Ser a artista de abertura de um
concerto é uma experiencia muito formativa e necessária.
Toda a gente sabe disso. É também uma experiência penosa que
exige muita energia e uma boa dose de humildade. O público
veio ver e escutar a grande estrela que tem o seu nome no
alto do cartaz. Como podem estar eles interessados numa
pequena cantora que procura chamar as suas atenções com as
suas baladas sentimentais, e que fala, entre as canções,
sobre a sua infância, os seus sonhos.
Por vezes a audiência não escuta
nada, eles levantam-se, eles falam, eles riem, eles lêem um
programa ou, simplesmente, não estão presentes. Eles só
entram quando eu sair do palco e quando começar o verdadeiro
concerto pelo qual eles pagaram.
É uma dura lição!
No Outono dos meus 16 anos, eu
fiz, durante 5 semanas, a primeira parte do concerto de
Patrick Sébastien no Olympia. Eu já tinha uma boa
experiência no palco e não era desconhecida na França.
Muitas das minhas canções tinham tocado muito nas rádios e
eu tinha sido convidada para várias emissões de televisão
importantes, mas eu não era ainda o que se chama uma estrela
estabelecida. E eu ainda não tinha feito das minhas provas
sobre um palco.
No Québec, pelo contrário, eu já
tinha conseguido. Nas últimas semanas eu tinha feito dois
grandes concertos ao ar livre, diante dezenas de milhares de
pessoas.
A primeira foi no Vieux-Port de
Québec, onde festejávamos o 450º aniversário da descoberta
do Canadá por Jacques Cartier. Eu tinha cantado, numa noite
de Agosto, com mais de 30 músicos e coristas
extraordinários. Fazia bom tempo. Era uma noite mágica,
magnífica, que quase se tornou num drama, o drama mais
engraçado que possamos imaginar.
Quando eu avancei para o palco
flutuante, eu vi que milhões de besouros excitados pela luz
voavam em volta dos músicos. Depois, alguns vieram para os
meus cabelos, o meu nariz, as minhas orelhas e nos meus
olhos e dentro da minha boca. Eu via as minhas irmã,
Claudette, Denise, Pauline, Ghislaine, Dada, Manon, sentadas
na primeira fila, assustadas e, ao mesmo tempo, morrendo de
rir quando me viam engolir penosamente… e continuar a canção
como se nada tivesse acontecido.
Eu tinha mais dificuldade em
segurar a vontade de rir do que a minha náusea. E eu não
podia mais olhar as minhas irmãs, com medo de gargalhar se
os meus olhos se cruzassem com os de Ghislaine ou com os de
Dada, com quem eu sempre adorei rir.
[139] Duas
ou três semanas mais tarde, em Setembro, quando o Papa veio
visitar Montreal, eu cantei no Estádio Olímpico, cheio até
arrebentar. Diante das câmaras de televisão do Canadá, dos
Estados Unidos, da França. Mais uma vez, quase vivemos um
drama. E tivemos direito a um verdadeiro milagre.
Era o fim da tarde de um dia
ventoso e chuvoso. Uma hora antes das cerimónias, os
meteorologistas previam o pior. Mas quando o apresentador,
Michel Jasmin, aquele que me tinha recebido na televisão
pela primeira vez, avançou para o palco, o céu mudou
bruscamente. Uma última rajada de vento afastou as nuvens.
E, no momento em que Michel pronunciava o meu nome, o sol
encheu o estádio. Eu nem tinha aberto a boca quando a
multidão começou a gritar e a aplaudir.
Enquanto eu cantava "Une Colombe",
uma canção escrita para a circunstância, dois mil jovens que
seguravam uma bandeirola branca desenharam no estádio uma
gigantesca pomba que mexia as asas… Foi magnífico,
grandioso, muito comovente. Eu terminei a minha canção
chorando muito, por causa do sol, do Papa, da pomba e da
multidão.
Eu não sabia ainda segurar as
lágrimas, apesar de todos os meus esforços. Mas eu conseguia
mesmo chorar enquanto cantava (ou cantar enquanto chorava)
sem que a minha voz fosse afectada e começasse a tremer e a
quebrar. Isso já era um progresso.
Para mim, esses grandes
concertos do Vieux-Port e do Estádio Olímpico de Montreal
não representavam grandes desafios. Eu tinha tido muito medo
antes de subir no palco, mas eu já sabia que tinha vencido.
Depois de alguns minutos o medo desaparecia e eu sentia-me
muito bem.
No Olympia, pelo contrário, era
outro assunto. Eu tinha que fazer uma prova.
Patrick Sébastien e eu
pertencíamos a mundos diferentes e a dois públicos que não
se cruzavam, que não tinham os mesmos gostos nem a mesma
idade, nada em comum.
Patrick contava histórias
picantes a um auditório barulhento, muito gritador e que
gosta de rir, que veio para o Olympia para se divertir. Isso
não tinha nada a ver comigo. Eu gostava de fazer as pessoas
rir mas não era do mesmo jeito do que ele.
René tinha-me avisado. E, como
sempre, ele aproveitou para elevar a fasquia o mais alto
possível.
− Evidentemente que esse não é o
seu público. Mas você pode ter certeza que, nessa sala, vai
ter algumas pessoas que terão vontade de te escutar, que vão
amar o que você faz e que vão te ajudar. Mas não perca tempo
com esses. Cante, acima de tudo, para os que não estão te
escutando, para os que não querem saber de você. Vai pegar
eles um a um, se for necessário.
Eu nunca tinha lutado por nada
na vida. Muito menos pela atenção dos outros. Pelo
contrário. Mas, por causa
de René, porque ele queria, eu lutei todas as noites. Eu
quase fiquei sem voz do esforço que fiz. Era violento, era
duro, era esgotante.
[141] Mas
cada noite era uma vitória. Não necessariamente na audiência
mas em mim, nos meus medos.
Quando eu era pequena o meu pai
dizia-nos:
− Faz aquilo que te assusta.
Começa por fazer o que tens menos vontade de fazer.
Eu avançava para os meus medos,
eu cantava para aqueles e aquelas que não me queriam escutar
e que me mostravam isso claramente, falando alto e forte,
até que Patrick Sébastien chegasse para tomar o meu lugar.
Mas aconteceu em algumas noites
eu conseguir tocar as pessoas de verdade. Essas reviravoltas
surpresa tornaram-se em alguns dos momentos mais lindos que
vivi no palco. Acontecia em poucos segundos. Do nada, as
pessoas calavam-se e escutavam, imóveis, fascinadas. Era
como a bonança depois da tempestade. E quando a minha canção
acabava, eles aplaudiam e gritavam "bravo". Eles tinham
ficado verdadeiramente encantados e emocionados pela jovem
cantora do Canadá? Ou estavam impressionados pela sua
determinação, pela sua audácia e pela sua inocência? Pouco
importa. Eles sabiam agora que eu existia. E era isso que
contava para mim.
Eles nunca iam ao delírio. Mas
pelo menos eu sabia que, durante um ou dois minutos, tinha
colocado todo o mundo no mesmo comprimento de onda.
Eu provavelmente nunca teria
conseguido isso, nem sequer teria tentado com tanta força e
determinação se o René não estivesse estado na sala, lá em
baixo, em algum lugar na escuridão. Ele tinha-me repetido
várias vezes que não devemos pregar a quem está convertido
mas era para ele, acima de tudo e todos, que eu cantava e
lutava contra aquela sala e contra os meus medos.
Esses concertos no Olympia em
primeira parte ficaram como uma experiência inesquecível.
Não marcaram uma mudança na minha carreira mas, durante
cinco semanas, eu mudei profundamente, eu aprendi e,
sobretudo, eu entendi que tinha crescido.
Um ano antes, quando
preparávamos "Les Chemins de Ma Maison", o Eddy tinha-me
dito que esse seria o último vestígio que eu deixaria da
minha infância. E eu senti, nesse Outono, em Paris, enquanto
eu lutava contra um público indiferente a mim no Olympia,
que a minha infância estava, de facto, muito longe de mim.
Eu tinha-me tornado uma jovem
mulher capaz de jogar no duro, de exercer um controle cada
vez maior sobre as minhas emoções, capaz de, acima de tudo,
não renunciar à realização, de não voltar as costas à glória
e ao sucesso. Isso não é fácil. Aceitar o nosso sucesso é,
de uma certa forma, aceitar deixar para trás quem amamos, os
irmãos e as irmãs que não tiveram a sorte e os meios de
chegar aqui.
Eu só tinha 16 anos e não
entendia correctamente esse medo de causar dor, de trair ou
pior, de parecer uma metida, mas eu sentia esse medo. E eu
sabia, graças ao René, que eu não me devia deixar levar por
esse medo, que eu devia vencer esse medo, como todos os
outros.
Eu tinha que me fortalecer. Como
um lutador de boxe, como qualquer atleta que fica musculoso,
que trabalha para desenvolver a resistência. Ao mesmo tempo,
eu tinha que continuar a ser uma artista sensível, capaz de
sentir e de levar a emoção a uma canção. E descobri acima de
tudo que tinha que lutar, não apenas no palco mas também na
vida.
[143] Mesmo
debaixo dos meus olhos estava o exemplo de Karine, que eu
visitava quando estava em Montreal. Ela lutava também. Todos
os dias. Desesperadamente. E, apesar dos cuidados de Liette,
ela estava cada vez mais doente e ameaçada, condenada todos
os dias pela doença. Foi ela que inspirou Eddy a escrever a
canção que dava título ao meu álbum mais recente, Mélanie.
Eu devo muito a Karine. Mesmo
sem querer, ela abriu os meus olhos para as realidades
tristes da vida. Nessa época eu nunca lia os jornais, eu
nunca assistia televisão. Eu vivia no mundo fechado do
show-business. Karine lembrou-me constantemente, apenas pela
sua presença, que existe sofrimento, dor, injustiça nesse
mundo. E há um mistério sem solução que, em alguns dias, me
deixava muito perturbada e para o qual eu nunca achava
resposta:
"Porquê ela e não eu? Porque é
que a vida e o mundo têm que ser injustos?"
Eu nunca tive resposta. Eu
trabalhava muito. "Não temos nada sem fazer nada", dizia a
minha mãe. Eu estava de acordo com ela, com certeza. Mas eu
vencia em todo o lugar, o tempo todo. Eu não conhecia o amor
como eu tanto queria mas eu tinha saúde, fortuna, glória.
Regularmente, uma das minhas canções subia ao top do Québec.
O meu começo de carreira na França era mais do que
promissor. Pessoas competentes cuidavam de mim,
aconselhavam-me. Eu tinha um fã-clube, roupas de luxo, eu
viajava, eu cantava, eu realizava todos os meus sonhos um a
um…
Karine vivia uma guerra perdida,
ela sabia. Todos nós sabíamos. Por maiores que fossem os
seus e os nossos esforços, ela não teria nada. Ou quase
nada. Apenas uma vida muito curta com sofrimentos
constantes. A única esperança, bem pequena, era a pesquisa
que os cientistas faziam.
Desde há alguns anos que eu era
a madrinha da campanha de financiamento da Associação da
Fibrose Quística do Québec. Como todos os membros da minha
família, eu seguia de perto as descobertas dos
investigadores, graças aos fundos angariados pelas
associações de todo o mundo. Mas a esperança média de vida
de uma criança com fibrose quística, hoje de 30 anos, na
época, no meio dos anos 80, era de 15 anos.
Karine, com 8 anos, já tinha
vivido metade da sua vida, estava a meio caminho da sua
passagem na terra. E ela continuava lutando com todas as
suas forças. Liette também, como se elas acreditassem que
poderiam vencer a doença.
Nesse verão eu conheci a atleta
profissional Sylvie Bernier, que tinha ganho a medalha de
ouro nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, na modalidade de
salto ornamental. Nós não nos vimos mais do que meia dúzia
de vezes e por pouco tempo mas a conivência e a cumplicidade
entre nós eram fortes. Eu tinha a impressão que nos
conhecíamos desde sempre. Eu achava que tínhamos semelhanças
assustadoras, não fisicamente mas na alma, nós éramos como
irmãs, a nossa cumplicidade era forte.
[145] Ela
tinha os olhos azuis que nem os de Karine. Como Karine, ela
era muito meiga com as pessoas. E muito dura com ela mesma,
muito disciplinada, muito forte.
Sylvie era, para a sua idade,
uma mulher madura e muito confiante, muito reflectida. Ela
conhecia os seus meios, as suas potencialidades e os seus
limites. Ela tinha, como todos os outros atletas de elite,
uma força de carácter e um poder de concentração fora do
comum. Ela também lutou todos os dias, durante anos. Sem
nunca desistir. Como Karine. Mas ela tinha subido no lugar
mais alto do pódio. Ela tinha vencido. E Karine sonhava
conhecê-la.
Juntas nós falamos dos nossos
treinos, dos regimes alimentares que seguíamos, dos nossos
truques para lutar contra o medo, preparar um show ou uma
prova. E eu entendia, e acho que ela também, que o jeito
como vivíamos as nossas profissões tinham muito em comum. Eu
descobria com ela a vida terrível que vivem os grandes
atletas, uma vida feita de renuncias, perseverança e de
solidão.
Ela contava-me como se preparava
para uma competição, repetindo o seu salto cem mil vezes na
sua cabeça, depois de o ter feito cem mil vezes no ar. Ela
repetia cada volta, cada pirueta, até na perfeição. Até mais
do que na perfeição. Antes de um concerto ou de uma gravação
eu fazia a mesma coisa… cem mil vezes na minha cabeça.
Karine também queria saber como
Sylvie treinava, especialmente se ela se sentia desmotivada
em alguns dias, se ela já tinha tido vontade de desistir. Eu
nunca tive interesse pelo desporto. Ainda não tenho grande
interesse, excepto pelo golfe, é claro. Mas desde que
conheci Sylvie eu sinto-me muito próxima dos atletas.
Eu tenho muitas vezes a impressão de que tenho infinitamente
mais afinidade com eles do que com muita gente do
show-business. Eu amo a mentalidade deles, a sensibilidade,
a necessidade e o desejo de vencer e qualquer coisa que é
muito dificilmente definível, que se pode chamar a pureza, a
pureza do gesto, do esforço, o ideal…
René estava tão próximo do
desporto como estava do show-business. De facto, para ele,
não havia uma fronteira definida entre esses dois universos.
Durante duas semanas, ele seguiu de manhã até de noite todas
as competições dos Jogos Olímpicos de Los Angeles. Ele
conhecia o nome de todos os campeões. Ele nos contava as
suas proezas em detalhe, mesmo quando tínhamos assistido na
televisão. Ele reparava sempre em coisas que nos tinham
escapado, como um olhar de cumplicidade entre o treinador e
o atleta, o medo no olhar de um, o pressentimento da vitória
no olhar de outro…
A todos os jornalistas que
encontramos no nosso regresso de Paris, ele explicou que eu
treinava como uma atleta olímpica. Ele contava como eu
ensaiava as minhas canções na minha cabeça. Ele dizia que um
cantor, como um atleta, deve treinar todos os dias para que
as suas cordas vocais estejam em boa forma. E ele os fazia
rir, pegando a sua voz rouca e carregando ainda mais na
rouquidão, para dizer:
−Vejam o que acontece quando
paramos de treinar.
Ele não cantava desde a época
dos Les Baronets, que se tinham separado há uns 15 anos. E a
sua voz, já aveludada, tinha-se tornado mais rouca.
Um pouco antes do Natal, apenas
um mês depois das minhas cinco semanas no Olympia, eu iria
numa grande tour pelo Québec. René tinha impresso um
programa que ele tinha preparado com o Eddy e com a Mia.
Tinha uma foto em que eu estava na companhia da Sylvie, a
atleta radiante, e Karine, a criança desfeita.
[147] Duas
almas gémeas, duas lutadoras que me tinham marcado e
ensinado muito.
Eu celebrei os meus 17 anos no
palco de uma escola polivalente em Val-D’Or, em Abitibi.
Estávamos bem no meio da minha primeira tour de verdade, que
nos levou de um extremo ao outro do Québec, em todo o este e
o norte de Ontário e em Acadie. Não víamos mais o fim. E não
queríamos mais que ela acabasse porque estávamos muito
empolgados.
O nosso show crescia de dia para
dia e a tour prolongava-se de cidade para cidade. Nós
deixávamos marcas antes de chegarmos e depois de partirmos.
Eu tinha uma nova orquestra
dirigida por Paul Baillargeon, que tinha composto a música
"Une Colombe", que se tinha tornado num sucesso enorme no
Québec. Eu tinha preparado o conteúdo desse concerto com o
René, o Paul e o Eddy. Eu cantava uma mistura de canções que
eu amava, de todos os géneros.
− É a sua primeira tour de
verdade. - Tinha dito René - Você tem que apresentar todo o
arsenal, tudo o que você sabe fazer."
Por isso eu cantava rock,
canções suaves, ópera, blues… Eu cantava "Mamy Blue" de
Giraud, "Le train du Nord" de Félix Leclerc, velhos
clássicos como "Over the Rainbow", a minha inseparável "What
a feeling". Eu cantava também uma peça retirada da ópera "Carmen",
de Bizet. E "Up where we belong", em dueto com Paul, que
tinha uma voz muito semelhante com a de Joe Cocker… Eddy
tinha-me feito descobrir a música de Michel Legrand, um
amigo dele, e tinha-me preparado um medley das suas canções
que eu adorava. E eu cantava, evidentemente, os meus
sucessos mais importantes, como "Ce N’Était Qu’Un Rêve" ou "D’Amour
ou D’Amitié".
Mas não era sempre fácil. Cantar
de novo a mesma canção pela centésima vez, colocando alma e
coração, mesmo uma canção que amamos de paixão, isso requer
um poder de concentração que eu nem sempre tinha.
Sem pensar, eu entrava em piloto
automático e eu deixava a minha canção seguir o seu caminho.
René percebia todas as vezes. Nos comentários que ele fazia
depois do concerto, ele lembrava-me que eu tinha perdido a
concentração e a presença nas minhas canções mais
conhecidas. Elas se tornaram nas mais difíceis de cantar.
− Você tem que lutar contra o
costume, contra a rotina… Isso faz parte da sua profissão.
René ficava de olho em tudo: no
roteiro e nas decorações, nos arranjos musicais, nas luzes,
na ordem das canções, mesmo nas roupas que eu usava, no meu
cabelo. Ele tinha escrito os textos que eu dizia entre as
canções, por vezes mesmo no que eu devia dizer aos
jornalistas que eu encontrava ou que pose fazer na frente de
um fotógrafo. Muitas vezes, durante a tour, ele tomava conta
da direcção e das iluminações, dos cartazes, da promoção.
E quase todas as noites ele
jogava cartas com os músicos e os técnicos, que ele tinha
convertido. Ele tinha criado um sistema de jogo, uma
combinação que ele achava que lhe permitiria ganhar sempre
no black-jack.
[149] Ele falava disso a todo o mundo. Até a
mim, a quem o jogo não interessava nada. Ele tinha o feltro
verde, os dados, uma caixa de cartas. Eles poderiam jogar
grande parte da noite. René estava maravilhado pelo seu
sistema, que ele aperfeiçoava com os que nos acompanhavam ou
com os seus amigos que, por vezes, se juntavam a nós.
Ele falava-nos também da sua
teoria das sequências.
− No jogo, bem como na vida,
existem sequências. Um azar nunca vem só, nem uma vitória,
nem uma derrota. Temos que ter em conta as sequências. Temos
que apostar grande quando temos chances de ganhar… e sair
fora quando nos sentimos ameaçados, azarados.
− Mas como sabemos que estamos
azarados?
− A gente sente. Quando a sorte
está do seu lado você sente-a.
A minha carreira e o jogo o
ocupavam cada dia mais. Certo dia, poucas semanas depois da
nossa partida em tour, a sua mulher Anne-Renée ficou cheia e
ela deu a entender a ele que tinha intenções de o deixar.
Estávamos então em Gaspésie, a mil
quilómetros de Montreal. René voltou para a
cidade de noite, sozinho. A tour foi interrompida. Durante
semanas eu não o vi. Ele trabalhava, sem dúvida, para
consertar o que tinha feito de errado. Eu deixei-me cair no
desleixo total. Sem ele para me motivar e me inspirar, eu
não tinha a menor vontade de trabalhar a minha voz, de
treinar, de ficar em forma. Estávamos na época mais sombria
e fria do Inverno. Eu ficava na casa dos meus pais, sem
sair, eu dormia e assistia televisão, eu esperava…
Os meus pais, Eddy e Mia, de vez
em quando passavam para me ver, fizeram-me revelações sobre
René que me deixaram perturbada. Desde que ele tinha
começado a cuidar da minha carreira, há quatro anos, ele não
tinha deixado de jeito nenhum que eu percebesse que ele
tinha problemas financeiros, sentimentais e familiares. Ele
tinha-me feito viver sempre numa bolha, ele tinha afastado
de mim todo o perigo, tudo o que causasse angústia. Dito de
outra forma, eu tinha sido uma artista mimada e
superprotegida, nenhum problema de ordem
material, sem o menor stress financeiro. Eu tinha 17 anos, 4
anos de carreira e nunca tinha pensado que alguma coisa (um
show, uma gravação, uma viagem) não pudesse acontecer por
causa de dinheiro. Eu vivia sem contar dinheiro.
Desde então eu li nas revistas,
me contaram ou eu vi na televisão, a vida dos artistas e
nunca encontrei uma história comparável à minha. Eu nunca
ouvi falar de uma artista, como Streisand, Piaf ou Tina
Turner, que tenha sido tão abrigada, protegida, que tenha
evitado problemas da ordem material no começo da carreira.
René tinha cuidado disso tudo sozinho, sem deixar
transparecer a menor preocupação. Nunca na minha vida eu
teria adivinhado que ele tinha tido que pedir emprestado
grandes quantidades de dinheiro e que ele tinha ficado
falido. Por minha causa.
Durante todo esse tempo, eu
tinha vivido como uma princesa. Eu tinha comprado em
Duvernay, uma grande casa para onde eu me tinha mudado com os
meus pais.
[151] Eu tinha um carro, peles, jóias, tudo o que eu
queria. E mesmo mais.
E foi então que eu soube, dois
anos depois, que ele tinha hipotecado a sua casa para
financiar um dos meus álbuns. E ao invés de pagar essa
hipoteca, ele tinha investido todos os lucros na produção de
outro álbum. No ano precedente, ele tinha preferido declarar
falência do que aceitar uma oferta financeiramente muito
interessante de um promotor que queria produzir na tour
comigo. Ele achava que eu não estava pronta e que eu não
tinha ainda desenvolvido um repertório original
suficientemente completo.
Eu compreendia porquê Anne-Renée
estava cheia. René não era o marido mais fiel nem o mais
atencioso na face da terra. E ele jogava muito. As suas
viagens a Las Vegas e a Atlantic City podiam ser desastrosas
ou bem sucedidas. Ele ganhava muito
dinheiro. Mas ele o gastava como se fosse uma fonte
inesgotável.
Eddy disse-me mais tarde que
René sempre se comportou como um milionário e, por isso,
quando ele ficou milionário, nada mudou na sua vida.
Portanto, depois do jogo, eu
tinha culpa nas dificuldades que ele estava vivendo. Fosse
como fosse, eu queria ter responsabilidade.
Anne-Renée, que tinha sido muito
amiga no começo, foi-se afastando pouco a pouco. Ela não
assistia mais aos meus concertos, mesmo quando eu estava na
região de Montreal. No fundo, eu ficava muito feliz. Eu
ignorava cada vez mais o facto de que eu estava apaixonada,
eu tinha todos os sintomas. E ver os dois juntos deixava-me
deprimida. Mesmo sem querer, sem me dar conta, eu ficava
amuada. Eu acho que não dava um bom concerto quando ela
estava presente.
Eu não duvidava mais,
especialmente depois das revelações que os meus pais e Eddy
me fizeram, e eu agora era o centro da vida de René Angélil.
Ele tinha sacrificado tudo, tinha arriscado tudo por mim.
Mesmo se esse jogador estava apenas interessado na minha
carreira no começo, ele tinha acreditado em mim de verdade,
ele tinha tido a certeza que eu tinha valor, para investir
tudo o que ele tinha: o seu tempo e o seu dinheiro…
Quando retomamos a nossa tour no Québec,
eu sabia que o nosso relacionamento não seria mais o mesmo.
Eu não podia evitar pensar em tudo o que ele tinha feito por
mim, em tudo o que eu representava para ele, no que eu tinha
transformado a sua vida e a importância enorme que eu tinha
tomado. Eu tinha outro olhar sobre ele. Eu estava mais
intimidada do que nunca. Eu esperava que ele me fosse falar
da sua vida. Eu achava que ele saberia ter um relacionamento
diferente entre nós, um relacionamento adulto.
Mas a sua atitude, para minha
grande desilusão, não mudou. De jeito algum. Ele nunca me
disse o que tinha resolvido com Anne-Renée mas parecia
que ela não devia estar muito feliz por vê-lo partir de novo
em tour e passar os seus dias e as suas noites num estúdio
ou ao telefone com produtores, autores, compositores,
músicos que ele mobilizava com um único objectivo: fazer de
mim uma estrela, uma grande estrela.
Ele ainda vinha ao nosso quarto,
todas as noites, e nos recontava, à maman e a mim, canção
por canção, o concerto que eu acabava de dar.
[153] Ele dizia-me
que eu tinha trabalhado bem mas havia sempre alguma critica
a fazer, nunca era perfeito, eu tinha sempre que fazer
melhor ou tentar fazer melhor na próxima vez…. Eu poderia
segurar mais aquela nota, mais alto, por mais tempo; aquele
gesto, eu devia fazê-lo menos vezes; eu devia mudar a
tonalidade dessa ou daquela canção, etc.
Fazer melhor, ser melhor. Cada
noite ele me convencia que era possível. Ele dava-me o
gosto, a vontade e a necessidade de ir além de mim mesma.
Depois de ter elevado a fasquia ainda mais alto, sempre mais
alto, ele cumprimentava a maman e dizia-me:
− Boa noite, durma bem.
E dava-me dois beijos no rosto.
Como se eu ainda tivesse 13 anos. E ele ia viver a sua vida.
Sem mim.
Na minha família ninguém
duvidava há muito tempo que eu estava apaixonada por René
Angélil. Inconscientemente, eu tinha feito tudo para que
isso fosse visível. Antes mesmo que eu percebesse que estava
apaixonada, muitas pessoas, nos estúdios onde íamos gravar,
nos estúdios de televisão ou nas salas dos concerto por onde
eu passava, tinham percebido que havia alguma coisa entre
o René e eu. Eu só tinha olhos, ouvidos, sorrisos e
pensamentos para ele. Tudo o que ele dizia era como a bíblia
para mim. Eu não podia passar um quarto de hora sem falar o
nome dele. Se ele saía, eu procurava por ele por todo o
lugar, eu esperava por ele…
No começo, a minha mãe não se
preocupava. Ela dizia a ela mesmo que isso ia passar, que
mais cedo ou mais tarde eu acharia um rapaz da minha idade
por quem me apaixonaria e com quem casaria.
Nós nunca falamos abertamente.
Eu sentia a minha mãe vigilante, pronta a me defender desse
amor que ela achava despropositado. Eu continuava dormindo
com a foto de René contra o meu rosto, contra o meu pescoço.
Eu gastei várias. Eu tinha, em alguns dias, um sentimento de
profunda solidão. Eu estava fechada nesse amor, sobre o qual
eu não podia falar com ninguém.
E eu sabia que isso não ia
passar. Eu era uma mulher feita, uma mulher de verdade, ia fazer 18 anos, queria que René me pegasse nos seus
braços, me abraçasse e fizesse amor comigo. De verdade.
− Quem sabe ele não vê nada
disso, pensava eu - quem sabe ele não está interessado mais
em mim.
Eu tentava entender porque eu o
amava tanto. Eu achava ele lindo. Eu amava os seus olhos tão
doces, os seus gestos, a sua voz, a cor da sua pele, as suas
mãos, o seu perfume, a força tranquila que emanava dele, a
sua calma, a autoridade que ele exercia sobre todo o mundo,
até sobre os meus pais, mesmo sobre os patrões das
gravadoras. Eu amava a sua paixão pelo jogo, a sua risada
também, e aquele jeito que ele tinha de analisar as
situações, de tomar decisões, de se impor e,
acima de tudo, o olhar dele sobre mim, a confiança que ele
tinha em mim e o que ele esperava para o meu futuro…
Eu tive uma grande esperança
quando Anne-Renée (que amava outro, como diziam os
tablóides), pediu o divórcio, que ele tinha garantido, bem
como a guarda das crianças.
Mas eu depressa compreendi que
ele estava desfeito por isso é que ele considerava como uma
derrota enorme e irreparável.
[155]
Ele tinha conseguido manter bom
contacto com Denise, a mãe de Patrick, o seu filho mais
velho, que era mais velho do que eu algumas semanas. Mas com
Anne-Renée, com quem ele tinha dois filhos, Anne-Marie e
Jean Pierre, que apenas tinham 11 e 8 anos, as coisas não
se estavam ajeitando facilmente. Ele achava que os filhos
estavam sofrendo. Eu entendi mais tarde que era isso que
doía nele, saber que os filhos não conheceriam a
estabilidade de um lar unido. Demorei muito tempo para
entender isso. Na época eu achava que ele estava sofrendo
por ter sido abandonado por uma mulher que ainda amava.
Ele ainda a ama, - eu dizia a
mim mesma - ela ainda faz ele sentir dor.
Eu teria amado tanto fazer ele
sofrer, fazer ele sentir a dor do amor. Para poder
consolá-lo. Para o ouvir dizer que ele me amava e que
sofria por minha causa.
E voltei aos meus filmes
secretos, que eu montava vezes sem conta. Ele amava-me e eu
ignorava-o. Ele ficava infeliz por minha causa. Por vezes
até eu amava outro. Ele fazia de tudo para me seduzir. Eu
resistia. E depois, numa cena magnífica, eu cedia. Eu o
consolava. Fazíamos amor e ele me levava até ao fim do
mundo.
Um clássico que repeti 100
vezes. O mais extraordinário de tudo
isso é que rumores começaram a circular sobre nós. Amigos ou
colegas de trabalho perguntavam aos meus irmãos e irmãs se
estava acontecendo alguma coisa entre o René e eu. E o rumor
depressa chegou nos tablóides que, mais do que inventar
histórias, faziam sondagens para saber a opinião dos
leitores. Muitas pessoas diziam-se chocadas por causa da
nossa diferença de idade ou consideravam que o René tinha
abusado da sua autoridade e do seu poder de manager…
Ele nunca falou desses rumores
que circulavam sobre nós. Mas eu soube mais tarde que isso o
perturbava profundamente. E por causa disso, nós perdemos
muito tempo de amor.
Esses rumores não facilitaram as
coisas.
Mas não eram infundados. Pelo
menos pela metade. Quem sabe até menos. Eu estava verdadeira e completamente apaixonada por ele. E ele,
de uma certa maneira, também estava. Eu sabia, eu sentia, eu
via. E, acima de tudo, eu queria.
Quando estávamos juntos ele
estava subjugado, fascinado por mim. Ele só tinha olhos para
mim. Ele também olhava para mim o tempo todo. E estávamos
sozinhos no mundo, mesmo rodeado por vinte pessoas.
No estúdio, quando escutávamos
as gravações, ou no restaurante, onde comíamos quase todos
os dias, em Montreal ou em Paris, sentávamos sempre lado a
lado. Falávamos juntos sem pensar nos outros. Riamos muito.
Muitas vezes eu encostava-me toda nele, eu deixava cair a
cabeça no ombro dele. Eu dizia a mim mesma que os outros
deviam achar que era inocente. Mas não era de jeito nenhum.
[157] E eu achava que René entrava nesse jogo e que ele sentia
muito prazer também. Ele amava
estar comigo, era evidente. Ele amava falar comigo. Ele me
amava, eu tinha certeza.
Mas ele lutava contra esse amor.
Um dia, em Paris, num
restaurante onde íamos muitas vezes, eu fui-me sentar no
extremo da mesa e esperei que o René se viesse sentar do meu
lado. Mas, quando ele chegou com os outros, ele passou por
mim, pelo seu lugar de sempre, e foi sentar-se do outro lado da
mesa. Eu fiquei aterrada, destruída. As minhas pernas
começaram a tremer. Tudo parecia desmoronar em minha
volta.
Esse jantar foi sinistro. Eu não
consegui engolir nada. Eu procurava os olhos dele mas ele evitava-me. A minha mãe estava
num lugar entre nós dois,
bem como Eddy, Mia e outros, compositores e produtores que
tinham acabado de assistir à gravação.
Depois todo o mundo foi embora e
deixou-nos sozinhos. Então ele aproximou-se de mim. Ele
parecia cansado.
− Vem − disse-me ele − vamos
caminhar até no hotel.
Eu sabia que ele iria anunciar-me alguma coisa terrível. Eu tremia tanto que tinha
dificuldade em me levantar. Lá fora, ele disse-me imediatamente
que não nos devíamos ver mais do mesmo jeito, que tínhamos
que quebrar aquela familiaridade que havia entre nós. Eu
acho que ele preparou e ensaiou as suas frases. A minha
cabeça estava rodando. Eu queria sentar no chão. Eu queria
que ele fosse embora e me deixasse sozinha. Eu poderia ter
ficado ali até no fim do mundo ou teria caminhado até cair…
− Foi maman que te pediu para
fazer isso?
Ele não respondeu.
Então eu disse-lhe:
− Eu sei que você me ama, René
Angélil.
Ele continuou silencioso.
Parecia que ele ia começar a chorar.
− Se você não me ama eu quero
que você me fale. Me diga: "Céline, eu não te amo." Senão eu
nunca vou acreditar em você. Eu não posso acreditar em você
porque eu sei que você me ama, você está a ouvir-me? Tente
dizer o contrário, se você puder.
Ele não foi capaz de dizer que
não me amava. Foi isso que me impediu de desmoronar por
completo.
Eu sabia que ele me amava. Ele
poderia ter fingido o contrário mas eu nunca acreditaria. E
eu não entendia porque ele recusava o amor que eu lhe podia oferecer, porque ele me recusava e recusava a nossa
felicidade.
Eu não tinha a menor hesitação.
Nunca, por uma fracção de segundo, eu pensei que fosse fazer
mal a alguém. Eu sabia que o seu casamento com Anne-Renée
estava acabado. Não por minha causa. Não havia mais amor
entre eles. E eu tinha acabado por perceber que ele queria
reatar o seu casamento por causa dos seus filhos. E eu disse-lhe:
− Você acha que poderá fazer os
seus filhos felizes estando infeliz?
Ele ficou silencioso.
− A tua felicidade é comigo,
você sabe disso. Me diga o contrário, se você puder."
Ele caminhava do meu lado. Mas
ele estava longe, muito longe.
No hotel, a maman esperava por
mim. Ela sabia perfeitamente o que tinha acontecido.
[159] Ela
preparou um banho para mim. Ela ajudou-me a despir. Ela
bateu nas minhas costas suavemente como a gente faz para
consolar uma criança com medo ou com dor. Não dissemos nada.
Eu não estava com raiva dela. Ela fazia o que uma mãe devia
fazer, ela estava cuidando de mim. Eu chorava por causa de
René mas também por causa da dor dela, da preocupação, do
medo que ela tinha que a minha vida fosse destruída.
A minha mãe achava que o René era
responsável por esse amor que me devorada. Ela deitou-me na
minha cama e, antes de me deixar adormecer, disse:
− Ele devia ter dado um jeito de
evitar que as coisas chegassem a esse ponto.
Eu tinha vontade de responder:
"Ele não podia ter dado um jeito porque ele me ama também."
Mas ela teria perguntado: "Ele disse-te isso?"
Eu teria sido obrigada a
responder que não, mesmo sabendo, no meu espírito, que não
havia a menor dúvida.
Pela primeira vez na minha vida,
a minha mãe não podia nem queria encontrar uma solução para
o meu problema. Pior, ela tornava-se num obstáculo para a
minha felicidade.
Longe de aceitar esse amor, ela
queria curar-me, ela queria que eu esquecesse o René. Ela
ficava furiosa quando eu falava dele. Eu devo ter causado
muita dor a ela quando, um dia, lembrei-lhe que eu tinha 18
anos.
− Eu sou maior de idade. Nós
estamos num país livre. Ninguém tem o direito de me impedir
de amar quem quer que seja.
Ela tinha escrito ao René uma
carta terrível, dizendo que ele tinha traído a sua
confiança. Ela queria um príncipe para a sua princesa e não
um homem duas vezes divorciado e duas vezes e meia mais
velhos do que a sua filha.
Mas, ao mesmo tempo, a minha
mãe, uma mulher com coração, sabia que não podia impedir
um coração de amar. Ela conhecia-me suficientemente bem para
saber que eu não desistiria. Eu tinha desejado tornar-me uma
cantora famosa e estava chegando lá. Eu queria esse homem na
minha vida e eu iria colocar tanta teimosia e força quanto
tinha colocado na minha carreira.
Nesse Outono, na gala ADISQ, ganhei
5 Félix: melhor canção, melhor concerto, melhor cantora,
etc… Um triunfo. Eu nunca tinha chorado tanto em toda a
minha vida. Algumas lágrimas de alegria, é claro. Mas, acima
de tudo, lágrimas de tristeza, uma tristeza profunda que eu
via crescer dentro de mim desde há uns meses e para a qual
eu não achava um fim.
Profissionalmente, eu tinha
todos os motivos do mundo para celebrar. Tudo o que tínhamos
organizado ao longo desse ano tinha sido um enorme sucesso.
A tour tinha terminado em perfeição com 3 concertos na
grande sala do Place Des Arts, diante de um público
conquistado e uma crítica excelente.
Mas eu tinha a alma em dor. Eu
tinha o coração partido. Eu estava apaixonada por um homem
que eu não podia amar, que não queria que eu o amasse e que
não me queria amar. Pior, ele não queria acreditar que eu
estava verdadeiramente apaixonada por ele, apesar de eu ter
dado todas as provas.
[161] − Eu amo-te e eu vou-te amar por
toda a minha vida. Só você.
E, ao mesmo tempo, eu sabia que
ele me amava. Então porque é que ele resistia? Porque ele
tinha prazer em me fazer sofrer? Eu tinha dúvidas terríveis. Se
passavam dois dias sem que eu o visse, sem escutar a sua voz
ou sentir o seu olhar sobre mim, eu começava a acreditar que
estava iludida. Ele não me amava, ele não acreditava que eu
o amava de verdade.
Se ele me tivesse amado nem que
fosse um pouco, ele teria visto o divórcio como uma
libertação. Mas, pelo contrário, ele me parecia destroçado.
A sua dor e a sua confusão matavam-me. Eu via os seus
esforços para salvar o seu casamento como prova de que ele
não me amava, que eu estava enganada.
No começo do Verão passado ele
tinha-se reconciliado com Anne-Renée e eles tinham retomado
a sua vida de casal. Eu entrei no inferno.
Anne-Renée sem dúvida tinha
exigido que ele ficasse mais tempo em casa porque ele, no
dia seguinte, deixou de ir passar os serões na nossa casa e
de me levar, com os meus pais, aos restaurantes. Só o víamos
quando havia um trabalho preciso a fazer.
Eu gravei um novo álbum nesse
Verão, C’est Pour Toi. René assistia às sessões de gravação
mas ele não parecia estar presente nem era tão exigente
que dantes. Ele não me dizia mais: "Você pode fazer
melhor" ou "Faça-me chorar."
Eu tinha concluído que ele tinha
perdido o interesse por mim ou, pior, que ele sentia que eu
seria incapaz de responder às suas exigências porque eu
estava muito triste. A partir daí eu fiz todo o tipo de
teorias, cada uma mais rebuscada do que a outra.
− Ele sabe que eu sinto dor
porque ele sabe que eu o amo. Ou ele vê que eu estou
sofrendo mas ele não quer saber porquê. Mas, se ele não quer
saber porque estou sofrendo é porque ele não me ama. Quem
sabe tudo isso o deixada entediado, especialmente porque ele
não quer que eu o ame. Quem sabe ele está dizendo a ele
mesmo que, por causa disso, não podemos mais trabalhar
juntos.
Mais uma vez, Eddy contava a
minha vida nas canções que escrevia para mim. Ele tinha-me
observado. Era evidente… ele tinha visto e compreendido
tudo. Os textos das suas canções saíam do fundo da minha
alma. Pareciam-me tão familiares que eu apenas lia uma ou
duas vezes antes de saber de cor.
Por vezes eu digo palavras estranhas
Por vezes eu falo demais
Mas você olha-me e o meu coração cai
Por vezes eu rio fora do tempo
Você não entende nada
E você olha-me de repente, surpreso
Não me faça muitas perguntas
A resposta está nos meus olhos
Está num lugar entre nós dois
Não me obrigue a dizer tudo
Porque você já sabe
Tudo o que eu faço hoje é por você.
[163]
Eu cantava e dizia a mim mesma: "Não é possível que ele não
entenda." Eu passava os meus dias e as minhas noites perguntando-me em quem ele estaria pensando, onde estaria o seu
coração, se ele sabia que eu o amava e como podia ele
ignorar, se ele ainda amava Anne-Renée, se eles faziam amor
muitas vezes…
Pela primeira vez em 5 anos, nós não tínhamos qualquer
projecto, nenhuma tour em vista, nenhum show, nem na França
nem no Québec, nada na televisão. Nós tínhamos feito o álbum
"C’est Pour Toi" quase maquinalmente, sem colocar o nosso
coração nem muito tempo e, no fundo, pouca esperança. E René
não parecia ter pressa em organizar uma campanha de promoção
como ele sempre tinha feito.
Mas ele estava elaborando outros projectos para mim, sobre os
quais ele tinha reflectido durante muito tempo. Ele contou-me, uma noite, alguns dias antes da Gala ADISQ, onde eu
iria triunfar no personagem de "chorona que não se cala."
Nós iríamos parar tudo.
− Por quanto tempo?
− O tempo que for necessário.
− O tempo necessário para quê?
− Para que a sorte volte.
− Foi a tua mulher que te deixou, não a tua sorte.
Ele riu. Eu amava a risada dele, mesmo quando soava triste.
Ele me lembrou da sua teoria das
sequências, que diz que um azar nunca vem só, nem
uma vitória nem uma derrota. E que é preciso a gente se
esconder, sair fora, quando sentimos que vamos fazer
asneiras.
− Presentemente, como você pode
ver, eu estou numa fase má. Em vez de cometer erros eu vou
me retirar. E você vai parar também por uns meses, mesmo por
um ano se for necessário. Você já passou nas suas provas,
ninguém te vai esquecer. Você vai continuar aprendendo.
Quando a gente recomeçar, será em grande, será para ir
longe, você vai ver.
No dia depois da gala, ele iria
partir, infeliz no amor mas feliz nos negócios, para Las
Vegas, onde ele passaria a maior parte do ano seguinte. Eu
tinha cinco Félix nos braços, era formidável. Mas, sem ele,
os meus braços estavam vazios. Ele tinha, no entanto, deixado uns deveres: aprender inglês, ter aulas de dança e
de canto.
Então, ele não me estava
a abandonar. Pelo contrário. Ele estava pedindo-me para
crescer, ficar mais forte do que nunca. Eu via isso como uma
promessa para o futuro. Se ele queria que eu aprendesse
Inglês era porque tinha decidido gravar um álbum nos Estados
Unidos. Se ele me imponha essa pausa era porque tinha
grandes projectos para nós dois. Eu me agarrei a essa ideia.
[165] −
Para começar, vamos arranjar os seus dentes. E você vai mudar de penteado e de
visual. Você vai escutar todas as músicas que saírem, todas
as canções, todos os cantores e cantoras que fizeram alguma
coisa de novo.
Eu sabia que ficaria separada
dele por uns meses. "Longe da vista, longe do coração." Eu
sabia que, em Las Vegas, outras mulheres e outros prazeres o ocupariam. E que ele
pensaria pouco em mim, quem sabe nem sequer pensaria durante
dias e dias e noites.
Eu imaginava filmes de terror.
Eu imaginava-o num casino, rodeado de ruivas explosivas ou
de loiras sexy com os decotes que mexiam com ele. Loira,
ruiva ou morena, eu poderia tentar tudo isso. Mas quanto ao
decote, eu tinha que me contentar com aquilo que a natureza
me tinha dado e não havia nada aí que pudesse mexer com
ele.
Sem problemas, eu daria um jeito
no resto, eu tonificaria os meus músculos, aprenderia a
caminhar de um jeito sexy. Afinal, eu era magra como os meus
irmãos e irmãs e o meu pai, e graças a essa elegância, eu
poderia jogar a carta da top model sexy.
Ele queria que eu ficasse mais
bonita e eu ia fazer isso. Eu deixaria a minha pele de
adolescente paralisada pelo amor para enfrentar esse sedutor
com as mesmas armas. No seu retorno, ele descobriria uma
outra mulher. Eu iria jogar também, tudo por tudo. E, quando
ele voltasse, eu ia fazer ele cair.
Mas eu teria que caminhar um
longo caminho sozinha, na sombra. Foi por isso que eu chorei
tanto durante a gala. Eu estava-me preparando para entrar
num período da minha vida que me aterrorizava mas que me
empolgava ao mesmo tempo. Eu quebraria o contacto
maravilhoso que tinha estabelecido durante a tour. E,
pior do que isso, eu iria viver longe do homem que eu amava…
Pela primeira vez na vida, eu
devia enfrentar sozinha um desafio importante. Eu ia
realizar um projecto grande sem o apoio nem os conselhos dos
meus irmãos e irmãs, da minha mãe ou de René Angélil. Era o
meu primeiro projecto de verdade, de uma mulher adulta e
responsável: seduzir um homem 26 anos mais velho.
Quando o meu amado manager
voltasse de vez, eu cantaria melhor do que nunca. Eu falaria
inglês. Eu dançaria e mexeria-me em palco com graciosidade.
Ele ficaria contente. Mas não era só nisso que eu estava
apostando. Mais do que tudo, eu queria o homem. Era ele que
eu queria impressionar, era ele que eu queria seduzir com o
meu novo look, com os meus dentes perfeitos, com o meu novo
penteado, com o meu novo jeito. Eu teria um olhar novo,
provocador, um sorriso aliciador, mistério em volta de mim,
muita força, charme e sex-appeal. A única coisa na qual eu
acreditava era em ter um objectivo e realizá-lo. Eu iria me
treinar na sedução como um atleta de alta competição e
capturar definitivamente René Angélil.
Esperando por isso, eu fazia
filmes na minha cabeça com cenas de sedução cada uma mais
tórrida do que a anterior. Eu representava personagens
sedutoras ou ingénuas. E ele, evidentemente, era loucamente
apaixonado por mim.
Então eu inscrevi-me numa escola
de línguas, nove horas por dia, cinco dias por semana,
durante dois meses. Em alguns momentos era um horror. Eu não
entendia mais nada em algum idioma humano, eu balbuciava, as
minhas ideias enrolavam-se.
[167] Mas depois, do nada, tudo voltou
a ser claro e inteligível. Eu via uma entrevista na
televisão em inglês e, durante muito tempo, eu compreendia
tudo. Ou quase tudo. Eu descobria um novo sentido nas
canções que conhecia desde a minha infância.
Eu acostumei-me rapidamente à
sombra. Eu trabalhava tanto quanto antes. Eu parecia,
durante meses, um estrado de ortodontia: eu estava usando
aparelho. Mesmo escutando-me frequentemente na rádio,
ninguém me via em lugar nenhum. Eu nunca vi fotos minhas
dessa época, pelo menos nenhuma foto com o aparelho. Eu
entrei de verdade na sombra. Todo o tipo de rumor circulava
nos tablóides. Eu tinha ido para o convento, eu era
missionária em África, eu tinha perdido a voz… No dia
seguinte eu estava grávida, três dias depois eu tinha tido
gémeos; eu os tinha dado para a adopção, um para a Suíça e
outro para a Califórnia.
Durante o Inverno, René veio
regularmente ao Québec para ver os seus filhos. Mas ele
também tinha deveres para fazer. Ele tinha decidido recomeçar
a nossa viagem. Ele queria mudar tudo, a nossa gravadora, a
promoção, os músicos. Ele falava mais uma vez em alargar o
meu repertório para chegar a um público mais vasto. Ele
queria, acima de tudo, que eu gravasse um disco em inglês
com grande orçamento. Ele queria associar-se a uma
multinacional de discos. Ele encontrava pessoas em Toronto,
em Nova Iorque, em Los Angeles. E ele fazia planos.
Cada vez que a gente se via, ele
contava-me histórias, ele sempre tinha feito isso. Eu sabia
de cor as aventuras de Elvis e do Colonel Parker, de
Streisand e de Erlichman, etc. Mas, a partir de agora, as
histórias aconteciam no futuro e nós, eu e ele, éramos os
heróis. Ele via-me, dentro de dois anos, no Johnny Carson
Show, em Las Vegas, na Broadway. Ele falava menos da França
nessa época. Poderia dizer que ele se interessava mais pelo
mercado americano.
Eu teria-o seguido até no fim do
mundo.
E isso vinha mesmo no momento
certo, porque era aí que eu sabia no fundo, que ele tinha a
intenção de ir.
Um dia, por fim, eu vi que o
tinha perturbado de verdade. Era quase Verão, ele veio pegar-me na minha casa em Duvernay para ver um show no Place
Des Arts ou encontrar pessoas da CBS, a nossa nova gravadora
de discos.
Durante a sua ausência eu tinha
mudado de penteado e de jeito. Eu não tinha mais os dentes
caninos enormes que me tinham dado o nome de Drácula. Eu
tinha shorts e corpete, eu tinha os ombros e as coxas nuas e
bronzeadas. Eu adoro estar bronzeada. Eu estava musculosa
também, porque há meses que tinha aulas de dança. E, com
isso tudo, eu mostrava um sorriso que eu tinha trabalhado
durante muito tempo, um sorriso de mulher confiante.
[169] Ele
ficou de pé na porta
olhando-me sem dizer uma palavra… Eu vi-o literalmente
cambaleando. Pela primeira vez, eu senti que ele colocava em
mim o olhar de um homem que deseja uma mulher, não apenas o
olhar de um manager sobre a sua artista. Eu tinha mexido com
ele, e era mais lindo e mais intenso do que nos meus filmes
de amor não correspondido. Um arrepio invisível invadiu-me
da cabeça aos pés, a sensação do meu poder sobre um homem. O
sedutor estava seduzido.
Eu disse a mim mesma que o nosso
relacionamento estava mudando finalmente. René Angélil não
seria mais apenas o meu manager, seria também a minha
inspiração.
A partir desse dia, ele iria
jogar sobre dois planos da minha vida. Ele orientava e geria
a minha carreira, tomava todas as decisões de negócios,
escolhia as minhas canções. As canções contavam uma história
muito simples: a história de uma mulher determinada, que tem
sede de amor, que ama um homem que ela quer seduzir. Ele
tinha-se tornado no objecto desse amor que eu cantava, ele
era o homem das minhas canções. Como podia ele ignorar?
Durante muito tempo, por pudor,
por medo também da opinião pública que parecia desfavorável,
ele recusou assumir plenamente esse papel. Eu estava certa de uma coisa
pelo menos: eu conseguia mexer com ele. Eu sentia isso no
olhar dele. Por vezes também, enquanto falava comigo, ele perdia-se nos seus pensamentos e não reencontrava o fio.
− O que é que eu estava dizendo?
A partir desse momento, eu fiz
questão de mexer com ele cada vez que tivesse oportunidade
de o fazer. Eu tentei surpreendê-lo, desestabilizá-lo. Eu
ganhei confiança em mim mesma. Eu ficava muitas vezes perto
dele, sempre de jeito a que ele visse os meus ombros nus e
as minhas pernas, todo o meu arsenal de sedução… e eu estava
feliz, o que é um elemento de sedução quase tão poderoso
quanto o sex-appeal.
Ainda não éramos amantes mas já
tínhamos que nos esconder, porque ninguém nos devia ver
juntos.
Eu adorei a clandestinidade e
essa ambiguidade que foi criada em volta da gente. Eu achava
isso excitante e muito romântico. Os olhares das pessoas, o
que era subentendido, as questões que faziam em nossa volta.
Nós tínhamos, René e eu, finalmente, uma vida secreta. E eu
não tinha duvida que um dia seriamos amantes.
E que seria para a vida inteira.
Eu não faço ideia de onde me
veio essa necessidade ou desejo de viver um amor total e
absoluto. Isso não era mais moda, eu sabia. Mas eu nunca
imaginei o amor sem ser grande e exclusivo. Eu queria apenas
ter um único homem em toda a minha vida. E soube um dia
que esse homem seria René. E eu nunca mais hesitei. Esse
amor tornou-se no meu maior projecto.
A minha única dor era ter que
mentir para a minha mãe. Eu consolava-me dizendo que um dia
ela acabaria por compreender que eu estava falando a sério. Ela
aceitaria o nosso amor. E então eu contaria as minhas
pequenas mentiras.
[171] Eu não sei como responder quando
me perguntam hoje em dia como eu reagiria se a minha mãe
tivesse exigido que eu rompesse tudo com René. Ou pior, se
ela quisesse que eu renunciasse a seduzi-lo. De fato, eu
nunca imaginei isso. Eu sabia que ela me tentaria dissuadir,
que a sua opinião era desfavorável, tal como a do meu pai.
Mas nem por uma fracção de segundo eu pensei que ela pudesse
exigir seja o que for que me tornasse infeliz.
René era, para os meus pais,
para todos os meus irmãos e irmãs, uma pessoa muito
imponente e impressionante. Ele tinha compreendido depressa
que, para trabalhar comigo, para estabelecer um
relacionamento profissional, ele tinha que estar de acordo
com toda a família, começando pela minha mãe. E ele tinha
desenvolvido com ela verdadeiros laços de amizade. Ele consultava-a para tudo, ele escutava-a… Eu acho que ele não
queria quebrar essa cumplicidade, sem a qual teria sido
quase impossível gerir a minha carreira.
A minha mãe estava numa situação
difícil. Ela era aliada dele na organização e
desenvolvimento das minhas actividades profissionais e
adversária dele na evolução da nossa história de amor.
Estrategicamente, para poder levar até ao fim o meu projecto
de sedução, eu tinha que convencer a minha mãe que isso não
era um capricho de uma menina.
Eu lembro-me do momento crucial
quando eu soube encontrar as palavras e as lágrimas que a
tocaram de verdade. Estávamos em casa, na cozinha.
A Maman estava ocupada preparando a refeição. Tinha outra
pessoa com a gente, quem sabe Papá, quem sabe um dos meus
irmãos. Eu disse-lhe:
− O que você não compreende é
que eu o amo, eu amo-o.
E comecei a chorar.
− É verdade. Eu amo ele de
verdade. Para a vida inteira.
Maman enxugou as lágrimas no seu
avental, aproximou-se de mim e pegou-me nos seus braços, muito
docemente. Eu deitei a minha cabeça sobre o seu ombro e ela
disse-me:
− Eu acredito, minha filha, eu
acredito em você.
Eu percebi então que ela não se
oporia mais ao meu projecto. Ela não iria, quem sabe, dar-me
força, mas ela tinha admitido que a minha paixão por René
Angélil não era uma coisa passageira. A partir desse dia
tudo mudou. Mesmo a minha voz, a minha alma. Toda a minha
vida.
René queria que eu gravasse o
meu próximo videoclipe, "Fais Ce Que Tu Voudras" com
François Girard, já conhecido no Québec e no Canadá como um
dos directores mais brilhantes de vídeo.
Ele era pouco mais velho do que
eu, quem sabe tinha uns 20 anos. Mas ele tinha a determinação de
um trovão. Ele exigiu e obteve de René liberdade total. Não
apenas nos cenários e na montagem de imagens, mas também no
trabalho da minha imagem, do meu look.
− Eu quero que você seja uma
menina sensual e sexy - dizia-me ele.
Ele não poderia ter pedido nada
melhor.
René tinha compreendido que
François fazia coisas novas e diferentes. Foi por isso mesmo
que ele o procurou e lhe deu a liberdade que ele queria. A
partir daí, René procedia sempre assim. Ele iria procurar as
pessoas mais criativas, proporia para trabalha comigo e
daria os melhores meios técnicos e financeiros, bem como
toda a liberdade que eles precisavam.
[173] Alguns dias antes da filmagem,
François levou-me durante várias horas a boutiques e lojas onde
nunca tinha botados os pés e fez-me vestir todo o tipo de
roupas que eu nunca tinha pensado vestir.
Mia tinha-me levado antes nos
grandes costureiros de Paris. Ela tinha-me guiado num
universo fascinante da moda. Com François, eu descobri que
um look se cria como uma tela, como uma canção… e que isso é
útil também. O look que escolhemos tem em conta os nossos
humores do dia, o humor geral do mundo, os nossos estados de
alma. E do objectivo que temos, é claro.
François tinha compreendido que
eu queria seduzir a qualquer preço. Era isso que dizia na
canção "Fais Ce Que Tu Voudras". Eddy, mais uma vez, tinha
visto dentro de mim com uma clareza assustadora. Ele tinha
entrado na minha cabeça, no meu coração.
Se for preciso lutar
Eu lutarei também
Eu apostarei a minha vida
A minha última carta para ficar com você
Com as mudanças e melhoramentos que René fazia, uma coisa perturbava-o
profundamente. Ele tinha medo de desiludir Eddy se
convidasse jovens autores, mais rock, mais pop. Eddy, eu
acho, via-me mais na linha de Mirelle Mathieu, da Nana
Mouskouri, mas não como cantora pop, muito menos como
roqueira. Mas René queria que eu entrasse no universo pop
rock.
Ele tentava trabalhar com Luc Plamondon, já o autor mais
falado e mais inovador da língua francesa. Ele tinha feito
sucessos com dezenas de cantores do Québec e da França,
entre os quais Robert Charlebois, Diane Dufresne, Julien
Clerc, Barbara, etc. Ele tinha criado, com Michel Berger, um
musical rock fabuloso, Starmania, que há muitos anos estava
em exibição nos dois lados do Atlântico.
Num dia de Outono, Luc Plamondon convidou-nos para a sua
casa de Paris. Eu tinha-o encontrado rapidamente no Place
des Arts, depois de um show do Starmania. É um grande homem
brusco, que gosta de rir, muito elegante e, ao mesmo tempo,
desleixado. Ele já usava, na época, os óculos escuro.
As janelas do seu apartamento abriam-se directamente para a
Torre Eiffel, com o Sena no plano de fundo, o palácio de
Chaillot, as árvores do Champs de Mars. Ele tinha convidado
algumas pessoas importantes do show-business de Paris, entre
os quais Gilbert Coullier, que seria mais tarde o produtor
de todos os meus shows na França e na Bélgica, bem como a
sua mulher Nicole, minha futura cúmplice para as viagens nas
boutiques da rua Saint-Honoré.
Nesse dia, pensando nas pessoas que eu iria conhecer, eu entia-me terrivelmente intimidada, pouco segura de mim. Mas
quando a noite chegou, na presença deles, eu não sei que
diabo entrou no meu corpo, eu soltei-me,
estava segura do meu charme, da
minha maquilhagem, da roupa que tinha vestida, das coisas que
estava falando.
[175]
Eu estava confiante, rodeada de pessoas que
pareciam interessadas em mim de verdade. Eu falei muito. E dei-lhes, eu acho, um grande show. Na mesa e depois na
sala, cheia de enfeites, de livros, de telas e esculturas.
Para os fazer rir, eu contei
histórias de família, eu imitei Barbra Streisand, Joplin,
Piaf. Luc Plamondon se deixou levar, especialmente quando
cantei canções de Starmania, imitando um depois do outro os
personagens femininos principais. Eu via René, um pouco à
parte, me olhando orgulhosamente. Eu sabia naquele momento
que eu o fazia feliz e que ele não poderia mais viver sem
mim. Eu sabia também que ele estava apaixonado por mim ou
que estaria em breve, porque eu o fazia feliz.
Nós tínhamos entrado naquele
período da nossa vida que eu chamo de amor silencioso, o
nosso amor platónico, puro, idealista. E praticamente
inconfessável. Desde aquela nossa cena na rua de Paris, eu
nunca mais tinha falado que o amava. E isso era, ao mesmo
tempo, doloroso e sensual.
Nós estávamos sempre juntos. Ele
era sempre um cavalheiro, ele oferecia-me o braço, abria-me as
portas. Nós caminhávamos por Paris. Nós estávamos sozinhos
muitas vezes, mesmo quando tinha muita gente em nossa volta,
mesmo quando a maman ainda estava por perto. Nós tínhamos
momentos em que achávamos que estávamos sozinhos no mundo.
Ele falava-me dos seus projectos, dos contratos que iríamos
assinar com a CBS, do álbum em Inglês que faríamos dentro de
um ano ou dois no máximo, logo de seguida àquele que
estávamos preparando, que seria explosivo.
− Tem que ser explosivo – dizia
ele − Eu coloquei uma cláusula no seu contrato. Se a gente
vender cem mil exemplares do próximo álbum, a CBS vai-nos
dar os meios para produzir um disco em inglês.
Ele estava tão orgulhoso da sua
clausula! Ele falou-me durante horas sobre isso. E dos
músicos e dos autores que ele iria procurar para fabricar o
seu álbum explosivo.
Algumas semanas mais tarde,
voltámos a encontrar Plamondon na sua casa de Montreal, que
fica perto de um belo parque. Tinha nevado. Debaixo das
árvores tinha uma pista de gelo para patinar onde alguns
jovens jogavam hockey. Luc tinha-nos escrito duas canções,
"Lolita" e "Incognito". A letra estava escrita à mão sobre
papéis amarrotados que ele deu a René.
René demorou o seu tempo. Eu
sentia que Luc estava nervoso. Ele oferecia-me champanhe e
canapés, ele levantava-se para arrumar um livro, para acender
ou apagar uma luz, mudar um enfeite de lugar. Depois René passou-me as folhas sem uma palavra. Mas eu via, no seu olhar,
que ele estava muito contente.
Quanto a mim, eu fiquei mexida.
Tal como Eddy, Luc tinha explorado os meus estados de alma.
O que ele tinha escrito estava tão perto de mim que eu não
poderia ficar mais profundamente mexida.
Luc sentou-se no piano e, do
melhor jeito que podia, tocou a melodia escrita por Jean-Alain Roussel.
[177] Eu cantei pela primeira vez a
letra de "Lolita" diante de René para o provocar. Eu não
estava olhando para ele mas eu tenho a certeza que cada
palavra penetrava nele e o perturbava.
Todas essas noites que passei sozinha acariciando-me
Eu quero que você me dê de volta, me dê de volta
Uma por uma
Todas essas noites sozinha no meu quarto escuro
Esperando que você me viesse pegar
Você ainda me fará esperar dias, meses?
Se você não vier, será outro
E será culpa sua, se eu me arrepender por toda a minha vida
Da minha primeira noite de amor…
Cantando, eu escutava René
falando para Luc que era isso mesmo que ele procurava para
mim. E, dentro de mim, eu perguntava-me:
"Qual é o joguinho dele? Se ele
acha que essa canção combina comigo é porque ele sabe a que
ponto eu o amo e a que ponto eu preciso dele."
Eu li baixo o refrão. Eu estava
furiosa. René tinha lido antes de mim. Ele devia saber bem o
que eu estava pensando. Era estranho, como uma declaração de
amor pública e impudica.
Lolita não é jovem demais para amar
Não é jovem demais para se entregar
Quando o desejo devora o seu corpo
Até na ponta dos dedos…
Ficamos silenciosos por um longo
momento. A mensagem era directa. Eu não tinha mais idade de
contos de fada mas idade de cair na cama com o homem que eu
amava.
Alguns dias depois do meu 19º
aniversário, lançámos o álbum Incognito, com grande pompa,
na discoteca mais popular de Montreal onde eu fazia a minha
primeira aparição pública em um ano e meio. Novo look, novo
som, nova equipa, nova gravadora, nova Céline Dion…
"Eu recomeço a minha vida do
zero", dizia a canção "Incognito".
Muito depressa os rumores
começaram a mudar. Um dia estávamos noivos. No dia seguinte
tínhamos casado em Las Vegas, depois de ter vivido em pecado
durante meses. Também diziam que eu nunca teria um
filho porque o René tinha feito uma vasectomia. Depois, olhe
o milagre, anunciavam que eu estava grávida dele e que
esperávamos gémeos.
Eu espero entender um dia essa
teimosia, que não deixa de ser empolgante, que têm os
tablóides, desde há 10 anos, de falarem que eu vou ter
gémeos.
No Québec ninguém mais duvidava
que o René e eu estávamos apaixonados. Muitas pessoas falavam
que nos tinham visto beijar num avião, numa rua de Paris,
num restaurante em Montreal.
Para a minha grande felicidade,
a vida por vezes acaba dando razão aos rumores e aos
tablóides. Como se ela tivesse prazer em imitar ou em imitar
os nossos sonhos mais queridos.
O álbum Incógnito foi procurar
todo o tipo de público. Como diziam os responsáveis do
marketing da CBS, "nós nunca tínhamos alcançado assim tão
grande". As estações de rádio rock, que sempre me tinham
ignorado, e as mais familiares e as mais correctas, que
sempre tinham sido fiéis, tocaram as minhas canções, tantas
vezes que, durante meses eu tive dois ou três canções
constantemente no top dos charts.
[179] Eu falo do Québec. Fora
daí tudo acontecia mais lentamente.
Na França, os programadores e
especialistas do mercado achavam que duas das canções numa
passariam, por causa da imagem e do som… Estranhamente, eram
as canções que tiveram mais sucesso no Québec, "Incognito"
e "Lolita", as duas escritas por Luc Plamondon.
René tinha-me deixado
sempre fora das críticas e dos problemas, ele nunca me teria falado
das dificuldades na França se não tivesse sido necessário ir
a Paris gravar duas canções para as substituir. Na época, as
cantoras de grande voz eram mal aceitas pelos franceses.
Desde Mireille Mathieu, agora relegada ao esquecimento do
show-business, a moda tinha passado para as cantoras que
sussurravam. A voz de Bardot e de Zazou faziam furor.
Quando entrei em estúdio para
gravar uma das canções que Eddy tinha escrito, Romano
Musumarra, que tinha composto a melodia, disse-me que eu
cantava demais. E ainda o consigo ouvir:
− Segure a voz, não dê tanto.
Ironicamente, a canção que eu
estava gravando se chamava "Je Ne Veux Pas" ("Eu não
quero"). Eu estava desapontada, frustrada e chocada.
Nunca aceitariam na França a
cantora pop que eu tinha vontade de ser. Nunca aceitariam
que eu tinha mudado. Desejariam que eu continuasse sendo
ingénua, a menina frágil e sonhadora que eu não era mais e
que eu não queria ser mais.
Eu descobri mais tarde que foi o
meio artístico que se enganou. Foram os profissionais da
música, com quem trabalhamos na época, que, na minha
opinião, tiveram falta de audácia e imaginação.
No Canadá inglês, a situação não
era melhor. Era a indiferença total. Mas isso não era
surpreendente. Esse país sempre teve duas industrias do
disco, dois sistemas de celebridade, duas solidões, como
dizíamos na época em que, muito mais do que hoje em dia, se
ignoravam totalmente. Para um artista do Québec se fazer
ouvir por todo o público canadiano era preciso sorte ou um
milagre.
No entanto, eu tive dois
milagres. Foram eventos dos quais eu tive a sorte de
participar e que me permitiram, muito rapidamente, que eu me
desse a conhecer ao meio e ao público canadiano falante da
língua inglesa, e a algumas pessoas importantes americanas
que me iriam abrir as portas nos Estados Unidos, as grandes
portas.
No começo do Verão, a CBS-Canadá
teve a sua convenção anual em Estérel, um grande hotel em
Laurentides, no norte de Montreal. Enquanto artista da casa,
eu tinha direito a uma curta apresentação, o que chamamos
showcase. De tarde, eu interpretei duas ou três canções, que
foram acolhidas educadamente. Todo o mundo sabia que isso
não ia longe. A maioria dos profissionais da música, vindos
de Ontário e das províncias do oeste Canadense, não
compreendiam as letras das minhas músicas. E mesmo se eles tivessem compreendido, mesmo que
eles tivessem achando interessante, não havia lugar para as
minhas canções nas suas rádios. Passavam pouquíssimas
canções em Francês.
[181] A grande estrela dessa convenção
era Dan Hill, com o grande sucesso do Verão "Can’t We Try",
que ele cantava em duo com Rhonda Shepard. Por razões que eu
ignoro, Rhonda não veio a Estérel. Desde que soube disso,
René tinha contactado Hill, o manager de Hill e o presidente
de CBS, e ele tinha proposto que eu cantasse a canção com
Dan. Ele pediu que isso não fosse anunciado. Seria uma
surpresa.
− Isso cria efeito – dizia ele.
Na véspera, eu tinha ensaiado
com Dan. As nossas duas vozes casavam bem e a canção tinha
um tom onde eu me sentia à vontade.
René tinha voltado à sua
filosofia de colocar a fasquia bem alta. Durante os dois ou
três dias que precederam a convenção, ele não parou de me
repetir que seria um momento crucial, que eu não teria outra
chance assim por muito tempo.
− Se você não faz a sala
levantar, a gente volta para a estaca zero e vamos ficar lá
por muito tempo.
A estaca zero era o território
de Québec, onde tudo estava ganho e adquirido. Eu era uma
estrela estabelecida, eu tinha vendido várias centenas de
milhares de álbuns. Dia e noite as minhas canções tocavam na
rádio.
Mas eu também estava intoxicada
pela ideia de ir além, de ver outros públicos, conhecer
outros desafios. Nós queríamos sair do Québec, o René e eu.
E depois, na França eu não era mais acolhida tão bem quanto
na época de "D’Amour ou D’Amitié"… os meus
últimos álbuns não tinha vendido muito bem. René nunca me
falava disso. Mas eu não era mais convidada regularmente
para as grandes emissões de televisão, nem era o objecto de
longas reportagens nas revistas parisienses.
Nós preparamos nesse Verão um
grande programa de televisão para a Radio-Canadá ao mesmo
tempo que preparávamos uma grande tour no Québec. Mas, sem
perspectiva de sair do Québec, esses projectos pareciam-me
ridículos, mesmo a gente dispondo de enormes meios técnicos
e financeiros para os realizar.
Certas pessoas consideram a
ambição um defeito grave. Eu não. Em todas as entrevistas
que eu dava eu nunca escondi o meu grande desejo de vencer.
Eu dizia claramente que o meu objectivo era ser, um dia, a
maior cantora do mundo. E isso chocava umas "almas puras".
Aos olhos de muitos, essa
ambição tinha algo de chocante e vulgar. Os jornalistas da
media chamada "cultural" ou intelectual, olhavam-me com um
sorriso de gozo. Eu não lia o que eles escreviam mas eu
adivinhava, pelas suas atitudes, o que eles achavam de mim.
A minha ambição parecia-me vital
e necessária e, por isso, legítima. Eu sentia-me como um
animal numa jaula. Eu amava profundamente o Québec. Eu terei
sempre as minhas raízes, eu nunca as negarei. Mas eu queria
sair, conhecer outras coisas. O que eles chamavam de
ambição, para mim era a necessidade de ar e de liberdade, de
grandes espaços, a necessidade de poder fazer escolhas…
Chegada a noite, em Estérel, eu
cantei esse dueto como se a minha vida dependesse disso. Com
toda a raiva que tinha dentro de mim. E a sala inteira
explodiu. Todos eles se levantaram para nos aplaudir, ao Dan Hill
e a mim. Essa vez não era apenas para ser educado, como na
noite anterior.
[183] Era um público pequeno, quem sabe umas 150 pessoas mas
eram todos importantes e profissionais da música no Canadá,
alguns dos Estados Unidos. Agora eles sabiam, na CBS, quem
eu era.
René esperou-me na saída do
palco. Ele pegou-me nos seus braços, docemente. Ficámos
abraçados por um longo momento no meio de todas essas
pessoas que nos rodeavam: felicidade pura. Estávamos tão
empolgados que só saímos da sala muito depois de todas as
pessoas. Era como se não quiséssemos sair daquele lugar onde
se tinha decidido o nosso futuro, porque era assim que eu
encarava esse dia. René não falava. Ele nem ficava no mesmo
lugar, ele caminhava ao longo e ao largo do pequeno palco
onde eu tinha cantado. Ele ria. Eu esperei… mas ele não
voltou a abraçar-me.
Nós sabíamos que a CBS devia
respeitar, mais do que nunca, o seu compromisso de me fazer
gravar um disco em Inglês. Os projectos que tínhamos, o show
de televisão da Radio-Canadá e a tour no Québec apaixonavam-me de novo.
Ao longo das semanas seguintes,
na Radio-Canadá, eu trabalhei com documentalistas e com o
director na concepção dessa emissão. Eu descobri, com essa
emissão, um grande prazer em ser actriz e de entrar em
personagens diferentes. Durante as primeiras reuniões,
durante horas, eles perguntaram-me o que eu tinha vontade de
fazer e de ser. Eu respondia que queria fazer tudo. Eles
ficaram um pouco loucos. Eu dizia:
− Eu quero fazer rir, eu quero
fazer chorar, eu quero dançar, eu quero cantar rock e ópera,
canções novas e velhos sucessos, em Francês e em Inglês.
Eu queria ter muitas fantasias e
representar personagens como Garbo, uma Lolita, uma
puritana, uma madame dos subúrbios, uma maria-rapaz, uma
ingénua, uma roqueira.
De facto, o que eu queria, antes
e acima de tudo, era seduzir René Angélil. O melhor jeito
era ser todas as mulheres ao mesmo tempo. Quem sabe eu não
dizia isso a mim mesma na época, mas isso parecia-me evidente
hoje em dia.
René cuidava sempre de tudo. Ele
tinha que aprovar cada uma das minhas roupas. Eu tinha
preparado uma meia dúzia, com os documentalistas, com o
director, com as costureiras. Um dia, eu fiz para ele um
desfile de moda num local sem alma, iluminado por néon, no
segundo ou terceiro andar do subsolo da Radio-Canada. Eu
tinha duas roupas muito ousadas que eu amaria usar mas que
ele recusou logo. Para ele, isso chocaria as pessoas. A
emissão que nós estávamos preparando estava destinada ao
grande público familiar do domingo à noite.
− Não é necessário chocar quando
se tem uma voz como a sua.
Eu fiquei desapontada. Eu queria
ter chocado um pouco. O que me consolava era que ele me
tinha visto. E eu não o tinha deixado indiferente. Uma
menina sabe ver essas coisas.
O álbum Incognito ainda não
vendia no Canadá onde se fala inglês. Mas estava indo tão
bem no Québec que aparecia no topo das vendas do Canadá e,
sendo assim, merecia o prémio Juno para o álbum mais vendido
do país.
[185] Mesmo
se praticamente ninguém o tinha comprado fora do Québec, da zona francesa de Ontário e de Acadie. Eu então
teria direito a uma aparição na gala dos Juno, o evento
mediático mais importante da música canadiana. Eu seria
então nesse Outono, em Toronto, a franco-canadiana de
serviço.
A tradição exigia que eu
interpretasse o meu maior sucesso. Eu poderia escolher entre
"Incognito", "Lolita", "Jours De Fièvre" ou "On Traverse Un
Miroir", que tinha ficado durante meses no top. Todos os
anos um cantor ou uma cantora do Québec ia interpretar a sua
canção de três minutos em francês na gala dos Junos. Era uma
perda de tempo. Todo o mundo sabia disso. No Québec ninguém
assistia à gala dos Junos. Os canadianos que não falam francês
não escutam as canções em francês da gala.
Desde o momento em que nos
chegou o convite, René informou os organizadores da gala que
eu cantaria uma canção em Inglês. Senão não iria. E eles
tinham que aceitar.
Nós primeiro pensamos num
clássico. É mais fácil comover o grande público com uma
melodia que ele conhece. Eu pensava em "The Way We Were" ou
em "Over the Rainbow", ou mesmo em "Boogie Woogie Chatanooga
Choo Choo", que eu esperava colocar no concerto da minha
tour.
Mas René meteu na cabeça que eu
devia cantar uma canção original, que ninguém conhecesse.
- Lembre-se, quando Eddy te
escutou pela primeira vez… Foi por você ter as suas próprias
canções que ele pode perceber as suas capacidades… Você
precisa de uma canção nova, e uma canção que te permita
mostrar o que você sabe fazer.
Apenas dois dias antes do
evento, Vito Luprano, director artístico da CBS, nos propôs
gravar "Have a Heart", a versão de "Partout Je Te Vois" do
meu álbum
Incognito. A
música, assinada por Aldo Nova, muito física, muito
espectacular,
muito exigente, tinha a grande vantagem de explorar todo o
registo da minha voz…
Partimos para Toronto num estado
de super empolgação que era quase insuportável. Mais uma
vez, iríamos jogar o tudo por tudo. Agora não era apenas os
profissionais da música que eu devia enfrentar, como em
Esterel seis meses antes, mas sim o grande público canadiano
e, acima de tudo, a media canadiana, que dava sempre grande
atenção à gala dos Juno. Das suas reacções dependia o nosso
futuro.
Eu estava fora de mim quando saí
do palco. Como sempre. Eu continuo cantando quando entro nos
bastidores, quando entro no meu camarim, quando subo para a
limusina, como se o fogo dentro de mim não se pudesse
apagar.
No dia seguinte, René acordou
quase de madrugada para procurar os jornais. Ele esperou
pacientemente que eu saísse do meu quarto para me dizer que
eu tinha triunfado. Ele tinha tido tempo de saber de cor os
artigos em todos os jornais que tinha encontrado. Ele tinha
mesmo ligado para Halifax, Montreal e para Vancouver para
saber as reacções por lá.
− Você roubou o show! – repetia
ele.
Durante a tarde, ele se
encontrou com os patrões da CBS.
[187] Para eles também René
elevou a fasquia. Ele pediu para investirem dez vezes mais
do que previsto no meu álbum em Inglês que eles deviam
produzir. E ele exigiu ter como produtor David Foster, o
menino prodígio da música nos Estados Unidos.
- Quanto ao dinheiro, não há
problema. – disseram os patrões da CBS – Quanto a David
Foster, é preciso que você e Céline encontrem uma forma de
se aproximar dele e de o interessar.
Foster não era, quem sabe, muito
conhecido para o grande público, mas no meio do
show-business, ele era uma estrela. Originário de Bristish
Columbia, ele tinha-se estabelecido em Los Angeles onde, já
nos anos 80, ele tinha trabalhado com os maiores:
Barbra Streisand, Nathalie Cole, Frank Sinatra, Neil Diamond
e Paul McCartney. Ele escrevia as letras, as músicas, fazia
os arranjos, produzia, realizava com eles álbuns de grande
qualidade.
− Ele é o melhor. – dizia René –
É dele que precisamos.
Mas isso não era fácil. Como nos
aproximarmos de um artista da envergadura de David Foster,
que já vivia no planeta Hollywood?
− Vamos achar um jeito.
Enquanto esperávamos por David Foster e a
bênção dos grandes patrões da CBS-Internacional,
continuávamos preparando o nosso show "Incognito". Eu diria
que, de todos os concertos que fiz na minha carreira, esse
foi o que foi preparado durante mais tempo e mais
minuciosamente. Nós dispúnhamos de uma máquina poderosa - 15
músicos, uma dezena de técnicos, iluminadores, engenheiros
de som, etc, um roteirista, um decorador, um escritor para
os textos de encadeamento, muitas roupas… E a presença
incomparável de Mego como chefe de orquestra.
Nós encontrámos-nos uma vez, ele
e eu, no local dos ensaios no Place Des Arts. Depois de 10
minutos, nós sabíamos que tínhamos sido feitos para nos
entendermos. Eu reencontrava com ele o prazer que tinha tido
antigamente ao fazer música com os meus irmãos e irmãs. René
teve que nos controlar no começo. A cada ensaio a gente
entrava em improvisações completamente dementes,
boogie-woogie, rock and roll… Além do seu lado de artista e
de louco, Mego tem muito rigor, sentido de organização e de
liderança. Ele também é um excelente homem de show, muito
engraçado, cheio de humor. Estar no palco com ele sempre foi
para mim um enorme prazer.
Desde esse dia (pouco antes do
Natal de 1987) e até eu entrar nas minhas férias em Janeiro
de 2000, Mego esteve em todos os concertos que eu dei, sem
excepção, bom tempo ou mau tempo.
Suzanne Gingue, a namorada de
Mego na época, fez todo esse caminho com a gente, como
directora da tour. Ela cuidava de tudo, desde as reservas dos
nossos quartos de hotel até à arrumação do meu camarim, a
montagem das decorações, a disposição dos meus estados de
alma…
Durante mais de dez anos, como a
pessoa que me vestia, como minha confidente e como minha
amiga, ela fez parte das pessoas que ficavam mais perto de
mim. Suzanne é viciada no trabalho. A gente dizia que ela
nunca dormia nem comia. Um puro espírito.
As recordações que eu tenho da
tour "Incognito" são de risadas loucas. Desde o nosso
começo, em Abitibi, como tínhamos começado na tour anterior,
a gente sabia que tínhamos um bom produto e um público já
conquistado.
[189]
Quando eu falo de risadas
loucas, não era apenas entre nós mas também com o público.
Eu fazia imitações (Fabienne Thibault, Julien Clerc, Michael
Jackson, Mireille Mathieu) que funcionavam mais do que bem.
Também me tinham escrito monólogos cómicos e muitos números
que eu fazia com Mego. Na maior parte do tempo, era à custa
das minhas próprias besteiras que eu fazia rir a multidão.
Alguns anos antes, René e eu
tínhamos sido recebidos pelo Papa. Tínhamos ido a Castel
Gandolfo, onde se situava a casa de Verão e a fazenda do
Santo Padre. Diante dos jornalistas que nos acompanhavam eu
tive a ideia de tirar leite às vacas do Papa e de beber
alguns goles de leite cru. O relato desse evento na media de
Québec tinha desencadeado uma tempestade de risada. Não
tinha sido esse o objectivo, tenho que dizer. Mas, nesses
casos, o melhor é enfrentar a situação.
No meu show "Incognito" eu recordava a minha "degustação do
leite papal", que ainda desencadeava muitas risadas. Mas,
dessa vez, sem maldade.
Eu falava também que agora fazia
parte das Choronas Anónimas. As CA, como os Alcoólicos
Anônimos (AA) reuniam-se regularmente para "aprender a
segurar".
− Na próxima semana vai fazer um
ano que eu não choro. – dizia eu – Eu estou bem melhor,
controlo-me, eu acho que estou a caminho da cura. A prova: eu
vou agora cantar sem problemas uma das canções mais tristes
do meu repertório, "Mon Ami M’a Quitté", que me fez chorar
tanto antigamente.
Tudo era escrito, não apenas a
música e as letras das canções mas também os textos de
encadeamento, os passos de dança, cada gesto, cada sorriso,
etc. Dava segurança e, ao mesmo tempo, era constrangedor,
quase sufocante. E sentia-me, em alguns dias, como se
estivesse acorrentada. Mas foi com "Incognito" que eu
aprendi de verdade a dominar um palco e compreendi que esse
era um lugar de poder. Eu aprendi, noite após noite, a
reagir com a multidão, a dominar as minhas emoções… e as
deles.
Foi durante essa tour que
comecei a praticar seriamente aquilo que eu chamo "os meus
pequenos rituais". Desde esse tempo, eu montei uma verdadeira
colecção. Eu não me lembro direito como isso começou. Mas
todos chegaram naturalmente, mesmo sendo completamente
irracionais. Várias vezes nós juntávamos à nossa rotina um
pequeno gesto ou olhar, um detalhe por vezes quase nem
visível. Uma vez adicionados, esses detalhes passavam a ter
uma importância absoluta. No fim, as nossas cerimónias
duravam vários minutos.
Antes de levantar as cortinas,
por exemplo, nós tínhamos um pequeno jogo, Mego, Suzanne e
eu. Quando tudo estava pronto, antes do director nos dar o
sinal, antes da sala ficar na escuridão, nós fazíamos
juntos uma espécie de dança encantatória. Depois eu
acompanhava Mego até no seu teclado, eu fingia tocar um
acorde ou desligar um dos fios que o ligavam aos
amplificadores. Mego fazia um ar catastrófico, imitando a
raiva e fazia-me sinal para desaparecer. [191] Depois eu passava
pelo palco todo, colocando o meu polegar direito sobre o
polegar direito de cada um dos meus músicos e coristas.
Eu encontrava Suzanne, debaixo
do palco. Ela dava-me o meu microfone. Antes de pegar nele,
eu apertava o braço dela três vezes. Depois eu voltava-me
para o René. Ele aproximava-se de mim. Ele beijava o meu
rosto, sempre primeiro do lado esquerdo. Ele colocava as
mãos sobre os meus ombros, abanava-me muito docemente,
olhando-me directamente nos olhos, com um ar muito sério.
Depois ele fazia-me dar meia volta, colocava-me de
frente para as escadas que levavam ao palco e empurrava-me
docemente:
− Ok, vai. É todo seu. Vai.
Com o tempo, os rituais
evoluíram. Mas tornaram-se incontornáveis. São jogos mas, ao
mesmo tempo, é sério, é essencial. Eu preciso, especialmente
em tour, quando todos os dias tudo muda – o camarim, o
quarto de hotel, o palco, a multidão - de me apoiar em
qualquer coisa permanente. Nesses rituais e nesses gestos
repetidos rigorosamente, eu achava alguma coisa para me dar
confiança.
Eu guardei durante muito tempo
comigo, num pequeno envelope de plástico transparente no
fundo da minha bolsa, uma moeda que eu tinha achado há anos
num palco em Trois-Rivières. Como sempre, depois da minha
segunda canção, eu tinha falado com as pessoas, para
agradecer por terem vindo, para dizer que os amava,
que estava feliz, quando me apercebi que na moeda brilhava
no limite do palco. Era a face da coroa. Era o castor, o
símbolo do Canadá, que enfeita a moeda de cinco centavos.
Quando a cortina desceu, eu debrucei-me para pegar nela. Mas René tinha-me metido na cabeça
que nunca devemos pegar numa moeda pela face coroa. Apenas
em cara.
− Não toque na coroa. Dá azar.
Eu peguei mesmo assim e lancei
de novo um pouco mais longe, duas vezes, até aparecer a
cara, com o rosto da Rainha de Inglaterra. Então eu peguei
nela e guardei.
Eu acredito que temos que criar
a nossa sorte. E, quanto a isso, como em muitas outras
coisas, só estamos bem servidos por nós mesmos.
Eu sei hoje em dia que os
rituais, os amuletos, mesmo as orações não nos podem proteger
sempre ou proteger quem amamos. O azar bate onde ele quer.
E, quando ele chega, o ritual não é suficiente. Temos que
agir. Temos que lutar.
Uma noite, ao chegar a casa, eu
encontrei a minha mãe tão pálida como assustava. Ela tinha a
respiração curta, o rosto cansado e, o que me preocupava
mais, ela estava sentada, ela que sempre está de pé,
correndo de um lado para o outro. O meu pai estava
desorientado. Contrariamente à minha mãe e a mim, ele fica,
nesse tipo de situações, incapaz de tomar uma decisão. Ele
não conseguia convencer a minha mãe, uma mulher muito
autoritária, hiperactiva, que se ocupa de todas as decisões e
que não aceita ordens de ninguém. Ela continuava dizendo que
era cansaço, que ia passar. Eu sabia, só de a ver e de
escutar a sua voz fraca, que o seu estado era sério.
[193] Naqueles vários filmes que eu
fazia na minha cabeça, eu tinha imaginado que a minha mãe
morria. Eu via-me do lado do seu caixão, completamente
paralisada pela dor, desfeita, afundada, evidentemente
incapaz de reagir.
Mas, diante aquela realidade, eu agi
de outra forma, sem pensar, com um sangue frio e uma
autoridade que me assustaram.
Eu liguei para o doutor Gaston
Choquette, que René conhecia. Eu marquei para a minha mãe o
encontrar na tarde seguinte no Instituto de Cardiologia de
Montreal. O pior foi para convencê-la.
− Eu tenho mais de 60 anos, eu
sei o que tenho a fazer. Se eu não tenho vontade de ver um
médico, eu não vou.
À parte do doutor Émile McDuff,
que assistiu ao nascimento dos 10 últimos filhos, e que
se tinha tornado um membro da família, a minha mãe nunca
tinha tido muito respeito pelos médicos. Ela não os
considera sábios infalíveis, diante dos quais temos que
fazer uma vénia. A minha mãe não faz vénias a ninguém.
Mesmo assim, eu não compreendia
a hesitação dela, até que o meu pai me disse que ela tinha
que tomar conta do filho de uma das minhas irmãs no dia
seguinte.
Cinco minutos mais tarde eu já
tinha encontrado um babá. E tinha convencido René a partir
um dia mais tarde para Chicoutimi, onde eu devia cantar dois
dias mais tarde. E eu fui com ela ao médico, que
diagnosticou uma insuficiência cardíaca. Ele hospitalizou-a
de urgência e operou-a na manhã seguinte.
Algumas horas mais tarde eu subi
ao palco em Chicoutimi. Eu sabia que a maman estava fora de
perigo. E recomeçámos a tour.
Quando voltámos a Montreal,
depois de ter feito a tour no Québec, o nosso show, letras,
músicas e rituais estavam sob controle. Reinava no nosso
grupo uma enorme cumplicidade. A força estava com a gente.
Era a felicidade, o triunfo. Todos nós sentíamos isso.
− Fale disso. – dizia-me René,
quando comecei a fazer a promoção do show em Montreal – Não
tenha vergonha de dizer que temos um bom show.
Eu não me privei de falar. Eu
detesto a arrogância mas também não gosto de falsa modéstia.
Eu estava contente com o meu show e dizia isso na
televisão, na rádio e nos jornais. Era o jeito de René, elevar a fasquia. Tínhamos que ter confiança em nós mesmos e
na nossa sorte.
Eu acho que os intelectuais
ainda não gostavam de mim. Eles acusavam-me de ser
comercial, o que, por outras palavras, significa que eu
estava tendo sucesso e gostando disso. Mas eu viajava na
sala, sempre cheia até arrebentar, e via pessoas de todas as
idades. Cada noite, depois do concerto, eu recebia no meu
camarim pessoas importantes do mundo do show-business, mas
também do desporto, da política e dos negócios.
Uma noite, Carol Reynolds,
responsável pelos programas da rede inglesa da Radio-Canadá,
estava entre eles, acolhedora e sorridente. Ela esperou que
todo o mundo saísse do meu camarim para me vir cumprimentar
e me dizer o quanto tinha amado o meu show. Fomos os três
num restaurante, eu, ela e o René. Foi um restaurante
italiano, na rua Saint-Denis, em Montreal. Ela queria produzir um
programa sobre mim para o público do Canadá Inglês.
[195] Eu falei
do projecto do meu álbum em Inglês e do desejo que tínhamos
de trabalhar com David Foster.
− David? Eu o conheço bem. Eu
devo-o encontrar na semana que vem em Los Angeles. Se você
quiser, eu falarei de você para ele.
Se eu queria? E como!
Carol saiu com o álbum Incognito
e uma fita de vídeo com a minha interpretação de Have a
Heart no Juno.
− Eu tenho a certeza que ele vai
adorar o que você faz – disse-me ela − Mas ele é muito
ocupado. Quem sabe se ele não estará disponível nos próximos
meses.
Pouco depois, alguns dias antes
do meu 20º aniversário, nós estávamos fazendo um teste de
som no teatro Saint-Denis quando eu vi René aproximando-se
de mim quase correndo. Ele aproximou-se de mim e segredou-me
ao ouvido:
− Eu acabei de falar com David
Foster. Ele escutou Incognito. Você sabe o que ele me disse?
Que você tem tudo para vencer nos Estados Unidos. Ele disse
que você tem o fator x, o que faz as grandes estrelas. E ele
quer trabalhar com a gente.
− Quando?
− Não antes do Outono.
− Mas o Outono é daqui a seis
meses!
− Seis meses passam depressa,
você vai ver.
Depois ele foi murmurar o seu
segredo a Mego e a Suzanne. Ao telefone, depois, aos seus
amigos, a Ben, a Marc…
Eu queria ter paciência. Mas eu
achava que já tinha paciência demais. No fogo da acção, o meu
amor não tinha progredido. René era carinhoso comigo, muito
doce. Mas eu acho que ele sabia me prever. Ele evitava ficar
tempo demais sozinho comigo. Ele sabia que não me escaparia.
Eu também sabia. Era uma questão de tempo, algumas semanas,
alguns dias. Era quase intolerável. Mas maravilhoso ao mesmo
tempo.
Depois de termos confessado o
nosso amor, René e eu falamos muito desse período da nossa
vida em que nos amávamos frtemente mas não dizíamos.
– Lembra do dia em que me veio
pegar em Duvernay? E o choque que você teve quando me viu?
− E você se lembra do momento
tão doce que passamos nos braços um do outro, em Estérel,
quando você cantou com Dan Hill para o pessoal da CBS?
− Sabe, eu nunca esqueci aquela
noite deprimente no restaurante, em Paris, quando você
decidiu afastar-se de mim.
− Sabia que eu nunca vou
esquecer o seu desfile de moda na Radio-Canada? Eu poderia
descrever cada uma das roupas que você usou.
− Mesmo as que você achava
bastante ousadas para a televisão?
− Eu nunca me vou esquecer
daquela
vez que você dormiu no meu ombro no avião que nos trazia de
Paris.
− Mas eu não estava dormindo no
seu ombro, meu amor. Eu estava fingindo.
Eu tinha deixado a minha cabeça
escorregar contra o seu ombro, porque eu sentia-me bem e
porque esperava, quem sabe, poder seduzi-lo.
[197] Eu olhava as
suas mãos que me excitavam infinitamente, mãos fortes com as
unhas bem arrumadas. E ele cheirava tão bem, tão fresco. Eu
sentia um desejo furioso de pegar a mão dele e de colocar os
meus lábios sobre ela…
− Se eu soubesse… − ele disse-me.
− Você não teria feito nada.
Você sabia que eu te amava há muito tempo e não fez nada.
Eu, contrariamente a ele, não
tinha sombra de hesitação. Nesse dia, no avião que nos trazia
de Paris, eu sabia que estava apaixonada por ele para sempre
e que qualquer coisa teria que acontecer mais cedo ou mais
tarde… Eu não tinha experiência nenhuma (apenas teoria)
sobre as coisas do amor mas eu estava muito determinada.
René tinha muita experiência mas
ele se comportava como um adolescente assustado, cem vezes
mais intimidado do que se ele estivesse perante uma mulher
da sua idade. Ele tinha medo do que as pessoas diriam, medo
de me fazer mal, medo que eu, aos 30 anos, estivesse com um
homem de 56.
Mas eu sabia que ele estava
"preso". E eu esperei pela hora certa. Ela chegou
finalmente.
Foi em Dublin, no inesquecível
dia 30 de Abril de 1988, na noite do concurso da Eurovisão
onde, como Canadiana, eu representei a Suíça! Com uma canção
escrita por uma Italiana e por um Turco.
A minha mãe tinha sido operada
ao coração algumas semanas antes. Eu sabia que ela precisava
de repouso. Eu então recusei que ela me acompanhasse em tour,
especialmente por uma rápida viagem de ida e volta para o
outro lado do oceano.
Nós vivemos nesse dia um
suspense inacreditável. Até ao último momento, nós tínhamos
acreditado que o primeiro prémio iria para o representante
de Inglaterra. Eu lembro-me que a sua canção se chamava "Go",
o meu número da sorte em Japonês. E eu via nisso um mau
presságio. E mais, eu não gostava da canção que eu tinha
para interpretar. Eu a achava muito pomposa.
Depois da minha apresentação eu
fiquei nos bastidores com os outros concorrentes. Nós víamos
o director de TV e o director do palco explicando ao Inglês
como entrar no palco quando anunciassem o nome do vencedor.
Ele parecia ter certeza que iria vencer. Eu estava
resignada. Eu apenas desejava uma coisa: ficar com René, que
estava desfeito. Nós iríamos viver juntos a nossa primeira
derrota. Eu faria disso uma vitória pessoal. Eu esconderia
as minhas lágrimas e o consolaria como uma mãe…
Mas os juízes de dois ou três
países ainda não se tinham pronunciado. Eles deram-me a
vitória por um ponto.
Quando fui pegar o meu prémio,
eu desfiz-me em lágrimas diante do público do Simmonscourt e
de centenas de milhões de Europeus que assistiam à gala pela
televisão. Eu pronunciei agradecimentos mais ou menos
coerentes e saí do palco quase correndo. Quando encontrei
René, eu joguei-me nos seus braços e, ainda chorando, eu
apertei-o fortemente e beijei-o no pescoço. Eu estava no máximo
da felicidade.
Ele deixou acontecer. Ele estava
rindo.
Como sempre, ele acompanhou-me
ao meu quarto e começou a relatar-me o dia que tínhamos
passado juntos, o grande medo que ele tinha passado.
[199] Ele lembrou-me da importância dessa vitória, que me asseguraria,
segundo ele, uma boa exposição na Europa. Ele repetiu-me,
pela centésima vez em duas semanas, que a gala da Eurovision
era um dos eventos mais assistidos no mundo, depois dos
Jogos Olímpicos e da cerimónia dos Óscares. Ele falou-me também
de outros participantes, aqueles que tinham cantado bem,
daqueles que não iriam longe. E eu não sei mais do que ele
falou. Eu nem estava escutando bem. Eu deixava-me
embalar pela voz dele.
Eu estava sentada na cabeceira
da cama, com as pernas dobradas debaixo das cobertas. Estava feliz por estar sozinha com o homem que eu amava. E
tinha um plano muito preciso.
Eu percebi que ele estava
calado, que o silêncio nos envolvia. Ele continuava lá,
sentado sobre o braço da poltrona, bem perto da minha cama,
sem dizer uma palavra. Eu olhei para ele com o meu sorriso
de mulher. Eu acho que ele percebeu nesse momento que eu não
tinha escutado nada durante muito tempo e que estava
pensando em outras coisas. Ele baixou os olhos. Eu sentia
que tinha mexido com ele, directamente no coração. Ele
levantou-se, recuou para a porta com dois ou três passos, como
para se escapar de mim, e desejou-me boa noite.
Eu não podia deixar essa
oportunidade passar.
Todas as noites desde a nossa
primeira tour, três anos antes, ele desejava-me sempre boa
noite e beijava-me no rosto duas vezes. Desde há alguns
meses, especialmente durante a tour "Incognito", eu tinha a
impressão que os seus beijos escorregavam todos os dias
alguns milímetros para mais perto dos meus lábios, até que
algumas vezes as nossas bocas se roçaram.
E agora, nessa noite de glória e
de vitória, ele ia sair sem sequer me ter beijado!
Ele já tinha a porta aberta. Eu
saí da cama, eu aproximei-me dele, eu encostei-me a ele.
− Você ainda não me beijou, René
Angélil.
Eu peguei a cabeça dele entre as
minhas mãos e beijei-o na boca. Pendurei-me no seu
pescoço… ele apertou-me muito forte nos seus braços, a porta
ainda aberta. Depois ele desfez o meu abraço. Ele fugiu para
o seu quarto. Eu fiquei um momento, sozinha, o coração
batendo, tremendo, sem ar.
Eu sabia que tinha vencido. A
fuga dele tinha sido uma confissão.
Eu peguei o telefone. Eu liguei
para o quarto para lhe dizer:
− Se você não voltar aqui
imediatamente eu vou bater na sua porta.
Mas ele não atendia.
Foi ele quem me ligou alguns
minutos mais tarde, do hall do hotel, para me perguntar se
eu estava bem. E então ele disse-me:
− Se você quiser de verdade, eu
serei o primeiro.
E eu respondi:
− Você será o primeiro. E o
único. |