Uma linda manhã no ultimo Inverno
apareceu um manatim no canal mesmo atrás da nossa casa em
Júpiter, na Florida. Eu fiquei lá durante horas, como se
estivesse à espera de alguma coisa. Ou de alguém. Assim que
entrei na água, ele começou a vir na minha direcção. Falei
com ele e nadamos juntos por um tempo.
Isto não foi um grande feito. Muitas
pessoas no sul da Florida divertem-se a nadar com manatins.
Eles são simpáticos, grandes, animais muito afectuosos a que
nós chamamos vacas do mar. As pessoas dizem que eles vêm da
lenda das Sereias por causa do doce e inserto barulho que
eles fazem.
Este acontecimento fez-me ter a
noção do quanto eu mudei durante estes últimos meses. Quando
trabalhava na minha carreira de cantora, tinha que tomar
precauções, a ideia de entrar em agua gelada e fazer amizade
com um animal desconhecido nunca me teria chegado.
Mas, naquela manhã eu não trabalhava
à mais de três meses e já estava a fazer todos os géneros de
coisas que antes tinham sido quase inimagináveis, coisas que
muitas vezes achei surpreendentes.
Enquanto nadava com a minha sereia,
uma corrente de memórias estalaram na minha cabeça, claras e
precisas imagens da minha infância, do verão, de felicidade.
Eu tinha oito, nove, dez anos de
idade. Estava num pic-nic com os meus irmãos e irmãs nas
Laurentides, no norte de Montreal. Havia quintas, cavalos
que eu e as minhas irmãs montávamos. Eu vi tudo isto de
novo, muito claro. Eu vi-me a subir às arvores, a nadar no
rio, a andar nos bosques. E estava a dizer a quem me ouvia
que um dia eu compraria um cavalo, assim que ganhasse o meu
primeiro dinheiro como cantora.
E depois esqueci isto tudo,
preocupada com outro sonho de vir a ser cantora, um sonho
que deixou espaço para mais nada na minha vida. Alguns anos
mais tarde, quando recebi o meu primeiro dinheiro os meus
pensamentos já estavam noutro lugar. Em vez de um cavalo, eu
comprei, para mim, um par de saltos altos.
Agora, vinte anos mais tarde isto
estava tudo a saltar da minha memória. Aquele cavalo que eu
nunca comprei e no qual nunca voltei a pensar, a luz do
verão, a frescura e o cheiro dos rios e lagos das
Laurentides, a fragrância da terra e do feno cortado. Mais
uma vez eu vi o caminho que nos levava ao rio, a canoa
virada na praia, o riso das minhas irmãs, as espessas
arvores de onde os meus irmãos caíam, os seixos, a areia os
arbustos de framboesa que arranhavam as nossas pernas, o
estalar dos ramos queimados nas fogueiras que fazíamos
durante as noites passadas na praia.
[3]
E todos juntos a cantar
pela noite dentro, olhando as estrelas cadentes e luzes do
norte.
Quando sai do canal depois de dizer
adeus à minha sereia, eu não falei nem tinha estado falar. A
minha cabeça estava tão cheia de com aquelas memórias que eu
não quis perder uma única gota. Eu queria manter estas
imagens em mim tanto quanto eu pudesse, para revê-las uma
por uma e talvez relembrar outras.
Eu acho que isto não foi nostalgia,
mas antes um tipo de curiosidade à volta de um período muito
distante da minha vida que eu pensei ter esquecido e, em
nenhum caso pensei neles tão intensamente. Era como seu eu
estivesse a ver e a ouvir a verdadeira vivência daquela
pequena rapariga que eu tinha sido, sentindo-a muito perto
de mim outra vez, tão perto que eu pude reconhecer os seus
sonhos, os seus desejos, os seus planos. E eu senti-me uma
daquelas pequenas bonecas que contêm uma série de outras
pequenas bonecas, umas dentro das outras, com aquela pequena
Celine dentro de mim.
Mas estas imagens começaram
rapidamente a perder a cor e a clareza. Depois eu pensei,
durante dias sobre a minha infância e todo o percurso que eu
tinha feito. Sobre o que eu tinha sido e feito ou tentei
fazer em 20 anos, começando com as minhas primeiras
actuações e o primeiro par de saltos altos.
E continuava a perguntar-me o que eu
queria e continuava a sonhar tanto com tudo isto, com tudo o
que me aconteceu. Porquê, aos 20, 15, aos 12, mesmo aos 8
anos, eu pensava, e mesmo aos 5 e queria tanto ter sucesso,
porque é que eu sonhava tanto em tornar-me uma cantora
famosa que seria ouvida em todos os cantos do planeta.
Nem todas as pessoas são levadas por
uma tão grande ambição. Muitos rapazes e raparigas jovens
passam muito tempo a perguntar o que querem fazer. Alguns
nunca encontram uma resposta. Mas eu sempre soube. Eu não
reclamo nenhum credito por isto. Eu sou como aquele boneco
Obélix, um carácter numa famosa e cómica fita francesa que
caiu numa poção mágica quando era bebé. Assim que nasci, eu
caí na musica, no mundo do “show business”. E dentro disto
eu sinto-me como um peixe na água.
Eu tenho amado cada bocadinho desta
vida neste período de paragem. Eu vivo os meus mais bonitos
sonhos muito intensamente –uma rara sorte. Tenho estado
completa emocionalmente, profissionalmente, artisticamente e
sempre estarei. Eu amo e sou amada. Eu canto e isso é a
minha felicidade. Eu agradeço por isto todos os dias.
E depois, eu conscientemente decidi
deixar esta vida. Por um ano ou dois. Pela primeira vez em
quase 20 anos, não há nada
na minha agenda, nenhum encontro,
nenhum concerto a chegar, nenhuma entrevista, nenhuma sessão
de gravação, nenhuma gala. De agora em diante eu posso viver
a minha vida um dia de cada vez.
Há um ano atrás, tal liberdade
ter-me-ia carregado de angustia.
Mas tantas coisas aconteceram no
curso deste ano. Eu já não era a mesma pessoa, eu sabia.
[5]
Eu
já não tinha os mesmos medos, as mesmas apreensões. E estava
confiante, feliz com a descoberta da minha nova liberdade e
com o que me esperava.
Acredito que viver é mudar,
descobrir o que é novo e encontrar surpresas em tudo, na
musica, na nossa vida e no amor…
Por muito tempo, eu não pude pensar
em toda esta felicidade na minha vida e carreira sem sentir
uma espécie de medo e ansiedade, sem fazer a mim mesma 1001
questões para as quais eu não encontrava resposta.
Isto ia durar? O que farias, serias,
onde irias quando já tivesses realizado os teus sonhos mais
apaixonantes? Tinhas que ficar ali e só esperar ver as
nuvens passar? Podias encontrar outros sonhos para realizar?
Outras vidas para viver? Há vida depois do sonho, depois do
“show business”? Fora do “show business”?
E o que iria eu fazer depois desta
pausa? O que teria eu que dizer, que cantar? E estaria eu
capaz de encontrar a audiência que deixei para trás na noite
de 1 de Janeiro de 2000? Estaria eu preparada para me voltar
a encontrar com eles? Acharia eu que nós ainda estamos na
mesma onda?
Eu cantaria sempre. Isto era obvio
para mim. Este período é apenas uma pausa. Mas eu não podia
parar de pensar que eu não seria a mesma no fim disto.
Por mais de um ano, por imensas
razões, nós “adiávamos” os dias, mês após mês. Cada vez mais
eu percebia que estava cansada, mesmo que não me preocupasse
com isso. Isto eram as causas de um estranho dilema. Cada
vez mais eu queria parar, descansar, recarregar e estar
sozinha com o homem da minha vida. Eu queria tirar proveito
da minha carreira, da minha vida, dos meus amores e ao mesmo
tempo fazer tal coisa assustava-me.
Pensei em tudo o que estava a deixar
para trás - o palco, a multidão, a incrível vida excitante
de viajar, noites passadas nos estúdios com os músicos, a
vida de uma artista e viajar a volta do mundo.
A cada performance, assim que a
contagem decrescente começava havia apertos no meu coração,
assim que experimentava o contacto mágico com o público,
quando realmente ligávamos e estávamos tão perto, tão
unidos, a corrente entre nos corria perfeitamente.
Fazer uma audiência ficar em pé é
uma experiência fantástica que nada neste mundo pode
substituir. E eu penso que vou ter saudades destes momentos
estupendos. No final de cada show, eu sempre digo ao
publico: “eu vou leva-los comigo. Vocês estarão sempre no
meu coração”.
Portanto eu saía com todas aquelas
pessoas no meu coração. Tudo o que eu precisava fazer era
fechar os olhos e sentir a presença deles, para os
ouvir…ainda agora, nem mesmo uma memória feliz pode
substituir a realidade; nunca é tão agitado, tão emocionante
ou tão real. Todas as memórias, mesmo as mais fortes e
estimadas, acabam inevitavelmente por perder clareza e cor.
Eu atravessei extraordinárias
experiências ao vivo. Viajei pelo mundo, conheci pessoas que
nunca vou esquecer. Eu fui sempre mimada, amada, aclamada.
Mas havia sempre medo do palco,
pressão, todos os dias maiores audiências, maiores estádios.
[7]
E tem sido aterrador. E tem sido bom, muito bom.
Eu tornei-me numa verdadeira
stressada. Precisava da minha dose todos os dias. Sempre que
parava entrava numa “depressão” e não me sentia bem comigo
mesma. Os maratonistas que são impedidos de correr ficam
mal. E dizem que ninguém fica mais deprimido que um ciclista
que termina o “tour” de França, mesmo que ganhe.
Por isso, a expectativa de viver
livre de stress, calada, com uma vida confortável parece-me
stressante.
Acho que vou ter que lutar para
descomprimir do stress e disciplina, para esquecer a minha
voz, para ficar livre disto. Durante mais de metade da minha
vida eu tenho sido uma escrava da minha voz, uma feliz e
tolerante escrava que tem medo da ideia de viver em
liberdade.
O que vai acontecer na minha cabeça e coração
quando estiver privada desta doce escravidão, desta tensão,
deste tremendo sentido de glorificação que se sente quando o
público fica “selvagem”?
Para me tranquilizar, claro, eu
preparei um horário detalhado para viver. Eu planeei o meu
intervalo. Vi como tudo se ia passar, tal como fazia com os
meus shows.
Mas não pude, especialmente nos
primeiros meses, chegar a nenhum acordo.
Um dia jurei a mim mesma que não ia
cantar uma nota durante todo o tempo em que eu parei a minha
carreira. Depois, no dia seguinte disse a mim mesma que
nunca seria capaz de resistir se alguém me oferecesse uma
grande parte num filme ou uma linda musica para gravar ou
uma aparição num grande show com artistas que eu admiro.
Ao fim, todas as especulações se
tornaram erradas.
Eu disse a mim mesma “Nenhum treino
vocal, menina, nem longos silêncios para descansar a tua
voz. Já não é preciso. Acabou a disciplina, o treino. Vais
jogar golfe todos os dias, e para manter a mente ocupada
vais ter lições de espanhol e desenho.”
Até comprei lápis de cor, pastéis,
carvão, aguarelas e papel de desenho.
“Também vais ter lições de piano. E
vais ouvir tudo o que se fizer de novo na musica, bom ou
mão, para ficares ligada ao show business””.
Eu comecei a fazer uma lista de
álbuns que queria ouvir.
“E vais dormir até tarde, o dia todo
se quiseres.”
Eu mal tinha começado a minha nova
vida e já sabia que as coisas iam ser diferentes. E que não
iam ter nada a ver com o que eu tinha imaginado.
Contrariamente ao que esperei tudo
correu calmamente, sem tristeza ou dor. Eu entrei neste
período de paragem como se fosse um óptimo banho quente.
E
sabia que nada me ia aliciar a sair mesmo que me fosse
oferecida a possibilidade de cantar na lua ou em Vénus, na
frente de uma audiência de extraterrestres.
Para meu espanto e para surpresa de
René eu comecei a acordar cedo…e bem disposta. No passado,
ficar totalmente acordada teria levado horas. Quando
acordava não falava com ninguém e não queria que ninguém
falasse comigo.
[9]
Eu realmente detesto as manhãs. Sempre que
possível, eu passo-as a dormir. Tomo sempre o pequeno almoço
sozinha. E agora aqui estou, em licença, sem absolutamente
nada para fazer, em pé ao amanhecer, ouvindo os pássaros a
cantar ou a ver as minhas flores abrir ou a preparar sumo de
laranja ou café para todo o pessoal da casa.
Três
meses depois do inicio desta vida eu não estava a ouvir nada
de musica -nem a minha nem de mais ninguém –e só dava uma
olhada em revistas de moda. Eu acreditava que nunca seria
capaz de ficar em silencio, e estava e estava agora a passar
longas horas, ate mesmo dias, sem dizer uma palavra, só pelo
prazer disso, pela paz, pela doçura. E não sentia saudades
do palco ou do medo do palco.
Eu adiei as minhas lições de
espanhol até à primavera, depois verão, depois Outono,
depois para o próximo Inverno. Eu nunca desembrulhei os meus
lápis de cor e os meus pasteis. Depois de duas ou três
semanas em total inactividade, eu comecei a cantar outra
vez, constantemente, em todos os sítios, no chuveiro, no
campo de golfe, enquanto conduzia, na cozinha. E isto deu-me
uma fantástica sensação, uma nova, inesperada alegria.
Até comecei a treinar a minha voz
outra vez e a fazer os meus exercícios vocais outra
regularmente. Eu fiz isto e assim não perdi aquilo que
adquiri, mas também pelo simples prazer que vem do treino. E
passava noites inteiras vendo televisão, algo que nunca
tinha feito na minha vida. Com René, eu seguia do principio
ao fim os jogos do National Hockey League. E eu amava.
Estou bem em ser feliz. A felicidade
vem em ondas sempre inesperadas e inexplicáveis. Eu não
estou a falar sobre o doce e superficial sentimento que vem
com um álbum de platina ou uma boa critica, mas sobre a real
felicidade que vem e vai sem avisar.
Nunca tive esta sensação tão perto
da mão, tão reconfortante como senti no Inverno de 2000,
durante os primeiros meses da minha pausa na carreira.
Eu tinha vivido os piores momentos
da minha vida. E ainda assim, eu via algo bom, algo bonito e
com sentido em todo o lado, mesmo nos momentos difíceis que
tínhamos atravessado…
Ao
principio, tal ideia teria sido impensável, quase monstruosa
mas, bocadinho a bocadinho, comecei a aceitar. Hoje eu sei
que há qualquer coisa boa em toda a desgraça. E agradeço
pela desventura que nos aconteceu, porque isto
transformou-nos.
René, o homem da minha vida, da
minha vida inteira, estava seriamente doente. Juntos,
passamos por uma prova muito difícil e aparecemos mais
fortes, mais unidos, mais apaixonados que nunca. Contudo, eu
sei que daqui para a frente, a ansiedade vai fazer parte das
nossas vidas. Uma espécie de cuidado, sem duvida,
desapareceu para sempre das nossas vidas. Mas ao mesmo tempo
eu sabia que era impossível experiênciar-mesmo durante a
mais difícil prova, mesmo no medo e na dor - óptimos momentos
de felicidade.
Porque nós nos amamos.
[11]
A nossa prova mudou-me mais do que
todas as minhas experiências profissionais. Graças a isto,
aprendi muito sobre mim, sobre o homem que amo, mesmo sobre
a vida. Também sobre a necessidade que ele tem de mim. Pela
primeira vez, ele deixou-se ir e confiou em mim, e chorou no
meu ombro. E disse-me que não podia viver sem mim.
Eu também tive a extraordinária
oportunidade de descobrir que há vida fora do “show
business”. Claro que eu sabia isto -na teoria – mas aprendi
isto a sério, no meu coração, através das minhas lágrimas,
através da esperança e da espera.
Na verdade, quando me retirei da
vida pública, já via as coisas diferentes.
Pessoas, a minha
profissão. E todos os meus projectos, incluindo ter um
filho, tomaram um novo rumo. A saúde de René tornou-se no
que mais contava para mim.
Apesar de tudo o que vivemos, ou
talvez por causa disso -eu nunca sei qual –nos redescobrimos
uma espécie de confiança na vida, um apetite de viver que
nos é oferecido, quer queiramos quer não, decidamos ou não.
Não desistimos da ideia de ter um
filho. No ano passado, alguns dias antes de René ter o seu
tratamento de quimioterapia, nos fomos a um banco de
esperma. Isto não é, obviamente, a mais romântica
experiência que um casal pode sonhar. Mas isto deu-nos a
confiança que , acontecesse o que acontecesse, o nosso sonho
mais querido era possível.
Mas eu recusei-me a acreditar que a
nossa felicidade dependia apenas daquela criança.
Claro, eu prometi a mim mesma que ia
começar todas as medidas necessárias assim que fosse
possível. O meu ginecologista, Dr. Ronald Ackerman,
explicou-nos por fim, os procedimentos da fertilização
in-vitro e da inseminação intra-uterina. E eu decidi
atravessar os primeiros degraus depois de alguns meses de
descanso. Se, depois esta criança se tornasse parte da minha
vida, tanto melhor. Se não, eu ia viver sem ele ou ela. Isto
foi o que eu disse a mim mesma. Eu especialmente não queria
culpar esta criança por ter nas suas mãos a minha
felicidade, mesmo antes de nascer. Eu não queria sonhar, nem
escrever nenhum cenário em particular. Eu queria tomar a
vida como ela viesse, e não como eu a tinha sonhado.
No ultimo Inverno, nos aprendemos a
aproveitar a vida como nunca. Eu também vi René mudar muito.
Ele começou a tomar o seu tempo vendo o pôr do sol,
golfinhos a nadar ou uma nuvem a passar. Ele também começou
a aproveitar ao máximo os momentos que passava comigo, com
os seus amigos, ou sozinho. Até o seu sorriso mudou, a sua
expressão. Estava mais ciente dos outros de que alguma vez
esteve, ciente da felicidade, especialmente. Ele encontrou
migalhas disto em todo o lado….e ele varreu-as
cuidadosamente. E ele próprio estava espantado.
Ao principio, eu não fazia nada
durante dias; eu vivo sem um plano, sem maquilhagem, sem
nada alem de calções e uma t-shirt, descalça. Eu não tinha
que vigiar os meus visuais ou gastar energia a encontrar
algo inteligente para dizer para agradar aos “media”.
E através de tudo isto eu descobri
pequenos prazeres que eu nunca pensei que tivesse, antes.
Eles são um sinal, eu acredito, de uma profunda mudança eu
ainda não entendi completamente, e que eu não estou
realmente a tentar compreender.
[13]
Por exemplo, quando as pessoas me
dão flores, eu nuca sei o que fazer com elas ou onde pô-las.
Eu cheiro-as rapidamente, mal olho para elas. Hoje, eu posso
passar horas fazendo e refazendo ramos, arranjos. Estou a
aprender os seus nomes, os seus cheiros. Eu vejo-as
crescerem nos meus canteiros, murchar e voltarem a crescer.
Eu leio livros sobre elas. Eu faço perguntas a jardineiros e
a floristas.
Ainda
mais, todos os dias à hora da ceia eu perco muito tempo com
a luz das velas em cada sala da casa e no pátio e nos
terraços. Eu estou a aprender a criar atmosfera, como por
uma mesa, receber convidados…eu…aquela que foi tantas vezes
a convidada…possivelmente vezes de mais.
E ao fazer tudo isto, eu descobri
aspectos no meu carácter que nunca tinha reparado ou nunca
tive tempo de ver. Alguns agradam-me, outros não.
Por exemplo, eu aprendi que sou
excessivamente preocupada com detalhes que são, muitas vezes
insignificantes. Mesmo ao ponto de me enervar comigo mesma.
Tudo tem que estar perfeito o tempo todo. Se eu notasse algo
errado - uma mancha de água numa parede, uma prega errada
num tecido, uma vela que não esta alinhada –eu não paro de
pensar nisso, eu fico obcecada, eu levanto-me para limpar a
mancha, para arranjar a prega e para alinhar a vela…se
alguém a minha
volta não esta a fazer bem o seu trabalho eu
peço-lhe para começar de novo, ou se eu não posso, eu vou
atrás dele e tento fazer melhor.
Outros dias, eu tento libertar-me da
minha tendência para corrigir as coisas. Eu vou conseguir,
devagar, mas de certeza. Eu nunca fui despreocupada, e nunca
gostei de desordem, mas acredito que posso ser mais
relaxada, deixar algumas folhas mortas cair no pátio e na
piscina sem pressa de as apanhar.
Todo o rigor e pormenor com o qual
eu pratiquei o meu cantar por quase 20 anos permaneceu
dentro de mim. E eu transferi-o para aquilo que agora me
preocupa mais - a saúde de René, primeiro a antes que tudo -
mas também os 1001 detalhes da vida diária - o manter esta
casa de Júpiter que eu tanto amo, os enfeites, as pinturas,
a mobília com que a decorei. Eu também me foco na casa que
estamos a construir em Quebéc. Eu quero ver tudo, perceber
tudo, participar em todas as decisões, ver os planos, o
sitio de construção e o design.
Eu admito que sou exagerada com os
detalhes. Eu sempre fui, mesmo em pequenina. Seu eu tivesse
a mais pequena mancha da ultima lágrima no meu vestido ou
pijama eu queria que a minha mãe ou irmãs me mudassem. Eu
preciso disto. Na minha casa, como nos meus pensamentos, eu
quero que tudo esteja impecável, limpo, preciso.
Isto é, sem duvida, a razão porque
as nossas reconciliações não duram mais do que as nossas
brigas de namorados. Quando discutimos, eu tendo a amuar um
pouco, mas depois eu quero que René me descreva, em detalhe,
o que ele sentiu. Eu quero saber se ele estava zangado ou
triste, quanto e à quanto tempo. E eu não descanso enquanto
a ultima nuvem persistir entre nós, enquanto continuar a
mínima confusão ou fricção nas nossas emoções.
[15]
Eu sou assim com toda a gente que
amo e com quem trabalho. E comigo. Eu gosto de ser orgulhosa
de mim mesma. E regularmente examino a minha consciência,
enquanto, no passado eu nem me interessava. Olhar para trás
nunca foi o meu forte.
Eu tento pegar na vida a medida que
ela vem. Mas não me proíbo de fazer planos. Há tantas
coisas, coisas que podem parecer simples e fáceis para
muitas pessoas mas que eu nunca conheci ou fiz antes porque
eu estava no “show business”. Um passeio numa rua cheia; uma
quente noite de primavera com velhas amigas; misturar-me com
a multidão sem ser reconhecida; ou um jantar em casa,
sozinha com o homem que eu amo; ir as compras sozinha; ter
uma bolsa cheia de coisas minhas, cartão de credito, chaves.
E não saber o que o amanha me vai trazer, e o que vou fazer
ou onde vou estar em 3 semanas, em 6 meses.
Também estou a planear em detalhe a
agradável viagem que eu quero fazer com René pela Europa,
visitar as cidades pelas quais passamos muito rapidamente,
de tal maneira que não tivemos tempo para as conhecer e
amar!
Eu quero visitar os museus mais
bonitos do mundo e os mais famosos castelos, com guias que
me vão ensinar tudo sobre os tesouros do mundo.
Eu a fazer planos, itinerários.
Penso no vestido que vou vestir e o que vou querer que René
vista quando formos passear, em alguma maravilhosa noite
suave, talvez em Veneza, mão na mão, sem guarda costas ou
fotografo, incógnitos. Nos vamos viajar muito devagar
desfrutando um do outro, desfrutando a vida, sem querer nada
em troca. Nos vamos ficar satisfeitos e felizes com aquilo
que a vida nos trouxer.
Mais uma vez a vida trouxe-nos mais
do que nos tínhamos imaginado. Algo incrível aconteceu, algo
que pode, muito bem ser o mais importante acontecimento na
nossa vida.
Em Maio, como planeado, eu
encontrei-me em New York com o Dr. Rosenwaks, um
especialista em fertilidade, de renome. Ele sugeriu que
tentássemos um novo método de fertilidade. A ideia era
isolar um espermatozóide e injecta-lo num ovo com uma agulha
extremamente pequena. O doutor, depois procederia à
colocação do embrião no meu útero.
Nos já tínhamos milhões de
espermatozóides num congelador. Agora a nossa preocupação
era eu produzir tantos óvulos quanto pudesse.
“Este método requer muita paciência
e coragem” disse-me o doutor
como se estivesse para me dar
um longo discurso sobre os tempos difíceis que brevemente eu
iria passar. Eu interrompi-o imediatamente “a minha mãe já
tinha tido 13 filhos quando ficou grávida de mim”, eu
disse-lhe “ e eu conheço-a o suficiente para lhe dizer, com
certeza que ela teve toda a coragem e paciência que
precisava.”
Eu não pretendo ser mais corajosa
que outra mulher mas eu estava em boa forma e tinha todo o
tempo que precisava. Mais, eu podia dar uma chance a esta
experiência sabendo que eu preenchia todos os requisitos. Eu
tinha tudo que precisava, mentalmente e fisicamente.
[17]
“Eu tenho que lhe dizer que é
impossível garantir o sucesso deste método”, disse o doutor.
“O sucesso avaliado para a fertilização in-vitro, por
qualquer outro método, continua apenas nos 25%”
“Tanto quanto eu sei, doutor, mesmo
o velha maneira natural nunca é 100% certa”.
“Exactamente”, ele disse, “mas o que
lhe estou a oferecer é um bocadinho menos agradável”.
Isso é verdade”
Para começar este processo, eu tinha
que preparar o meu corpo injectando-me a mim mesma todos os
dias com um “antiestrogenio” que iria regular e controlar a
minha ovulação.
Eu voltei a New York, onde comecei a
receber massivas injecções de hormonas que iam criar um
super ovulação. Quase todos os dias eu tinha que fazer
testes de sangue e ecografias para que os médicos pudessem
ajustar os meus níveis. Por causa dessas hormonas a minha
barriga inchou como um pequeno balão. Isto não era
certamente muito confortável, mas fez René e eu rir e
sonhar. Felizmente, eu não tive nenhumas tonturas e flashes
de calor que muitas mulheres têm durante este tratamento.
Quando o meu óvulo atingiu
maturidade, os médicos tiraram-no de mim e puseram-no num
tubo de teste. Depois eles iam pô-lo em contacto com os
espermatozóides. Isto aconteceu no dia 25 de Maio. Três dias
mais tarde, 3 pequenos óvulos estavam de volta para dentro
de mim. Com este método, eu podia possivelemente ter tido
gémeos ou trigémeos. Mas isso também podia ser problemático.
Por mais de um mês, até meios de Julho, eu injectei-me
diariamente com progesterona, uma hormona que assegura a
continuidade da minha gravidez.
Todos estes procedimentos não tinham
nada a ver com poesia. Era tudo muito técnico e frio. Nada a
ver com a beleza do acto chamado amor.
Mas René estava sempre do meu lado,
fascinado, carinhoso, e muito doce. Nos ultrapassamos todos
os passos juntos. Isto tornou-se no nosso sonho mais
querido. Nos falávamos todo o tempo os dois e com amigos. E
com o publico também. Nos nunca escondemos os nossos
problemas de fertilidade. E não íamos manter esta
experiência secreta. Nem os resultados –o que quer que eles
fossem.
Eu tive que passar alguns dias sem
me mexer para que os pequenos óvulos ficassem juntos. Eu
decidi seguir todas as regras muito cuidadosamente. Eu tinha
dito aos médicos: “eu quero por todas as oportunidades do
meu lado. Mesmo que seja difícil, mesmo que seja doloroso.
Se vocês quiserem eu posso parar de me mexer durante os nove
meses.
Eles não pediam tanto. Mas
avisaram-me mais de uma vez que eu tinha que ser muito
cuidadosa, especialmente durante o primeiro mês.
Na manha de 8 de Junho, Dr. Ronald
Ackerman entrou na minha casa de Júpiter. Ele tinha lá ido
no dia anterior, tinha-me examinado, e levado uma amostra de
sangue. Ele tinha saído dizendo que ainda ia demorar dois ou
três dias antes de ele saber se eu estava grávida ou não.
Ele tinha acabado de chegar quando
Alain, o marido da minha irmã Linda, me tinha vindo dizer
que o Dr. Rosenwaks estava ao telefone. Eu estava também a
falar com ele todos os dias. Esta manha, estranhamente ele
não me questionou sobre a minha saúde nem pediu para falar
com o Dr. Ackerman como ele sempre fazia.
[19]
Ele simplesmente
perguntou o que eu estava a fazer.
“almoçando,” eu respondi.
“O que?”
“Tostas, paté, chá”
“E René?”
“Eu penso que esta no escritório”
“E você?”
“Na cozinha com Dr. Ackerman.”
“É melhor chamar René”
“Ele pode falar consigo no
escritório.”
Ele estava para vir para a Florida e
pensei que provavelmente queria organizar um jogo de golfe
com René ou alguma coisa assim.
Mas ele hesitou uns segundos e
depois disse: “ Eu quero falar com vocês os dois juntos.
Quero que estejam na mesma sala.”
Eu chamei René pelo
intercomunicador. Eu tive dificuldade em não parecer nervosa
e excitada. Eu já, finalmente tinha percebido o que estava a
acontecer. Eu sabia que o doutor tinha grandes, grandes
notícias para nós. E Dr. Ackerman pode ver que eu sabia. Eu
podia vê-lo tentando evitar os meus olhos. Era obvio que ele
queria rir.
Quando René chegou à cozinha, eu
estava a tentar parecer muito calma. Ele também não tinha
nenhuma pista. Ele não sabia quem estava ao telefone.
Linda pousou o telefone e todos
pudemos ouvir o Dr. Rosenwaks a dizer: “Está ai, René?”
“Sim!”
“Está aí Ronald?”
“Okay, vamos.”
E quando estávamos todos juntos, Zev
e Ronald disseram-nos “Parabéns, namorados!”
Eu vi imediatamente os meus olhos
cheios de lágrimas. Ele veio perto de mim e tomou-me nos
seus braços.
“Está grávida, Celine” continuavam a
dizer Zev e Ronald.
“Parabéns para vocês os dois,” disse
René.
Mesmo
este sonho, que eu praticamente me proibi de ter por parecer
tão frágil, ia agora ser realizado. Eu ia ter um bebé com o
homem que eu amo.
Eu estava nos braços de René e ele
estava a rir por entre as lágrimas. Por algum tempo nós
continuamos abraçados no meio da cozinha.
Ambos sabíamos que não podíamos
esconder a nossa grande alegria por muito tempo. O segredo
era grande e lindo demais para mantermos só para nós.
Nos passamos o resto do dia ao
telefone. Telefonamos aos meus pais, para todos os meus
irmãos e irmãs, filhos de René, e para os nossos amigos em
Montreal, New York, Paris, Los Angeles, para lhes dar as
boas noticias.
Mas eles também não puderam manter o
segredo. À noite os escritórios dos nossos publicitários em
Montreal e Los Angeles estavam cheios de repórteres, e na
manhã seguinte tinha que haver uma conferência de imprensa
anunciando a minha gravidez.
[21]
Em qualquer caso, a nossa felicidade
tinha que ser conhecida. Por vinte anos nos partilhamos uma
espécie de intimidade com o grande público. Eu quero que
eles partilhem a nossa felicidade tal como partilharam o
nosso sofrimento.
Eu acredito que nunca devemos
esconder a nossa felicidade. Ela ilumina e alegra o mundo.
Mantê-la só para nós, é perde-la.
Nesse dia eu senti uma grande força
e paz tomando conta de nós. Definitivamente, isto veio de
algum lado. Mas eu sabia que René era quem tinha atraído
esta força e felicidade para nós.
Quando ficou doente, ele teve que
lutar. Não pôde desistir e deixar a nossa felicidade morrer.
Em vez disso ele escolheu lutar com toda a força. Ele fê-lo
por causa do seu amor à vida, pelo seu amor por mim e pelos
seus filhos e amigos.
E agora a vida que ele tinha tão
valentemente defendido estava a lutar e a crescer dentro de
mim. Isto seria a prova que precisávamos para acreditar na
felicidade, a prova que o amor existe com tanta intensidade
e tanto tempo quanto acreditares.
Duas semanas mais tarde vimos o
coração do nosso filho bater, um pequeno e rápido som. “142
batimentos por minutos. É muito bom,” disse um dos médicos.
Depois ele fez um pequeno calculo e
anunciou que eu daria a luz em 14 de Fevereiro de 2001.
Mais tarde, em Agosto , depois de
três meses de gravidez, nós ouvimos o seu pequeno coração
bater. A 162 batimentos por minuto, um forte pulso. Gravamos
isto e a partir daí ouvimos todos os dias antes de dormir.
Nós sabíamos que isto ia continuar
frágil, que precisávamos de paciência, paixão, alegria,
força e também muita sorte.
Mas também sabíamos que
independentemente do que acontecesse, a vida já tinha
triunfado.
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