos no mundo, mesmo rodeado por vinte pessoas.

No estúdio, quando escutávamos as gravações, ou no restaurante, onde comíamos quase todos os dias, em Montreal ou em Paris, sentávamos sempre lado a lado. Falávamos juntos sem pensar nos outros. Riamos muito. Muitas vezes eu encostava-me toda nele, eu deixava cair a cabeça no ombro dele. Eu dizia a mim mesma que os outros deviam achar que era inocente. Mas não era de jeito nenhum. [157] E eu achava que René entrava nesse jogo e que ele sentia muito prazer também. Ele amava estar comigo, era evidente. Ele amava falar comigo. Ele me amava, eu tinha certeza.

Mas ele lutava contra esse amor.

Um dia, em Paris, num restaurante onde íamos muitas vezes, eu fui-me sentar no extremo da mesa e esperei que o René se viesse sentar do meu lado. Mas, quando ele chegou com os outros, ele passou por mim, pelo seu lugar de sempre, e foi sentar-se do outro lado da mesa. Eu fiquei aterrada, destruída. As minhas pernas começaram a tremer. Tudo parecia desmoronar em minha volta.

Esse jantar foi sinistro. Eu não consegui engolir nada. Eu procurava os olhos dele mas ele evitava-me. A minha mãe estava num lugar entre nós dois, bem como Eddy, Mia e outros, compositores e produtores que tinham acabado de assistir à gravação.

Depois todo o mundo foi embora e deixou-nos sozinhos. Então ele aproximou-se de mim. Ele parecia cansado.

− Vem − disse-me ele − vamos caminhar até no hotel.

Eu sabia que ele iria anunciar-me alguma coisa terrível. Eu tremia tanto que tinha dificuldade em me levantar. Lá fora, ele disse-me imediatamente que não nos devíamos ver mais do mesmo jeito, que tínhamos que quebrar aquela familiaridade que havia entre nós. Eu acho que ele preparou e ensaiou as suas frases. A minha cabeça estava rodando. Eu queria sentar no chão. Eu queria que ele fosse embora e me deixasse sozinha. Eu poderia ter ficado ali até no fim do mundo ou teria caminhado até cair…

− Foi maman que te pediu para fazer isso?

Ele não respondeu.

Então eu disse-lhe:

− Eu sei que você me ama, René Angélil.

Ele continuou silencioso. Parecia que ele ia começar a chorar.

− Se você não me ama eu quero que você me fale. Me diga: "Céline, eu não te amo." Senão eu nunca vou acreditar em você. Eu não posso acreditar em você porque eu sei que você me ama, você está a ouvir-me? Tente dizer o contrário, se você puder.

Ele não foi capaz de dizer que não me amava. Foi isso que me impediu de desmoronar por completo.

Eu sabia que ele me amava. Ele poderia ter fingido o contrário mas eu nunca acreditaria. E eu não entendia porque ele recusava o amor que eu lhe podia oferecer, porque ele me recusava e recusava a nossa felicidade.

Eu não tinha a menor hesitação. Nunca, por uma fracção de segundo, eu pensei que fosse fazer mal a alguém. Eu sabia que o seu casamento com Anne-Renée estava acabado. Não por minha causa. Não havia mais amor entre eles. E eu tinha acabado por perceber que ele queria reatar o seu casamento por causa dos seus filhos. E eu disse-lhe:

− Você acha que poderá fazer os seus filhos felizes estando infeliz?

Ele ficou silencioso.

− A tua felicidade é comigo, você sabe disso. Me diga o contrário, se você puder."

Ele caminhava do meu lado. Mas ele estava longe, muito longe.

No hotel, a maman esperava por mim. Ela sabia perfeitamente o que tinha acontecido. [159] Ela preparou um banho para mim. Ela ajudou-me a despir. Ela bateu nas minhas costas suavemente como a gente faz para consolar uma criança com medo ou com dor. Não dissemos nada. Eu não estava com raiva dela. Ela fazia o que uma mãe devia fazer, ela estava cuidando de mim. Eu chorava por causa de René mas também por causa da dor dela, da preocupação, do medo que ela tinha que a minha vida fosse destruída.

A minha mãe achava que o René era responsável por esse amor que me devorada. Ela deitou-me na minha cama e, antes de me deixar adormecer, disse:

− Ele devia ter dado um jeito de evitar que as coisas chegassem a esse ponto.

Eu tinha vontade de responder: "Ele não podia ter dado um jeito porque ele me ama também." Mas ela teria perguntado: "Ele disse-te isso?"

Eu teria sido obrigada a responder que não, mesmo sabendo, no meu espírito, que não havia a menor dúvida.

Pela primeira vez na minha vida, a minha mãe não podia nem queria encontrar uma solução para o meu problema. Pior, ela tornava-se num obstáculo para a minha felicidade.

Longe de aceitar esse amor, ela queria curar-me, ela queria que eu esquecesse o René. Ela ficava furiosa quando eu falava dele. Eu devo ter causado muita dor a ela quando, um dia, lembrei-lhe que eu tinha 18 anos.

− Eu sou maior de idade. Nós estamos num país livre. Ninguém tem o direito de me impedir de amar quem quer que seja.

Ela tinha escrito ao René uma carta terrível, dizendo que ele tinha traído a sua confiança. Ela queria um príncipe para a sua princesa e não um homem duas vezes divorciado e duas vezes e meia mais velhos do que a sua filha.

Mas, ao mesmo tempo, a minha mãe, uma mulher com coração, sabia que não podia impedir um coração de amar. Ela conhecia-me suficientemente bem para saber que eu não desistiria. Eu tinha desejado tornar-me uma cantora famosa e estava chegando lá. Eu queria esse homem na minha vida e eu iria colocar tanta teimosia e força quanto tinha colocado na minha carreira.

 

Nesse Outono, na gala ADISQ, ganhei 5 Félix: melhor canção, melhor concerto, melhor cantora, etc… Um triunfo. Eu nunca tinha chorado tanto em toda a minha vida. Algumas lágrimas de alegria, é claro. Mas, acima de tudo, lágrimas de tristeza, uma tristeza profunda que eu via crescer dentro de mim desde há uns meses e para a qual eu não achava um fim.

Profissionalmente, eu tinha todos os motivos do mundo para celebrar. Tudo o que tínhamos organizado ao longo desse ano tinha sido um enorme sucesso. A tour tinha terminado em perfeição com 3 concertos na grande sala do Place Des Arts, diante de um público conquistado e uma crítica excelente.

Mas eu tinha a alma em dor. Eu tinha o coração partido. Eu estava apaixonada por um homem que eu não podia amar, que não queria que eu o amasse e que não me queria amar. Pior, ele não queria acreditar que eu estava verdadeiramente apaixonada por ele, apesar de eu ter dado todas as provas.

[161] − Eu amo-te e eu vou-te amar por toda a minha vida. Só você.

E, ao mesmo tempo, eu sabia que ele me amava. Então porque é que ele resistia? Porque ele tinha prazer em me fazer sofrer? Eu tinha dúvidas terríveis. Se passavam dois dias sem que eu o visse, sem escutar a sua voz ou sentir o seu olhar sobre mim, eu começava a acreditar que estava iludida. Ele não me amava, ele não acreditava que eu o amava de verdade.

Se ele me tivesse amado nem que fosse um pouco, ele teria visto o divórcio como uma libertação. Mas, pelo contrário, ele me parecia destroçado. A sua dor e a sua confusão matavam-me. Eu via os seus esforços para salvar o seu casamento como prova de que ele não me amava, que eu estava enganada.

No começo do Verão passado ele tinha-se reconciliado com Anne-Renée e eles tinham retomado a sua vida de casal. Eu entrei no inferno.

Anne-Renée sem dúvida tinha exigido que ele ficasse mais tempo em casa porque ele, no dia seguinte, deixou de ir passar os serões na nossa casa e de me levar, com os meus pais, aos restaurantes. Só o víamos quando havia um trabalho preciso a fazer.

Eu gravei um novo álbum nesse Verão, C’est Pour Toi. René assistia às sessões de gravação mas ele não parecia estar presente nem era tão exigente que dantes. Ele não me dizia mais: "Você pode fazer melhor" ou "Faça-me chorar."

Eu tinha concluído que ele tinha perdido o interesse por mim ou, pior, que ele sentia que eu seria incapaz de responder às suas exigências porque eu estava muito triste. A partir daí eu fiz todo o tipo de teorias, cada uma mais rebuscada do que a outra.

− Ele sabe que eu sinto dor porque ele sabe que eu o amo. Ou ele vê que eu estou sofrendo mas ele não quer saber porquê. Mas, se ele não quer saber porque estou sofrendo é porque ele não me ama. Quem sabe tudo isso o deixada entediado, especialmente porque ele não quer que eu o ame. Quem sabe ele está dizendo a ele mesmo que, por causa disso, não podemos mais trabalhar juntos.

Mais uma vez, Eddy contava a minha vida nas canções que escrevia para mim. Ele tinha-me observado. Era evidente… ele tinha visto e compreendido tudo. Os textos das suas canções saíam do fundo da minha alma. Pareciam-me tão familiares que eu apenas lia uma ou duas vezes antes de saber de cor.

Por vezes eu digo palavras estranhas

Por vezes eu falo demais

Mas você olha-me e o meu coração cai

Por vezes eu rio fora do tempo

Você não entende nada

E você olha-me de repente, surpreso

Não me faça muitas perguntas

A resposta está nos meus olhos

Está num lugar entre nós dois

Não me obrigue a dizer tudo

Porque você já sabe

Tudo o que eu faço hoje é por você. [163]

Eu cantava e dizia a mim mesma: "Não é possível que ele não entenda." Eu passava os meus dias e as minhas noites perguntando-me em quem ele estaria pensando, onde estaria o seu coração, se ele sabia que eu o amava e como podia ele ignorar, se ele ainda amava Anne-Renée, se eles faziam amor muitas vezes…

Pela primeira vez em 5 anos, nós não tínhamos qualquer projecto, nenhuma tour em vista, nenhum show, nem na França nem no Québec, nada na televisão. Nós tínhamos feito o álbum "C’est Pour Toi" quase maquinalmente, sem colocar o nosso coração nem muito tempo e, no fundo, pouca esperança. E René não parecia ter pressa em organizar uma campanha de promoção como ele sempre tinha feito.

Mas ele estava elaborando outros projectos para mim, sobre os quais ele tinha reflectido durante muito tempo. Ele contou-me, uma noite, alguns dias antes da Gala ADISQ, onde eu iria triunfar no personagem de "chorona que não se cala."

Nós iríamos parar tudo.

− Por quanto tempo?

− O tempo que for necessário.

− O tempo necessário para quê?

− Para que a sorte volte.

− Foi a tua mulher que te deixou, não a tua sorte.

Ele riu. Eu amava a risada dele, mesmo quando soava triste.

Ele me lembrou da sua teoria das sequências, que diz que um azar nunca vem só, nem uma vitória nem uma derrota. E que é preciso a gente se esconder, sair fora, quando sentimos que vamos fazer asneiras.

− Presentemente, como você pode ver, eu estou numa fase má. Em vez de cometer erros eu vou me retirar. E você vai parar também por uns meses, mesmo por um ano se for necessário. Você já passou nas suas provas, ninguém te vai esquecer. Você vai continuar aprendendo. Quando a gente recomeçar, será em grande, será para ir longe, você vai ver.

No dia depois da gala, ele iria partir, infeliz no amor mas feliz nos negócios, para Las Vegas, onde ele passaria a maior parte do ano seguinte. Eu tinha cinco Félix nos braços, era formidável. Mas, sem ele, os meus braços estavam vazios. Ele tinha, no entanto, deixado uns deveres: aprender inglês, ter aulas de dança e de canto.

Então, ele não me estava a abandonar. Pelo contrário. Ele estava pedindo-me para crescer, ficar mais forte do que nunca. Eu via isso como uma promessa para o futuro. Se ele queria que eu aprendesse Inglês era porque tinha decidido gravar um álbum nos Estados Unidos. Se ele me imponha essa pausa era porque tinha grandes projectos para nós dois. Eu me agarrei a essa ideia.

[165] − Para começar, vamos arranjar os seus dentes. E você vai mudar de penteado e de visual. Você vai escutar todas as músicas que saírem, todas as canções, todos os cantores e cantoras que fizeram alguma coisa de novo.

Eu sabia que ficaria separada dele por uns meses. "Longe da vista, longe do coração." Eu sabia que, em Las Vegas, outras mulheres e outros prazeres o ocupariam. E que ele pensaria pouco em mim, quem sabe nem sequer pensaria durante dias e dias e noites.

Eu imaginava filmes de terror. Eu imaginava-o num casino, rodeado de ruivas explosivas ou de loiras sexy com os decotes que mexiam com ele. Loira, ruiva ou morena, eu poderia tentar tudo isso. Mas quanto ao decote, eu tinha que me contentar com aquilo que a natureza me tinha dado e não havia nada aí que pudesse mexer com ele.

Sem problemas, eu daria um jeito no resto, eu tonificaria os meus músculos, aprenderia a caminhar de um jeito sexy. Afinal, eu era magra como os meus irmãos e irmãs e o meu pai, e graças a essa elegância, eu poderia jogar a carta da top model sexy.

Ele queria que eu ficasse mais bonita e eu ia fazer isso. Eu deixaria a minha pele de adolescente paralisada pelo amor para enfrentar esse sedutor com as mesmas armas. No seu retorno, ele descobriria uma outra mulher. Eu iria jogar também, tudo por tudo. E, quando ele voltasse, eu ia fazer ele cair.

Mas eu teria que caminhar um longo caminho sozinha, na sombra. Foi por isso que eu chorei tanto durante a gala. Eu estava-me preparando para entrar num período da minha vida que me aterrorizava mas que me empolgava ao mesmo tempo. Eu quebraria o contacto maravilhoso que tinha estabelecido durante a tour. E, pior do que isso, eu iria viver longe do homem que eu amava…

Pela primeira vez na vida, eu devia enfrentar sozinha um desafio importante. Eu ia realizar um projecto grande sem o apoio nem os conselhos dos meus irmãos e irmãs, da minha mãe ou de René Angélil. Era o meu primeiro projecto de verdade, de uma mulher adulta e responsável: seduzir um homem 26 anos mais velho.

Quando o meu amado manager voltasse de vez, eu cantaria melhor do que nunca. Eu falaria inglês. Eu dançaria e mexeria-me em palco com graciosidade. Ele ficaria contente. Mas não era só nisso que eu estava apostando. Mais do que tudo, eu queria o homem. Era ele que eu queria impressionar, era ele que eu queria seduzir com o meu novo look, com os meus dentes perfeitos, com o meu novo penteado, com o meu novo jeito. Eu teria um olhar novo, provocador, um sorriso aliciador, mistério em volta de mim, muita força, charme e sex-appeal. A única coisa na qual eu acreditava era em ter um objectivo e realizá-lo. Eu iria me treinar na sedução como um atleta de alta competição e capturar definitivamente René Angélil.

Esperando por isso, eu fazia filmes na minha cabeça com cenas de sedução cada uma mais tórrida do que a anterior. Eu representava personagens sedutoras ou ingénuas. E ele, evidentemente, era loucamente apaixonado por mim.

 

Então eu inscrevi-me numa escola de línguas, nove horas por dia, cinco dias por semana, durante dois meses. Em alguns momentos era um horror. Eu não entendia mais nada em algum idioma humano, eu balbuciava, as minhas ideias enrolavam-se. [167] Mas depois, do nada, tudo voltou a ser claro e inteligível. Eu via uma entrevista na televisão em inglês e, durante muito tempo, eu compreendia tudo. Ou quase tudo. Eu descobria um novo sentido nas canções que conhecia desde a minha infância.

Eu acostumei-me rapidamente à sombra. Eu trabalhava tanto quanto antes. Eu parecia, durante meses, um estrado de ortodontia: eu estava usando aparelho. Mesmo escutando-me frequentemente na rádio, ninguém me via em lugar nenhum. Eu nunca vi fotos minhas dessa época, pelo menos nenhuma foto com o aparelho. Eu entrei de verdade na sombra. Todo o tipo de rumor circulava nos tablóides. Eu tinha ido para o convento, eu era missionária em África, eu tinha perdido a voz… No dia seguinte eu estava grávida, três dias depois eu tinha tido gémeos; eu os tinha dado para a adopção, um para a Suíça e outro para a Califórnia.

Durante o Inverno, René veio regularmente ao Québec para ver os seus filhos. Mas ele também tinha deveres para fazer. Ele tinha decidido recomeçar a nossa viagem. Ele queria mudar tudo, a nossa gravadora, a promoção, os músicos. Ele falava mais uma vez em alargar o meu repertório para chegar a um público mais vasto. Ele queria, acima de tudo, que eu gravasse um disco em inglês com grande orçamento. Ele queria associar-se a uma multinacional de discos. Ele encontrava pessoas em Toronto, em Nova Iorque, em Los Angeles. E ele fazia planos.

Cada vez que a gente se via, ele contava-me histórias, ele sempre tinha feito isso. Eu sabia de cor as aventuras de Elvis e do Colonel Parker, de Streisand e de Erlichman, etc. Mas, a partir de agora, as histórias aconteciam no futuro e nós, eu e ele, éramos os heróis. Ele via-me, dentro de dois anos, no Johnny Carson Show, em Las Vegas, na Broadway. Ele falava menos da França nessa época. Poderia dizer que ele se interessava mais pelo mercado americano.

Eu teria-o seguido até no fim do mundo.

E isso vinha mesmo no momento certo, porque era aí que eu sabia no fundo, que ele tinha a intenção de ir.

 

Um dia, por fim, eu vi que o tinha perturbado de verdade. Era quase Verão, ele veio pegar-me na minha casa em Duvernay para ver um show no Place Des Arts ou encontrar pessoas da CBS, a nossa nova gravadora de discos.

Durante a sua ausência eu tinha mudado de penteado e de jeito. Eu não tinha mais os dentes caninos enormes que me tinham dado o nome de Drácula. Eu tinha shorts e corpete, eu tinha os ombros e as coxas nuas e bronzeadas. Eu adoro estar bronzeada. Eu estava musculosa também, porque há meses que tinha aulas de dança. E, com isso tudo, eu mostrava um sorriso que eu tinha trabalhado durante muito tempo, um sorriso de mulher confiante.

[169] Ele ficou de pé na porta olhando-me sem dizer uma palavra… Eu vi-o literalmente cambaleando. Pela primeira vez, eu senti que ele colocava em mim o olhar de um homem que deseja uma mulher, não apenas o olhar de um manager sobre a sua artista. Eu tinha mexido com ele, e era mais lindo e mais intenso do que nos meus filmes de amor não correspondido. Um arrepio invisível invadiu-me da cabeça aos pés, a sensação do meu poder sobre um homem. O sedutor estava seduzido.

Eu disse a mim mesma que o nosso relacionamento estava mudando finalmente. René Angélil não seria mais apenas o meu manager, seria também a minha inspiração.

A partir desse dia, ele iria jogar sobre dois planos da minha vida. Ele orientava e geria a minha carreira, tomava todas as decisões de negócios, escolhia as minhas canções. As canções contavam uma história muito simples: a história de uma mulher determinada, que tem sede de amor, que ama um homem que ela quer seduzir. Ele tinha-se tornado no objecto desse amor que eu cantava, ele era o homem das minhas canções. Como podia ele ignorar?

Durante muito tempo, por pudor, por medo também da opinião pública que parecia desfavorável, ele recusou assumir plenamente esse papel. Eu estava certa de uma coisa pelo menos: eu conseguia mexer com ele. Eu sentia isso no olhar dele. Por vezes também, enquanto falava comigo, ele perdia-se nos seus pensamentos e não reencontrava o fio.

− O que é que eu estava dizendo?

A partir desse momento, eu fiz questão de mexer com ele cada vez que tivesse oportunidade de o fazer. Eu tentei surpreendê-lo, desestabilizá-lo. Eu ganhei confiança em mim mesma. Eu ficava muitas vezes perto dele, sempre de jeito a que ele visse os meus ombros nus e as minhas pernas, todo o meu arsenal de sedução… e eu estava feliz, o que é um elemento de sedução quase tão poderoso quanto o sex-appeal.

Ainda não éramos amantes mas já tínhamos que nos esconder, porque ninguém nos devia ver juntos.

Eu adorei a clandestinidade e essa ambiguidade que foi criada em volta da gente. Eu achava isso excitante e muito romântico. Os olhares das pessoas, o que era subentendido, as questões que faziam em nossa volta. Nós tínhamos, René e eu, finalmente, uma vida secreta. E eu não tinha duvida que um dia seriamos amantes.

E que seria para a vida inteira.

Eu não faço ideia de onde me veio essa necessidade ou desejo de viver um amor total e absoluto. Isso não era mais moda, eu sabia. Mas eu nunca imaginei o amor sem ser grande e exclusivo. Eu queria apenas ter um único homem em toda a minha vida. E soube um dia que esse homem seria René. E eu nunca mais hesitei. Esse amor tornou-se no meu maior projecto.

A minha única dor era ter que mentir para a minha mãe. Eu consolava-me dizendo que um dia ela acabaria por compreender que eu estava falando a sério. Ela aceitaria o nosso amor. E então eu contaria as minhas pequenas mentiras.

[171] Eu não sei como responder quando me perguntam hoje em dia como eu reagiria se a minha mãe tivesse exigido que eu rompesse tudo com René. Ou pior, se ela quisesse que eu renunciasse a seduzi-lo. De fato, eu nunca imaginei isso. Eu sabia que ela me tentaria dissuadir, que a sua opinião era desfavorável, tal como a do meu pai. Mas nem por uma fracção de segundo eu pensei que ela pudesse exigir seja o que for que me tornasse infeliz.

René era, para os meus pais, para todos os meus irmãos e irmãs, uma pessoa muito imponente e impressionante. Ele tinha compreendido depressa que, para trabalhar comigo, para estabelecer um relacionamento profissional, ele tinha que estar de acordo com toda a família, começando pela minha mãe. E ele tinha desenvolvido com ela verdadeiros laços de amizade. Ele consultava-a para tudo, ele escutava-a… Eu acho que ele não queria quebrar essa cumplicidade, sem a qual teria sido quase impossível gerir a minha carreira.

A minha mãe estava numa situação difícil. Ela era aliada dele na organização e desenvolvimento das minhas actividades profissionais e adversária dele na evolução da nossa história de amor. Estrategicamente, para poder levar até ao fim o meu projecto de sedução, eu tinha que convencer a minha mãe que isso não era um capricho de uma menina.

Eu lembro-me do momento crucial quando eu soube encontrar as palavras e as lágrimas que a tocaram de verdade. Estávamos em casa, na cozinha. A Maman estava ocupada preparando a refeição. Tinha outra pessoa com a gente, quem sabe Papá, quem sabe um dos meus irmãos. Eu disse-lhe:

− O que você não compreende é que eu o amo, eu amo-o.

E comecei a chorar.

− É verdade. Eu amo ele de verdade. Para a vida inteira.

Maman enxugou as lágrimas no seu avental, aproximou-se de mim e pegou-me nos seus braços, muito docemente. Eu deitei a minha cabeça sobre o seu ombro e ela disse-me:

− Eu acredito, minha filha, eu acredito em você.

Eu percebi então que ela não se oporia mais ao meu projecto. Ela não iria, quem sabe, dar-me força, mas ela tinha admitido que a minha paixão por René Angélil não era uma coisa passageira. A partir desse dia tudo mudou. Mesmo a minha voz, a minha alma. Toda a minha vida.

René queria que eu gravasse o meu próximo videoclipe, "Fais Ce Que Tu Voudras" com François Girard, já conhecido no Québec e no Canadá como um dos directores mais brilhantes de vídeo.

Ele era pouco mais velho do que eu, quem sabe tinha uns 20 anos. Mas ele tinha a determinação de um trovão. Ele exigiu e obteve de René liberdade total. Não apenas nos cenários e na montagem de imagens, mas também no trabalho da minha imagem, do meu look.

− Eu quero que você seja uma menina sensual e sexy - dizia-me ele.

Ele não poderia ter pedido nada melhor.

René tinha compreendido que François fazia coisas novas e diferentes. Foi por isso mesmo que ele o procurou e lhe deu a liberdade que ele queria. A partir daí, René procedia sempre assim. Ele iria procurar as pessoas mais criativas, proporia para trabalha comigo e daria os melhores meios técnicos e financeiros, bem como toda a liberdade que eles precisavam.

[173] Alguns dias antes da filmagem, François levou-me durante várias horas a boutiques e lojas onde nunca tinha botados os pés e fez-me vestir todo o tipo de roupas que eu nunca tinha pensado vestir.

Mia tinha-me levado antes nos grandes costureiros de Paris. Ela tinha-me guiado num universo fascinante da moda. Com François, eu descobri que um look se cria como uma tela, como uma canção… e que isso é útil também. O look que escolhemos tem em conta os nossos humores do dia, o humor geral do mundo, os nossos estados de alma. E do objectivo que temos, é claro.

François tinha compreendido que eu queria seduzir a qualquer preço. Era isso que dizia na canção "Fais Ce Que Tu Voudras". Eddy, mais uma vez, tinha visto dentro de mim com uma clareza assustadora. Ele tinha entrado na minha cabeça, no meu coração.

 

Se for preciso lutar

Eu lutarei também

Eu apostarei a minha vida

A minha última carta para ficar com você

Com as mudanças e melhoramentos que René fazia, uma coisa perturbava-o profundamente. Ele tinha medo de desiludir Eddy se convidasse jovens autores, mais rock, mais pop. Eddy, eu acho, via-me mais na linha de Mirelle Mathieu, da Nana Mouskouri, mas não como cantora pop, muito menos como roqueira. Mas René queria que eu entrasse no universo pop rock.

Ele tentava trabalhar com Luc Plamondon, já o autor mais falado e mais inovador da língua francesa. Ele tinha feito sucessos com dezenas de cantores do Québec e da França, entre os quais Robert Charlebois, Diane Dufresne, Julien Clerc, Barbara, etc. Ele tinha criado, com Michel Berger, um musical rock fabuloso, Starmania, que há muitos anos estava em exibição nos dois lados do Atlântico.

Num dia de Outono, Luc Plamondon convidou-nos para a sua casa de Paris. Eu tinha-o encontrado rapidamente no Place des Arts, depois de um show do Starmania. É um grande homem brusco, que gosta de rir, muito elegante e, ao mesmo tempo, desleixado. Ele já usava, na época, os óculos escuro.

As janelas do seu apartamento abriam-se directamente para a Torre Eiffel, com o Sena no plano de fundo, o palácio de Chaillot, as árvores do Champs de Mars. Ele tinha convidado algumas pessoas importantes do show-business de Paris, entre os quais Gilbert Coullier, que seria mais tarde o produtor de todos os meus shows na França e na Bélgica, bem como a sua mulher Nicole, minha futura cúmplice para as viagens nas boutiques da rua Saint-Honoré.

Nesse dia, pensando nas pessoas que eu iria conhecer, eu entia-me terrivelmente intimidada, pouco segura de mim. Mas quando a noite chegou, na presença deles, eu não sei que diabo entrou no meu corpo, eu soltei-me, estava segura do meu charme, da minha maquilhagem, da roupa que tinha vestida, das coisas que estava falando. [175] Eu estava confiante, rodeada de pessoas que pareciam interessadas em mim de verdade. Eu falei muito. E dei-lhes, eu acho, um grande show. Na mesa e depois na sala, cheia de enfeites, de livros, de telas e esculturas.

Para os fazer rir, eu contei histórias de família, eu imitei Barbra Streisand, Joplin, Piaf. Luc Plamondon se deixou levar, especialmente quando cantei canções de Starmania, imitando um depois do outro os personagens femininos principais. Eu via René, um pouco à parte, me olhando orgulhosamente. Eu sabia naquele momento que eu o fazia feliz e que ele não poderia mais viver sem mim. Eu sabia também que ele estava apaixonado por mim ou que estaria em breve, porque eu o fazia feliz.

Nós tínhamos entrado naquele período da nossa vida que eu chamo de amor silencioso, o nosso amor platónico, puro, idealista. E praticamente inconfessável. Desde aquela nossa cena na rua de Paris, eu nunca mais tinha falado que o amava. E isso era, ao mesmo tempo, doloroso e sensual.

Nós estávamos sempre juntos. Ele era sempre um cavalheiro, ele oferecia-me o braço, abria-me as portas. Nós caminhávamos por Paris. Nós estávamos sozinhos muitas vezes, mesmo quando tinha muita gente em nossa volta, mesmo quando a maman ainda estava por perto. Nós tínhamos momentos em que achávamos que estávamos sozinhos no mundo. Ele falava-me dos seus projectos, dos contratos que iríamos assinar com a CBS, do álbum em Inglês que faríamos dentro de um ano ou dois no máximo, logo de seguida àquele que estávamos preparando, que seria explosivo.

− Tem que ser explosivo – dizia ele − Eu coloquei uma cláusula no seu contrato. Se a gente vender cem mil exemplares do próximo álbum, a CBS vai-nos dar os meios para produzir um disco em inglês.

Ele estava tão orgulhoso da sua clausula! Ele falou-me durante horas sobre isso. E dos músicos e dos autores que ele iria procurar para fabricar o seu álbum explosivo.

Algumas semanas mais tarde, voltámos a encontrar Plamondon na sua casa de Montreal, que fica perto de um belo parque. Tinha nevado. Debaixo das árvores tinha uma pista de gelo para patinar onde alguns jovens jogavam hockey. Luc tinha-nos escrito duas canções, "Lolita" e "Incognito". A letra estava escrita à mão sobre papéis amarrotados que ele deu a René.

René demorou o seu tempo. Eu sentia que Luc estava nervoso. Ele oferecia-me champanhe e canapés, ele levantava-se para arrumar um livro, para acender ou apagar uma luz, mudar um enfeite de lugar. Depois René passou-me as folhas sem uma palavra. Mas eu via, no seu olhar, que ele estava muito contente.

Quanto a mim, eu fiquei mexida. Tal como Eddy, Luc tinha explorado os meus estados de alma. O que ele tinha escrito estava tão perto de mim que eu não poderia ficar mais profundamente mexida.

Luc sentou-se no piano e, do melhor jeito que podia, tocou a melodia escrita por Jean-Alain Roussel.

[177] Eu cantei pela primeira vez a letra de "Lolita" diante de René para o provocar. Eu não estava olhando para ele mas eu tenho a certeza que cada palavra penetrava nele e o perturbava.

Todas essas noites que passei sozinha acariciando-me

Eu quero que você me dê de volta, me dê de volta

Uma por uma

Todas essas noites sozinha no meu quarto escuro

Esperando que você me viesse pegar

Você ainda me fará esperar dias, meses?

Se você não vier, será outro

E será culpa sua, se eu me arrepender por toda a minha vida

Da minha primeira noite de amor…

 

Cantando, eu escutava René falando para Luc que era isso mesmo que ele procurava para mim. E, dentro de mim, eu perguntava-me:

"Qual é o joguinho dele? Se ele acha que essa canção combina comigo é porque ele sabe a que ponto eu o amo e a que ponto eu preciso dele."

Eu li baixo o refrão. Eu estava furiosa. René tinha lido antes de mim. Ele devia saber bem o que eu estava pensando. Era estranho, como uma declaração de amor pública e impudica.

 

Lolita não é jovem demais para amar

Não é jovem demais para se entregar

Quando o desejo devora o seu corpo

Até na ponta dos dedos…

 

Ficamos silenciosos por um longo momento. A mensagem era directa. Eu não tinha mais idade de contos de fada mas idade de cair na cama com o homem que eu amava.

Alguns dias depois do meu 19º aniversário, lançámos o álbum Incognito, com grande pompa, na discoteca mais popular de Montreal onde eu fazia a minha primeira aparição pública em um ano e meio. Novo look, novo som, nova equipa, nova gravadora, nova Céline Dion…

"Eu recomeço a minha vida do zero", dizia a canção "Incognito".

Muito depressa os rumores começaram a mudar. Um dia estávamos noivos. No dia seguinte tínhamos casado em Las Vegas, depois de ter vivido em pecado durante meses. Também diziam que eu nunca teria um filho porque o René tinha feito uma vasectomia. Depois, olhe o milagre, anunciavam que eu estava grávida dele e que esperávamos gémeos.

Eu espero entender um dia essa teimosia, que não deixa de ser empolgante, que têm os tablóides, desde há 10 anos, de falarem que eu vou ter gémeos.

No Québec ninguém mais duvidava que o René e eu estávamos apaixonados. Muitas pessoas falavam que nos tinham visto beijar num avião, numa rua de Paris, num restaurante em Montreal.

Para a minha grande felicidade, a vida por vezes acaba dando razão aos rumores e aos tablóides. Como se ela tivesse prazer em imitar ou em imitar os nossos sonhos mais queridos.

O álbum Incógnito foi procurar todo o tipo de público. Como diziam os responsáveis do marketing da CBS, "nós nunca tínhamos alcançado assim tão grande". As estações de rádio rock, que sempre me tinham ignorado, e as mais familiares e as mais correctas, que sempre tinham sido fiéis, tocaram as minhas canções, tantas vezes que, durante meses eu tive dois ou três canções constantemente no top dos charts. [179] Eu falo do Québec. Fora daí tudo acontecia mais lentamente.

Na França, os programadores e especialistas do mercado achavam que duas das canções numa passariam, por causa da imagem e do som… Estranhamente, eram as canções que tiveram mais sucesso no Québec, "Incognito" e "Lolita", as duas escritas por Luc Plamondon.

René tinha-me deixado sempre fora das críticas e dos problemas, ele nunca me teria falado das dificuldades na França se não tivesse sido necessário ir a Paris gravar duas canções para as substituir. Na época, as cantoras de grande voz eram mal aceitas pelos franceses. Desde Mireille Mathieu, agora relegada ao esquecimento do show-business, a moda tinha passado para as cantoras que sussurravam. A voz de Bardot e de Zazou faziam furor.

Quando entrei em estúdio para gravar uma das canções que Eddy tinha escrito, Romano Musumarra, que tinha composto a melodia, disse-me que eu cantava demais. E ainda o consigo ouvir:

− Segure a voz, não dê tanto.

Ironicamente, a canção que eu estava gravando se chamava "Je Ne Veux Pas" ("Eu não quero"). Eu estava desapontada, frustrada e chocada.

Nunca aceitariam na França a cantora pop que eu tinha vontade de ser. Nunca aceitariam que eu tinha mudado. Desejariam que eu continuasse sendo ingénua, a menina frágil e sonhadora que eu não era mais e que eu não queria ser mais.

Eu descobri mais tarde que foi o meio artístico que se enganou. Foram os profissionais da música, com quem trabalhamos na época, que, na minha opinião, tiveram falta de audácia e imaginação.

No Canadá inglês, a situação não era melhor. Era a indiferença total. Mas isso não era surpreendente. Esse país sempre teve duas industrias do disco, dois sistemas de celebridade, duas solidões, como dizíamos na época em que, muito mais do que hoje em dia, se ignoravam totalmente. Para um artista do Québec se fazer ouvir por todo o público canadiano era preciso sorte ou um milagre.

No entanto, eu tive dois milagres. Foram eventos dos quais eu tive a sorte de participar e que me permitiram, muito rapidamente, que eu me desse a conhecer ao meio e ao público canadiano falante da língua inglesa, e a algumas pessoas importantes americanas que me iriam abrir as portas nos Estados Unidos, as grandes portas.

No começo do Verão, a CBS-Canadá teve a sua convenção anual em Estérel, um grande hotel em Laurentides, no norte de Montreal. Enquanto artista da casa, eu tinha direito a uma curta apresentação, o que chamamos showcase. De tarde, eu interpretei duas ou três canções, que foram acolhidas educadamente. Todo o mundo sabia que isso não ia longe. A maioria dos profissionais da música, vindos de Ontário e das províncias do oeste Canadense, não compreendiam as letras das minhas músicas. E mesmo se eles tivessem compreendido, mesmo que eles tivessem achando interessante, não havia lugar para as minhas canções nas suas rádios. Passavam pouquíssimas canções em Francês.

[181] A grande estrela dessa convenção era Dan Hill, com o grande sucesso do Verão "Can’t We Try", que ele cantava em duo com Rhonda Shepard. Por razões que eu ignoro, Rhonda não veio a Estérel. Desde que soube disso, René tinha contactado Hill, o manager de Hill e o presidente de CBS, e ele tinha proposto que eu cantasse a canção com Dan. Ele pediu que isso não fosse anunciado. Seria uma surpresa.

− Isso cria efeito – dizia ele.

 

Na véspera, eu tinha ensaiado com Dan. As nossas duas vozes casavam bem e a canção tinha um tom onde eu me sentia à vontade.

René tinha voltado à sua filosofia de colocar a fasquia bem alta. Durante os dois ou três dias que precederam a convenção, ele não parou de me repetir que seria um momento crucial, que eu não teria outra chance assim por muito tempo.

− Se você não faz a sala levantar, a gente volta para a estaca zero e vamos ficar lá por muito tempo.

A estaca zero era o território de Québec, onde tudo estava ganho e adquirido. Eu era uma estrela estabelecida, eu tinha vendido várias centenas de milhares de álbuns. Dia e noite as minhas canções tocavam na rádio.

Mas eu também estava intoxicada pela ideia de ir além, de ver outros públicos, conhecer outros desafios. Nós queríamos sair do Québec, o René e eu. E depois, na França eu não era mais acolhida tão bem quanto na época de "D’Amour ou D’Amitié"… os meus últimos álbuns não tinha vendido muito bem. René nunca me falava disso. Mas eu não era mais convidada regularmente para as grandes emissões de televisão, nem era o objecto de longas reportagens nas revistas parisienses.

Nós preparamos nesse Verão um grande programa de televisão para a Radio-Canadá ao mesmo tempo que preparávamos uma grande tour no Québec. Mas, sem perspectiva de sair do Québec, esses projectos pareciam-me ridículos, mesmo a gente dispondo de enormes meios técnicos e financeiros para os realizar.

Certas pessoas consideram a ambição um defeito grave. Eu não. Em todas as entrevistas que eu dava eu nunca escondi o meu grande desejo de vencer. Eu dizia claramente que o meu objectivo era ser, um dia, a maior cantora do mundo. E isso chocava umas "almas puras".

Aos olhos de muitos, essa ambição tinha algo de chocante e vulgar. Os jornalistas da media chamada "cultural" ou intelectual, olhavam-me com um sorriso de gozo. Eu não lia o que eles escreviam mas eu adivinhava, pelas suas atitudes, o que eles achavam de mim.

A minha ambição parecia-me vital e necessária e, por isso, legítima. Eu sentia-me como um animal numa jaula. Eu amava profundamente o Québec. Eu terei sempre as minhas raízes, eu nunca as negarei. Mas eu queria sair, conhecer outras coisas. O que eles chamavam de ambição, para mim era a necessidade de ar e de liberdade, de grandes espaços, a necessidade de poder fazer escolhas…

Chegada a noite, em Estérel, eu cantei esse dueto como se a minha vida dependesse disso. Com toda a raiva que tinha dentro de mim. E a sala inteira explodiu. Todos eles se levantaram para nos aplaudir, ao Dan Hill e a mim. Essa vez não era apenas para ser educado, como na noite anterior. [183] Era um público pequeno, quem sabe umas 150 pessoas mas eram todos importantes e profissionais da música no Canadá, alguns dos Estados Unidos. Agora eles sabiam, na CBS, quem eu era.

René esperou-me na saída do palco. Ele pegou-me nos seus braços, docemente. Ficámos abraçados por um longo momento no meio de todas essas pessoas que nos rodeavam: felicidade pura. Estávamos tão empolgados que só saímos da sala muito depois de todas as pessoas. Era como se não quiséssemos sair daquele lugar onde se tinha decidido o nosso futuro, porque era assim que eu encarava esse dia. René não falava. Ele nem ficava no mesmo lugar, ele caminhava ao longo e ao largo do pequeno palco onde eu tinha cantado. Ele ria. Eu esperei… mas ele não voltou a abraçar-me.

Nós sabíamos que a CBS devia respeitar, mais do que nunca, o seu compromisso de me fazer gravar um disco em Inglês. Os projectos que tínhamos, o show de televisão da Radio-Canadá e a tour no Québec apaixonavam-me de novo.

Ao longo das semanas seguintes, na Radio-Canadá, eu trabalhei com documentalistas e com o director na concepção dessa emissão. Eu descobri, com essa emissão, um grande prazer em ser actriz e de entrar em personagens diferentes. Durante as primeiras reuniões, durante horas, eles perguntaram-me o que eu tinha vontade de fazer e de ser. Eu respondia que queria fazer tudo. Eles ficaram um pouco loucos. Eu dizia:

− Eu quero fazer rir, eu quero fazer chorar, eu quero dançar, eu quero cantar rock e ópera, canções novas e velhos sucessos, em Francês e em Inglês.

Eu queria ter muitas fantasias e representar personagens como Garbo, uma Lolita, uma puritana, uma madame dos subúrbios, uma maria-rapaz, uma ingénua, uma roqueira.

De facto, o que eu queria, antes e acima de tudo, era seduzir René Angélil. O melhor jeito era ser todas as mulheres ao mesmo tempo. Quem sabe eu não dizia isso a mim mesma na época, mas isso parecia-me evidente hoje em dia.

René cuidava sempre de tudo. Ele tinha que aprovar cada uma das minhas roupas. Eu tinha preparado uma meia dúzia, com os documentalistas, com o director, com as costureiras. Um dia, eu fiz para ele um desfile de moda num local sem alma, iluminado por néon, no segundo ou terceiro andar do subsolo da Radio-Canada. Eu tinha duas roupas muito ousadas que eu amaria usar mas que ele recusou logo. Para ele, isso chocaria as pessoas. A emissão que nós estávamos preparando estava destinada ao grande público familiar do domingo à noite.

− Não é necessário chocar quando se tem uma voz como a sua.

Eu fiquei desapontada. Eu queria ter chocado um pouco. O que me consolava era que ele me tinha visto. E eu não o tinha deixado indiferente. Uma menina sabe ver essas coisas.

 

O álbum Incognito ainda não vendia no Canadá onde se fala inglês. Mas estava indo tão bem no Québec que aparecia no topo das vendas do Canadá e, sendo assim, merecia o prémio Juno para o álbum mais vendido do país. [185] Mesmo se praticamente ninguém o tinha comprado fora do Québec, da zona francesa de Ontário e de Acadie. Eu então teria direito a uma aparição na gala dos Juno, o evento mediático mais importante da música canadiana. Eu seria então nesse Outono, em Toronto, a franco-canadiana de serviço.

A tradição exigia que eu interpretasse o meu maior sucesso. Eu poderia escolher entre "Incognito", "Lolita", "Jours De Fièvre" ou "On Traverse Un Miroir", que tinha ficado durante meses no top. Todos os anos um cantor ou uma cantora do Québec ia interpretar a sua canção de três minutos em francês na gala dos Junos. Era uma perda de tempo. Todo o mundo sabia disso. No Québec ninguém assistia à gala dos Junos. Os canadianos que não falam francês não escutam as canções em francês da gala.

Desde o momento em que nos chegou o convite, René informou os organizadores da gala que eu cantaria uma canção em Inglês. Senão não iria. E eles tinham que aceitar.

Nós primeiro pensamos num clássico. É mais fácil comover o grande público com uma melodia que ele conhece. Eu pensava em "The Way We Were" ou em "Over the Rainbow", ou mesmo em "Boogie Woogie Chatanooga Choo Choo", que eu esperava colocar no concerto da minha tour.

Mas René meteu na cabeça que eu devia cantar uma canção original, que ninguém conhecesse.

- Lembre-se, quando Eddy te escutou pela primeira vez… Foi por você ter as suas próprias canções que ele pode perceber as suas capacidades… Você precisa de uma canção nova, e uma canção que te permita mostrar o que você sabe fazer.

Apenas dois dias antes do evento, Vito Luprano, director artístico da CBS, nos propôs gravar "Have a Heart", a versão de "Partout Je Te Vois" do meu álbum Incognito. A música, assinada por Aldo Nova, muito física, muito espectacular, muito exigente, tinha a grande vantagem de explorar todo o registo da minha voz…

Partimos para Toronto num estado de super empolgação que era quase insuportável. Mais uma vez, iríamos jogar o tudo por tudo. Agora não era apenas os profissionais da música que eu devia enfrentar, como em Esterel seis meses antes, mas sim o grande público canadiano e, acima de tudo, a media canadiana, que dava sempre grande atenção à gala dos Juno. Das suas reacções dependia o nosso futuro.

Eu estava fora de mim quando saí do palco. Como sempre. Eu continuo cantando quando entro nos bastidores, quando entro no meu camarim, quando subo para a limusina, como se o fogo dentro de mim não se pudesse apagar.

No dia seguinte, René acordou quase de madrugada para procurar os jornais. Ele esperou pacientemente que eu saísse do meu quarto para me dizer que eu tinha triunfado. Ele tinha tido tempo de saber de cor os artigos em todos os jornais que tinha encontrado. Ele tinha mesmo ligado para Halifax, Montreal e para Vancouver para saber as reacções por lá.

− Você roubou o show! – repetia ele.

Durante a tarde, ele se encontrou com os patrões da CBS.  [187] Para eles também René elevou a fasquia. Ele pediu para investirem dez vezes mais do que previsto no meu álbum em Inglês que eles deviam produzir. E ele exigiu ter como produtor David Foster, o menino prodígio da música nos Estados Unidos.

- Quanto ao dinheiro, não há problema. – disseram os patrões da CBS – Quanto a David Foster, é preciso que você e Céline encontrem uma forma de se aproximar dele e de o interessar.

Foster não era, quem sabe, muito conhecido para o grande público, mas no meio do show-business, ele era uma estrela. Originário de Bristish Columbia, ele tinha-se estabelecido em Los Angeles onde, já nos anos 80, ele tinha trabalhado com os maiores: Barbra Streisand, Nathalie Cole, Frank Sinatra, Neil Diamond e Paul McCartney. Ele escrevia as letras, as músicas, fazia os arranjos, produzia, realizava com eles álbuns de grande qualidade.

− Ele é o melhor. – dizia René – É dele que precisamos.

Mas isso não era fácil. Como nos aproximarmos de um artista da envergadura de David Foster, que já vivia no planeta Hollywood?

− Vamos achar um jeito.

 

Enquanto esperávamos por David Foster e a bênção dos grandes patrões da CBS-Internacional, continuávamos preparando o nosso show "Incognito". Eu diria que, de todos os concertos que fiz na minha carreira, esse foi o que foi preparado durante mais tempo e mais minuciosamente. Nós dispúnhamos de uma máquina poderosa - 15 músicos, uma dezena de técnicos, iluminadores, engenheiros de som, etc, um roteirista, um decorador, um escritor para os textos de encadeamento, muitas roupas… E a presença incomparável de Mego como chefe de orquestra.

Nós encontrámos-nos uma vez, ele e eu, no local dos ensaios no Place Des Arts. Depois de 10 minutos, nós sabíamos que tínhamos sido feitos para nos entendermos. Eu reencontrava com ele o prazer que tinha tido antigamente ao fazer música com os meus irmãos e irmãs. René teve que nos controlar no começo. A cada ensaio a gente entrava em improvisações completamente dementes, boogie-woogie, rock and roll… Além do seu lado de artista e de louco, Mego tem muito rigor, sentido de organização e de liderança. Ele também é um excelente homem de show, muito engraçado, cheio de humor. Estar no palco com ele sempre foi para mim um enorme prazer.

Desde esse dia (pouco antes do Natal de 1987) e até eu entrar nas minhas férias em Janeiro de 2000, Mego esteve em todos os concertos que eu dei, sem excepção, bom tempo ou mau tempo.

Suzanne Gingue, a namorada de Mego na época, fez todo esse caminho com a gente, como directora da tour. Ela cuidava de tudo, desde as reservas dos nossos quartos de hotel até à arrumação do meu camarim, a montagem das decorações, a disposição dos meus estados de alma…

Durante mais de dez anos, como a pessoa que me vestia, como minha confidente e como minha amiga, ela fez parte das pessoas que ficavam mais perto de mim. Suzanne é viciada no trabalho. A gente dizia que ela nunca dormia nem comia. Um puro espírito.

As recordações que eu tenho da tour "Incognito" são de risadas loucas. Desde o nosso começo, em Abitibi, como tínhamos começado na tour anterior, a gente sabia que tínhamos um bom produto e um público já conquistado.

 [189] Quando eu falo de risadas loucas, não era apenas entre nós mas também com o público. Eu fazia imitações (Fabienne Thibault, Julien Clerc, Michael Jackson, Mireille Mathieu) que funcionavam mais do que bem. Também me tinham escrito monólogos cómicos e muitos números que eu fazia com Mego. Na maior parte do tempo, era à custa das minhas próprias besteiras que eu fazia rir a multidão.

Alguns anos antes, René e eu tínhamos sido recebidos pelo Papa. Tínhamos ido a Castel Gandolfo, onde se situava a casa de Verão e a fazenda do Santo Padre. Diante dos jornalistas que nos acompanhavam eu tive a ideia de tirar leite às vacas do Papa e de beber alguns goles de leite cru. O relato desse evento na media de Québec tinha desencadeado uma tempestade de risada. Não tinha sido esse o objectivo, tenho que dizer. Mas, nesses casos, o melhor é enfrentar a situação. No meu show "Incognito" eu recordava a minha "degustação do leite papal", que ainda desencadeava muitas risadas. Mas, dessa vez, sem maldade.

Eu falava também que agora fazia parte das Choronas Anónimas. As CA, como os Alcoólicos Anônimos (AA) reuniam-se regularmente para "aprender a segurar".

− Na próxima semana vai fazer um ano que eu não choro. – dizia eu – Eu estou bem melhor, controlo-me, eu acho que estou a caminho da cura. A prova: eu vou agora cantar sem problemas uma das canções mais tristes do meu repertório, "Mon Ami M’a Quitté", que me fez chorar tanto antigamente.

Tudo era escrito, não apenas a música e as letras das canções mas também os textos de encadeamento, os passos de dança, cada gesto, cada sorriso, etc. Dava segurança e, ao mesmo tempo, era constrangedor, quase sufocante. E sentia-me, em alguns dias, como se estivesse acorrentada. Mas foi com "Incognito" que eu aprendi de verdade a dominar um palco e compreendi que esse era um lugar de poder. Eu aprendi, noite após noite, a reagir com a multidão, a dominar as minhas emoções… e as deles.

Foi durante essa tour que comecei a praticar seriamente aquilo que eu chamo "os meus pequenos rituais". Desde esse tempo, eu montei uma verdadeira colecção. Eu não me lembro direito como isso começou. Mas todos chegaram naturalmente, mesmo sendo completamente irracionais. Várias vezes nós juntávamos à nossa rotina um pequeno gesto ou olhar, um detalhe por vezes quase nem visível. Uma vez adicionados, esses detalhes passavam a ter uma importância absoluta. No fim, as nossas cerimónias duravam vários minutos.

Antes de levantar as cortinas, por exemplo, nós tínhamos um pequeno jogo, Mego, Suzanne e eu. Quando tudo estava pronto, antes do director nos dar o sinal, antes da sala ficar na escuridão, nós fazíamos juntos uma espécie de dança encantatória. Depois eu acompanhava Mego até no seu teclado, eu fingia tocar um acorde ou desligar um dos fios que o ligavam aos amplificadores. Mego fazia um ar catastrófico, imitando a raiva e fazia-me sinal para desaparecer. [191] Depois eu passava pelo palco todo, colocando o meu polegar direito sobre o polegar direito de cada um dos meus músicos e coristas.

Eu encontrava Suzanne, debaixo do palco. Ela dava-me o meu microfone. Antes de pegar nele, eu apertava o braço dela três vezes. Depois eu voltava-me para o René. Ele aproximava-se de mim. Ele beijava o meu rosto, sempre primeiro do lado esquerdo. Ele colocava as mãos sobre os meus ombros, abanava-me muito docemente, olhando-me directamente nos olhos, com um ar muito sério. Depois ele fazia-me dar meia volta, colocava-me de frente para as escadas que levavam ao palco e empurrava-me docemente:

− Ok, vai. É todo seu. Vai.

Com o tempo, os rituais evoluíram. Mas tornaram-se incontornáveis. São jogos mas, ao mesmo tempo, é sério, é essencial. Eu preciso, especialmente em tour, quando todos os dias tudo muda – o camarim, o quarto de hotel, o palco, a multidão - de me apoiar em qualquer coisa permanente. Nesses rituais e nesses gestos repetidos rigorosamente, eu achava alguma coisa para me dar confiança.

Eu guardei durante muito tempo comigo, num pequeno envelope de plástico transparente no fundo da minha bolsa, uma moeda que eu tinha achado há anos num palco em Trois-Rivières. Como sempre, depois da minha segunda canção, eu tinha falado com as pessoas, para agradecer por terem vindo, para dizer que os amava, que estava feliz, quando me apercebi que na moeda brilhava no limite do palco. Era a face da coroa. Era o castor, o símbolo do Canadá, que enfeita a moeda de cinco centavos.

Quando a cortina desceu, eu debrucei-me para pegar nela. Mas René tinha-me metido na cabeça que nunca devemos pegar numa moeda pela face coroa. Apenas em cara.

− Não toque na coroa. Dá azar.

Eu peguei mesmo assim e lancei de novo um pouco mais longe, duas vezes, até aparecer a cara, com o rosto da Rainha de Inglaterra. Então eu peguei nela e guardei.

Eu acredito que temos que criar a nossa sorte. E, quanto a isso, como em muitas outras coisas, só estamos bem servidos por nós mesmos.

Eu sei hoje em dia que os rituais, os amuletos, mesmo as orações não nos podem proteger sempre ou proteger quem amamos. O azar bate onde ele quer. E, quando ele chega, o ritual não é suficiente. Temos que agir. Temos que lutar.

 

Uma noite, ao chegar a casa, eu encontrei a minha mãe tão pálida como assustava. Ela tinha a respiração curta, o rosto cansado e, o que me preocupava mais, ela estava sentada, ela que sempre está de pé, correndo de um lado para o outro. O meu pai estava desorientado. Contrariamente à minha mãe e a mim, ele fica, nesse tipo de situações, incapaz de tomar uma decisão. Ele não conseguia convencer a minha mãe, uma mulher muito autoritária, hiperactiva, que se ocupa de todas as decisões e que não aceita ordens de ninguém. Ela continuava dizendo que era cansaço, que ia passar. Eu sabia, só de a ver e de escutar a sua voz fraca, que o seu estado era sério.

[193] Naqueles vários filmes que eu fazia na minha cabeça, eu tinha imaginado que a minha mãe morria. Eu via-me do lado do seu caixão, completamente paralisada pela dor, desfeita, afundada, evidentemente incapaz de reagir.

Mas, diante aquela realidade, eu agi de outra forma, sem pensar, com um sangue frio e uma autoridade que me assustaram.

Eu liguei para o doutor Gaston Choquette, que René conhecia. Eu marquei para a minha mãe o encontrar na tarde seguinte no Instituto de Cardiologia de Montreal. O pior foi para convencê-la.

− Eu tenho mais de 60 anos, eu sei o que tenho a fazer. Se eu não tenho vontade de ver um médico, eu não vou.

À parte do doutor Émile McDuff, que assistiu ao nascimento dos 10 últimos filhos, e que se tinha tornado um membro da família, a minha mãe nunca tinha tido muito respeito pelos médicos. Ela não os considera sábios infalíveis, diante dos quais temos que fazer uma vénia. A minha mãe não faz vénias a ninguém.

Mesmo assim, eu não compreendia a hesitação dela, até que o meu pai me disse que ela tinha que tomar conta do filho de uma das minhas irmãs no dia seguinte.

Cinco minutos mais tarde eu já tinha encontrado um babá. E tinha convencido René a partir um dia mais tarde para Chicoutimi, onde eu devia cantar dois dias mais tarde. E eu fui com ela ao médico, que diagnosticou uma insuficiência cardíaca. Ele hospitalizou-a de urgência e operou-a na manhã seguinte.

Algumas horas mais tarde eu subi ao palco em Chicoutimi. Eu sabia que a maman estava fora de perigo. E recomeçámos a tour.

Quando voltámos a Montreal, depois de ter feito a tour no Québec, o nosso show, letras, músicas e rituais estavam sob controle. Reinava no nosso grupo uma enorme cumplicidade. A força estava com a gente. Era a felicidade, o triunfo. Todos nós sentíamos isso.

− Fale disso. – dizia-me René, quando comecei a fazer a promoção do show em Montreal – Não tenha vergonha de dizer que temos um bom show.

Eu não me privei de falar. Eu detesto a arrogância mas também não gosto de falsa modéstia. Eu estava contente com o meu show e dizia isso na televisão, na rádio e nos jornais. Era o jeito de René, elevar a fasquia. Tínhamos que ter confiança em nós mesmos e na nossa sorte.

Eu acho que os intelectuais ainda não gostavam de mim. Eles acusavam-me de ser comercial, o que, por outras palavras, significa que eu estava tendo sucesso e gostando disso. Mas eu viajava na sala, sempre cheia até arrebentar, e via pessoas de todas as idades. Cada noite, depois do concerto, eu recebia no meu camarim pessoas importantes do mundo do show-business, mas também do desporto, da política e dos negócios.

Uma noite, Carol Reynolds, responsável pelos programas da rede inglesa da Radio-Canadá, estava entre eles, acolhedora e sorridente. Ela esperou que todo o mundo saísse do meu camarim para me vir cumprimentar e me dizer o quanto tinha amado o meu show. Fomos os três num restaurante, eu, ela e o René. Foi um restaurante italiano, na rua Saint-Denis, em Montreal. Ela queria produzir um programa sobre mim para o público do Canadá Inglês. [195] Eu falei do projecto do meu álbum em Inglês e do desejo que tínhamos de trabalhar com David Foster.

− David? Eu o conheço bem. Eu devo-o encontrar na semana que vem em Los Angeles. Se você quiser, eu falarei de você para ele.

Se eu queria? E como!

Carol saiu com o álbum Incognito e uma fita de vídeo com a minha interpretação de Have a Heart no Juno.

− Eu tenho a certeza que ele vai adorar o que você faz – disse-me ela − Mas ele é muito ocupado. Quem sabe se ele não estará disponível nos próximos meses.

Pouco depois, alguns dias antes do meu 20º aniversário, nós estávamos fazendo um teste de som no teatro Saint-Denis quando eu vi René aproximando-se de mim quase correndo. Ele aproximou-se de mim e segredou-me ao ouvido:

− Eu acabei de falar com David Foster. Ele escutou Incognito. Você sabe o que ele me disse? Que você tem tudo para vencer nos Estados Unidos. Ele disse que você tem o fator x, o que faz as grandes estrelas. E ele quer trabalhar com a gente.

− Quando?

− Não antes do Outono.

− Mas o Outono é daqui a seis meses!

− Seis meses passam depressa, você vai ver.

Depois ele foi murmurar o seu segredo a Mego e a Suzanne. Ao telefone, depois, aos seus amigos, a Ben, a Marc…

Eu queria ter paciência. Mas eu achava que já tinha paciência demais. No fogo da acção, o meu amor não tinha progredido. René era carinhoso comigo, muito doce. Mas eu acho que ele sabia me prever. Ele evitava ficar tempo demais sozinho comigo. Ele sabia que não me escaparia. Eu também sabia. Era uma questão de tempo, algumas semanas, alguns dias. Era quase intolerável. Mas maravilhoso ao mesmo tempo.

 

Depois de termos confessado o nosso amor, René e eu falamos muito desse período da nossa vida em que nos amávamos frtemente mas não dizíamos.

– Lembra do dia em que me veio pegar em Duvernay? E o choque que você teve quando me viu?

− E você se lembra do momento tão doce que passamos nos braços um do outro, em Estérel, quando você cantou com Dan Hill para o pessoal da CBS?

− Sabe, eu nunca esqueci aquela noite deprimente no restaurante, em Paris, quando você decidiu afastar-se de mim.

− Sabia que eu nunca vou esquecer o seu desfile de moda na Radio-Canada? Eu poderia descrever cada uma das roupas que você usou.

− Mesmo as que você achava bastante ousadas para a televisão?

− Eu nunca me vou esquecer daquela vez que você dormiu no meu ombro no avião que nos trazia de Paris.

− Mas eu não estava dormindo no seu ombro, meu amor. Eu estava fingindo.

Eu tinha deixado a minha cabeça escorregar contra o seu ombro, porque eu sentia-me bem e porque esperava, quem sabe, poder seduzi-lo. [197] Eu olhava as suas mãos que me excitavam infinitamente, mãos fortes com as unhas bem arrumadas. E ele cheirava tão bem, tão fresco. Eu sentia um desejo furioso de pegar a mão dele e de colocar os meus lábios sobre ela…

− Se eu soubesse… − ele disse-me.

− Você não teria feito nada. Você sabia que eu te amava há muito tempo e não fez nada.

Eu, contrariamente a ele, não tinha sombra de hesitação. Nesse dia, no avião que nos trazia de Paris, eu sabia que estava apaixonada por ele para sempre e que qualquer coisa teria que acontecer mais cedo ou mais tarde… Eu não tinha experiência nenhuma (apenas teoria) sobre as coisas do amor mas eu estava muito determinada.

René tinha muita experiência mas ele se comportava como um adolescente assustado, cem vezes mais intimidado do que se ele estivesse perante uma mulher da sua idade. Ele tinha medo do que as pessoas diriam, medo de me fazer mal, medo que eu, aos 30 anos, estivesse com um homem de 56.

Mas eu sabia que ele estava "preso". E eu esperei pela hora certa. Ela chegou finalmente.

Foi em Dublin, no inesquecível dia 30 de Abril de 1988, na noite do concurso da Eurovisão onde, como Canadiana, eu representei a Suíça! Com uma canção escrita por uma Italiana e por um Turco.

A minha mãe tinha sido operada ao coração algumas semanas antes. Eu sabia que ela precisava de repouso. Eu então recusei que ela me acompanhasse em tour, especialmente por uma rápida viagem de ida e volta para o outro lado do oceano.

Nós vivemos nesse dia um suspense inacreditável. Até ao último momento, nós tínhamos acreditado que o primeiro prémio iria para o representante de Inglaterra. Eu lembro-me que a sua canção se chamava "Go", o meu número da sorte em Japonês. E eu via nisso um mau presságio. E mais, eu não gostava da canção que eu tinha para interpretar. Eu a achava muito pomposa.

Depois da minha apresentação eu fiquei nos bastidores com os outros concorrentes. Nós víamos o director de TV e o director do palco explicando ao Inglês como entrar no palco quando anunciassem o nome do vencedor. Ele parecia ter certeza que iria vencer. Eu estava resignada. Eu apenas desejava uma coisa: ficar com René, que estava desfeito. Nós iríamos viver juntos a nossa primeira derrota. Eu faria disso uma vitória pessoal. Eu esconderia as minhas lágrimas e o consolaria como uma mãe…

Mas os juízes de dois ou três países ainda não se tinham pronunciado. Eles deram-me a vitória por um ponto.

Quando fui pegar o meu prémio, eu desfiz-me em lágrimas diante do público do Simmonscourt e de centenas de milhões de Europeus que assistiam à gala pela televisão. Eu pronunciei agradecimentos mais ou menos coerentes e saí do palco quase correndo. Quando encontrei René, eu joguei-me nos seus braços e, ainda chorando, eu apertei-o fortemente e beijei-o no pescoço. Eu estava no máximo da felicidade.

Ele deixou acontecer. Ele estava rindo.

Como sempre, ele acompanhou-me ao meu quarto e começou a relatar-me o dia que tínhamos passado juntos, o grande medo que ele tinha passado. [199] Ele lembrou-me da importância dessa vitória, que me asseguraria, segundo ele, uma boa exposição na Europa. Ele repetiu-me, pela centésima vez em duas semanas, que a gala da Eurovision era um dos eventos mais assistidos no mundo, depois dos Jogos Olímpicos e da cerimónia dos Óscares. Ele falou-me também de outros participantes, aqueles que tinham cantado bem, daqueles que não iriam longe. E eu não sei mais do que ele falou. Eu nem estava escutando bem. Eu deixava-me embalar pela voz dele.

Eu estava sentada na cabeceira da cama, com as pernas dobradas debaixo das cobertas. Estava feliz por estar sozinha com o homem que eu amava. E tinha um plano muito preciso.

Eu percebi que ele estava calado, que o silêncio nos envolvia. Ele continuava lá, sentado sobre o braço da poltrona, bem perto da minha cama, sem dizer uma palavra. Eu olhei para ele com o meu sorriso de mulher. Eu acho que ele percebeu nesse momento que eu não tinha escutado nada durante muito tempo e que estava pensando em outras coisas. Ele baixou os olhos. Eu sentia que tinha mexido com ele, directamente no coração. Ele levantou-se, recuou para a porta com dois ou três passos, como para se escapar de mim, e desejou-me boa noite.

Eu não podia deixar essa oportunidade passar.

Todas as noites desde a nossa primeira tour, três anos antes, ele desejava-me sempre boa noite e beijava-me no rosto duas vezes. Desde há alguns meses, especialmente durante a tour "Incognito", eu tinha a impressão que os seus beijos escorregavam todos os dias alguns milímetros para mais perto dos meus lábios, até que algumas vezes as nossas bocas se roçaram.

E agora, nessa noite de glória e de vitória, ele ia sair sem sequer me ter beijado!

Ele já tinha a porta aberta. Eu saí da cama, eu aproximei-me dele, eu encostei-me a ele.

− Você ainda não me beijou, René Angélil.

Eu peguei a cabeça dele entre as minhas mãos e beijei-o na boca. Pendurei-me no seu pescoço… ele apertou-me muito forte nos seus braços, a porta ainda aberta. Depois ele desfez o meu abraço. Ele fugiu para o seu quarto. Eu fiquei um momento, sozinha, o coração batendo, tremendo, sem ar.

Eu sabia que tinha vencido. A fuga dele tinha sido uma confissão.

Eu peguei o telefone. Eu liguei para o quarto para lhe dizer:

− Se você não voltar aqui imediatamente eu vou bater na sua porta.

Mas ele não atendia.

Foi ele quem me ligou alguns minutos mais tarde, do hall do hotel, para me perguntar se eu estava bem. E então ele disse-me:

− Se você quiser de verdade, eu serei o primeiro.

E eu respondi:

− Você será o primeiro. E o único.

 

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