Naquele tempo eu tinha doze anos. Maman já tinha grandes
perspectivas para mim. Ela queria fazer de mim aquele género
de cantoras que podia vender no Place Dês Arts, em Montreal,
por três semanas e que podia viajar no Québec e no Canadá
por meses seguidos. Queria que eu fosse como Ginette Reno
que se tornou numa das mais populares cantoras do Canadá.
“E
porque não mesmo em França, algum dia”, Maman disse-me.
Para
mim isto era um sonho, mas a minha mãe tinha ido mais longe
que o sonho. Ela pensou nisto com cuidado, e tinha um plano
de acção.
“Se tu
queres continuar, tu precisas de um agente”, disse-me ela.
“O teu irmão Michel conhece alguns. É só uma questão de
escolher um que seja bom - quero dizer, ser escolhida por um
bom.
[59]
Mas primeiro, precisas das tuas próprias canções. Um
bom agente não vai ver muito numa rapariga que só imita os
outros.”
Eu não
sei como tal ideia lhe surgiu mas hoje eu realizei a mente
de artista que a minha mãe tem. Mesmo naqueles dias, as suas
intuições e os seus instintos era muito bons. Ela tinha um
profundo entendimento e um senso inato para o “show business”.
Ela
sabia que nós não podemos realmente julgar o valor de uma
cantora quando ela interpreta canções que já são conhecidas.
Era por isso que ela sabia que eu precisava de produzir
muitas canções minhas, então o bom agente ia encontrar-me -
ou, então, aquele que me descobrir ia ver- que eu sabia
alguma coisa de musica, sobre a estrutura de uma canção, e
ver que eu podia realmente cantar.
O que
a minha mãe disse naquela noite, na mesa da cozinha da nossa
casa em Charlemagne, pareceu-me completamente obvio, mesmo
que eu nunca tivesse pensado nisso de uma maneira tão clara.
E ela também dizia que também era tempo de eu cantar de
verdade, no meu próprio tom.
Os
meus irmãos Jacques e Daniel juntaram algumas cassetes com
alguns dos últimos êxitos para eu cantar. Primeiro, eu cai
inevitavelmente no estilo da rapariga que a cantou primeiro.
Eu cantava como Ginette Reno, Barbra Streisand ou Arteha
Franklin. Mas com o tempo, comecei a encontrar as minhas
próprias entoações, o meu próprio conjunto, a minha própria
voz.
Maman
inscreveu-me em alguns concursos amadores, em todos os
festivais feitos em parques de diversão da área, para todas
as festas da vizinhança.
Naquele verão, eu estava obcecada com Olívia Newton-John. O
meu irmão Michel e a minha irmã Linda, a quem eu chamo Dada,
levaram-me para a ver no Fórum de Montreal. Eu comecei a ir
atrás das suas canções usando arranjos instrumentais. Eu
ainda não falava inglês, então eu não entendia nem uma
palavra do que estava a cantar. Mas, mesmo assim, eu punha
todos os bocadinhos de emoção naquilo. Estava determinada a
por o meu próprio toque nas musicas. As vezes, eu usava
raiva nas palavras que deviam ser doces, ou usava ternos
sussurros
[47]
onde deveriam existir lágrimas. Eu não estava a
interpretar as canções, apenas a mostrar o que a minha voz
podia fazer. Eu estava a fazer o que a minha agente, a minha
mãe, me tinha recomendado.
Numa
tarde de domingo eu cantei “Let’s Get Physical”, numa festa
de um campo de golfe. Michel tinha levado o seu amigo Paul
Levesque, que comandou as carreiras de alguns grandes grupos
de rock do Québec. Eles correram para mim e Maman debaixo
das grandes bancadas que rodeavam o campo.
Paul
Levesque disse que eu o impressionei. Eu estava muito
orgulhosa por alguém fora da minha família tivesse ouvido e
visto o que eu era capaz de fazer!!
Paul
também disse que eu precisava das minhas canções originais
para conseguir arranjar uma companhia de gravação
interessada em mim. Ele também sabia que as produtoras não
me viriam ver cantar num campo de golfe. Eu tinha que
preparar algumas demos e, Paul disse que as faríamos ouvir.
[61]
Mas ele não conhecia nenhum letrista, excepto os que
escreviam em inglês para os grupos de rock. Nem ele podia
encontrar alguns músicos para compor melodias que fossem
ideais para mim.
Ainda
por cima, na tenra idade dos 12 anos, eu não podia
simplesmente saltar para o “heavy metal”e começar a gritar
como os grandes, tatuados roqueiros que ele esteva a mandar
para o mundo inteiro. E também não podia cantar as canções
que um adulto cantava. Eu precisava de baladas que soassem
bem ao sair da boca de uma menina.
Como
tal, Paul não sabia exactamente o que fazer comigo, onde
havia um nicho para mim no mundo da musica.
Então,
um dia a minha mãe disse-me “Pequenina, eu vou escrever-te
algumas canções”.
Ela já
tinha escrito algumas letras num dos meus cadernos de
escola. Então ela pôs-me a ouvir uma melodia que ela tinha
feito. Naquela noite eu fui para a cama com o refrão na
minha cabeça. Eu estava muito excitada porque, pela primeira
vez na minha vida, estava completamente livre. Não só podia
escolher a chave para cantar esta canção mas, eu podia
decidir quais as notas a subir, quais as sílabas a aguentar
ou trilhar…esta seria a minha primeira verdadeira canção.
“Through just a dream, so beautiful
More real than i can say”
(“apenas através de um sonho, tão bonito
mais
real do que eu possa dizer”)
O
refrão era perfeito. Mas Maman parecia não encontrar o
ligação entre o refrão e os versos. Telefonou ao meu irmão
Jacques, que estava a trabalhar à noite num bar, perto de
casa. Como Daniel, Jacques tinha uma incrível memoria e
ouvido para a musica. Ele lembrava-se das partes individuais
de casa instrumento depois de ouvir uma gravação duas ou
três vezes. Maman cantou-lhe o refrão e os versos pelo
telefone.
No dia
seguinte, ele chegou com uma melodia para os versos e alguns
arranjos para o refrão. Mas continuávamos sem ter a ligação
entre os versos e o refrão. É chamado a “ponte” – uma
transição musical que nos leva entre os versos e o refrão. É
um daqueles requerimentos técnicos que se podem tornar na
ruína de um musico.
Jacques e Maman pensaram que eles podiam encontra-lo –
dando-lhe asas – ou “en criant lapin”, como nós lhe
chamamos.
Eles
tentaram todas as espécies de coisas durante horas, mas nada
resultou. Passadas umas horas, pensaram que já a tinham.
Mas, eu achada que não e mostrei-lhes que aquilo não ia
resultar, cantarolando a “grande descoberta” deles.
“Esta
tem razão, Maman, isto não funciona”, Jacques disse.
A
segunda vês que isto aconteceu, a minha mãe acrescentou: “se
tu és tão esperta, Celine Dion, então encontra algo melhor”.
Por
acaso, eu pensava que tinha alguma coisa, mas não estava
totalmente certa. Jacques estava quase a sair. Eu teria que
tê-lo a tocar a melodia no piano.
“Deixa-me tentar alguma coisa…” eu disse, e cantarolei umas
notas.
“É
isso, pequenina. Tu tens a tua “ponte!”, Jacques gritou.
[63]
Nós
estávamos tão excitados que fomos através da canção, das
palavras, da musica, meia dúzia de vezes. Jacques saiu
tarde, mas contente.
Alguns dias mais tarde, os meus irmãos e eu juntamos alguns
demos de “Ce N’etait Qu’un Rêve” (isto era apenas um sonho) e
outra canção que Maman tinha escrito “Grand Maman” (Avó).
Durante os dias que se seguiram, todas as vezes que os meus
irmãos e irmãs paravam em casa, Maman punha-os a tocar a
música.
Naturalmente a minha família pensou que Paul Levesque
deveria ser o meu agente. Naquele tempo ele representava
Mahogany Rush, um grupo de rock cujo guitarrista, Frank
Marino, era um virtuoso. Muita gente comparava-o a Jim
Hendrix. Paul estava mais orientado para este tipo de macho
americano hard rock do que para as baladas sentimentais de
uma adolescente. Ainda por cima, em Quebec, havia já uma
menina da minha idade, Nathalie Simard, que estava a cantar
em Montreal. Ela até tinha um show de televisão! Paul não
conseguia realmente ver como diferenciar-me dela. Mas ele
gostava da minha voz, ele achava que eu sabia como cantar e
ele viu que eu podia usar uma energia que não poderia ser
batida.
Depois
de uma reunião de família, os meus pais assinaram com ele.
Foi mesmo antes das ferias de 1980. Paul tinha menos de 30
mas era um homem responsável e meticuloso que suportava e
era respeitador dos valores convencionais. Ele tentou
arranjar imediatamente uma boa companhia de gravação e um
produtor competente. Mas desde o inicio, Paul era
culturalmente incompatível com a nossa família o que,
complicou as coisas. Ele estava atónito, para não dizer
aterrorizado com o nosso muito boémio, artístico estilo de
vida.
Por
exemplo, ele ficava chocado com o facto de eu faltar muitas
vezes à escola, sem que ninguém, em casa, se aborrecesse com
isso. Ele sabia que a lei não permite que uma cantora de 12
anos comprometa os estudos por causa da sua carreira.
Pessoalmente, eu não estava interessada na escola. Eu só
esperava ser livre para cantar e esquecer a matemática,
geografia, historia e tudo o resto. Mas Paul estava com medo
que a escola denunciasse as minhas repetidas faltas e que o
contrato com o agente fosse revogado. Um dia ele fez mesmo
uma nota formal aos meus pais, alertando-os para me mandar
para a escola regularmente.
Esquecendo isso, em estúdio ele produziu demos de três
canções: “Chante-la ta Chanson” (Canta a tua Canção)- um
“remake” da canção de Jean Lepointe- “Ce N’etait Qu’un Rêve”
e “Grand Maman”. Mandou-as para um numero de companhias, sem
resposta. Ele não estava totalmente certo sobre a categoria
onde me poderia inserir.
Não
sei qual de nós - Paul, Maman ou Michel - teve a ideia de
mandar a cassete para René Angelil.
[65]
Mas eu sei que pensamos
todos que era uma boa ideia. Angelil era, naquele tempo, o
mais importante produtor no Quebec. Ele era o agente de
Ginette Reno e ela era o meu ídolo. Ele tinha produzido o
seu álbum “Je Ne Suis Qu’un Chanson”, com cerca de 300 000
cópias vendidas. A maior venda alguma vez feita no Canadá.
Eu sabia todas as músicas de cor.
Paul
ficou com a tarefa de lhe dar o nosso pequeno pacote, a demo
que continha todas as nossas esperanças que a minha mãe
embrulhou em papel castanho, com uma fita vermelha e um
pequeno laço, como se fosse um presente.
“Agora
mantém os dedos cruzados”, disse-me ela, “e continua a
cantar”.
Depois, cerca de duas semanas mais tarde, continuava sem
haver novidades. Com medo de perder a chamada de René
Angelil, a minha mãe certificava-se que estava sempre alguém
em casa. Quando ela chegava a casa, do trabalho, dispensava
Jacques ou Ghislaine ou Daniel. Eu estava realmente
desapontada por não termos recebido nada, mas a minha mãe
estava furiosa.
“Ele
podia, pelo menos, responder”, dizia ela. “Podia pelo menos
ser educado. Se ele não gostar das tuas canções, devia
dizer-nos porquê. E se, tem pouco coração para nos dizer,
devia ao menos devolver a cassete”
“O
tipo tem, provavelmente, outro peixe para fritar”, disse
Ghislaine. “Ele é o agente de Ginette Reno. Se calhar não
tem tempo de ouvir todas as demos que recebe. Talvez não
ouça nenhuma”.
“Eu
até ficaria surpreendida se ele andasse à procura de novas
cantoras para representar”, acrescentou Claudette.
O que
elas diziam fazia sentido. René Angelil já era o agente mais
importante do Québec. As colunas de fofocas diziam que a sua
estrela, Ginette Reno, estava quase a chegar ao top, em
França.
Ela já
cantava em Las Vegas e na televisão Americana. Porque
quereria René Angelil preocupar-se com uma segunda cantora e
envolver-se num projecto em que tudo continuava por fazer?
“Tudo
o que ele tem que fazer é ouvir-te uma vez e, ele não irá
pensar duas vezes em pegar em ti”, disse Michel que tinha
encontrado Angelil algumas vezes. Michel é muito
persistente. Quando mete uma ideia na cabeça, não há como
mudar-lhe o pensamento. Ele telefonou para o escritório de
René uma vez, e outra, até tê-lo ao telefone. Eu estava
atrás dele e ouvi-o dizer “Eu sei que ainda não ouviu a
cassete que a minha mãe irmã lhe enviou. Porque se tivesse,
já nos tinha telefonado.”
Angelil disse ao meu irmão que não tinha tido realmente
tempo para ouvir a cassete, mas que iria faze-lo nos
próximos dias.
“que
idade tem a sua irmã?”, ele perguntou.
Michel
não falou por um momento.
“Doze…”
Ele
sabia que isto não era bom porque o Québec já tinha Nathalie
Simard.
“Você
sabe que esse nicho do mercado já esta preenchido, não
sabe?”
“Isso
não faz qualquer diferença”, respondeu Michel. “ A minha
irmã tem 12 mas não é nenhuma menina pequenina. È uma
verdadeira cantora. Ouça-a e vai ver. O que demora isso, dês
minutos? E pode mudar a sua vida. Estou a dizer-lhe, pode
mesmo.”
[67]
Finalmente Michel desligou, virou-se para mim e disse: “ele
vai ligar, eu sei que vai.”
Dez
minutos mais tarde o telefone tocou. Michel atendeu. “Bem,
eu disse-lhe!”. Depois riu e, depois de uma pausa respondeu
“claro que ela pode. Quando e onde você quiser.”
Rabiscou um endereço na parede ao lado do telefone, depois
desligou e olhou para mim.
“Rene
Angelil que ver-te esta tarde, às 14:00.”
Nós
ainda não sabíamos, mas aquela chamada telefónica ia mudar
as nossas vidas. Não apenas a minha, mas de toda a família.
E a de René Angelil.
Quando a minha
mãe revelou a carreira que ela tinha planeado para mim, eu
soube que tudo era lógico, possível, seguro e certo. Eu
nunca duvidei que as coisas pudessem acontecer dessa
maneira, que as coisas seriam boas, melhor do que boas. Eu
estava segura que eu tinha tudo o que precisava para ter
sucesso. Que eu tive mesmo sorte. E eu estava completamente
ciente do que eu queria fazer na vida. Sem uma sombra de
dúvidas.
Eu nasci num
ambiente muito especial, rodeada por adultos que cuidaram
realmente de mim. Pessoas que, sobretudo, me deram um
objectivo na vida. Quanto a mim, à parte da saúde, isso é a
coisa mais preciosa que tu podes ter neste mundo.
Teoricamente,
a escola devia dar à vida dos jovens objectivos e maneiras
de os alcançar. Mas eu recebi estas coisas em casa: um
objectivo, um desejo e o significado de alcançá-los.
Por
essa razão, eu carreguei um sonho completo dentro de mim. E
eu estava pronta para sacrificar qualquer coisa ou ir a
qualquer extremo para alcança-lo. Era um sonho que eu não
tinha criado; Eu tinha herdado-o ao nascer. Ele tinha sido
concebido e criado pela minha mãe e pelo meu pai, pelos meus
treze irmãos e irmãs. Eu tinha-o no meu sangue ao nascer.
Como a música que permanece na minha cabeça. Eu também tinha
uma voz e ouvidos, que, eu devo admitir, não é dado a todos.
Por tudo isso, eu agradeço a Deus todos os dias da minha
vida.
As minhas
irmãs
Claudette e Ghislaine, o meu
irmão Michel, cantavam nos palcos, gravavam discos, faziam
mesmo um pouco de tv. Eu ia vê-los cantar, e eles eram os
meus idolos. Verdadeiramente. E conhecer tão intimamente as
pessoas que eram os meus ídolos viria a ter um efeito
profundo na minha vida inteira.
A maioria das pessoas
pensa que os seus ídolos são seres inalcançáveis,
intocáveis. Eu, por outro lado, via a maioria de meus ídolos
todos os dias, muito próximos. Eu comia com eles, dormia no
mesmo quarto com eles, usava os seus vestidos e os sapatos
altos. Eles levavam-me para restaurantes e lojas; Eu queria
ouvi-los a cantar todas as noite. Eles disseram-me que um
dia e iria cantar com eles na televisão, no Palácio das
Artes, talvez no Olympia em París. Eles dizeram-me também
sobre a Broadway, e os grandes shows de Las Vegas. Eles
disseram que nós iríamos gravar canções juntos.
Portanto, eu não fui a
única que criei este sonho. Foram os meus pais, as minhas
irmãs e os meus irmãos que mo trouxeram.
[69]
E este sonho, o
sonho deles, boiou-me, como um rio poderoso que carregaria a
história da nossa família de uma extremidade à outra, do meu
pai à minha mãe, dos meus avós, dos meus tios e tias, dos Dions tanto quanto como a família da minha mãe, os Tanguays,
onde quase todos eram cantores ou violinistas, ou tocadores
de acordeão ou harmónica.
Na minha mente não há
barreiras ou lacunas entre a mundo dos negócios e eu mesma.
E durante muito tempo eu pensei que o mundo inteiro sentia
da mesma maneira. Quando eu via Ginette Reno na tv ou Aretha
Franklin ou Olivia Newton-John ou quando eu via o meu
irmão Michel ou a minha irmã Ghislaine a cantar no Vieux
Baril, eu estudava as suas técnicas vocais, as suas
linguagens do corpo. Eu disse a mim mesma que com prática,
eu seria capaz de fazer tão bem como eles.
No final, o meu objectivo
de me tornar numa grande cantora pareceu-me razoável e
acessível - Talvez mesmo inevitável. Em outras palavras, eu
acreditei nele. Eu tive fé, da qual eu penso que é tão
necessária como ter voz.
Eu também sabia que eu
tinha de trabalhar arduamente e isso não me assustou. Os
meus irmãos, irmãs, pai, mãe, toda a gente à minha volta,
trabalhava sempre arduamente. Assim, com a compreensão de
que apenas trabalhando como um cão eu realizaria o meu
sonho, eu começei isso com toda a minha força. Eu coloquei
todo o meu talento, energia, encanto, tempo, determinação e
também a minha ingenuidade neste projecto que a minha mãe
tinha descrito para mim uma noite na nossa pequena cozinha.
Fiz cada sacrifício amando-o. E estava profundamente feliz.
Eu
ainda me lembro nitidamente da primeira vez que encontrei o
René Angélil, o homem que ocuparia gradualmente um lugar
importante na minha carreira, vida e coração. Ele usava
sapatos castanhos e uma capa castanha. No canto do seu
escritório, atrás da porta, havia uma tabela de gamão e ao
pé da janela havia um grande sistema de som. Mas a história
foi contada tantas vezes e por tantas pessoas que hoje é
difícil para o René, para a minha mãe e para mim - que a
vivi - relembrar tudo o que realmente aconteceu. Cada um de
nós tem a sua própria versão dos factos e visão dos lugares.
Eu lembro-me do
escritório ser do tipo escuro e sombrio. Talvez fosse do
tipo de dia fora de lá, porque existiam janelas
grandes com vista para os telhados, mas sempre era muito
pouca a luz que entrava no escritório. Diagonalmente através
da rua vocês podiam ver o edifício imponente que era o
quartel-general da Tele-Metropole, aonde eram os estúdios de
televisão. Mais adiante, a imponente estrutura em ferro da
ponte Jacques-Carrier parecendo que saltava para cima da
cidade.
O escritório cheirava
bem, fresco. O René estava atrás da sua escrivaninha. Ele
parecia-me sombrio. Ele era extremamente gentil, cavalheiro
como a minha mãe disse. Mas ele não sorria. Pediu-nos para
nos sentar-mos mas ele permaneceu encostado à janela. Ele
estava com uma cara séria. Eu lembro-me que ele parecia
dirigir as suas palavras mais para a minha mãe do que para
mim. [71]
Ele disse que tinha ouvido as minhas demos e que a
minha voz era muito bonita. E então, repentinamente,
senti-me terrivelmente intimidada.
O homem que tinha dito
isto sobre as minha voz era o mesmo que eu tinha visto
muitas vezes na TV e nos jornais. Durante os anos sessenta o
René tinha sido uma grande estrela da música com um grupo
chamado "The Baronets", que eram a versão francesa dos
Beatles. Eu não estava muito familiarizada com os Baronets,
que eram uma antiguidade histórica para mim. Mas como agente
de artistas quebequenses, René Angélil era parte do
presente. A sua mulher, Anne-Renee, era também bem conhecida
como cantora e apresentadora de televisão.
Finalmente, ele sentou-se e
perguntou-me se eu queria cantar para ele nesse instante, no
escritório, sem música. A minha mãe também estava a olhar
para mim. Havia um silêncio dele que parecia durar à um
século. Depois a mama disse: "Ela não está habituada a
cantar assim, sem microfone."
René deu-me uma caneta
enorme e disse com uma voz muito gentil: "Vamos dizer que
este é o teu microfone, está bem?"
Ele ainda não sorria.
Para mim ele parecia-me triste, mas a sua voz estava suave,
doce, muito quente, muito calma.
"Canta-nos a tua canção,
está bem? Como se estivesses a cantar no "Palácio das
Artes."
Eu tinha feito isto
centenas de vezes em frente ao espelho do meu quarto. Mas
antes eu podia ver-me a cantar, e tinha cassetes para
acompanhamento. Eu também tinha cantado dezenas de vezes em
concursos de amadores e . Mas eu nunca tinha cantado num
lugar vazio, em frente a duas pessoas, sem música, em frente
a um homem com um olhar triste que mal conhecia. Eu sabia
que apenas tinha de pegar nela e começar a cantar. Não havia
outra escolha.
Levantei-me e coloquei-me
em frente à porta do escritório, para ter o mais espaço
possível em frente a mim. A minha mãe teve de se virar para
me ver. Eu levei a caneta aos meus lábios e começei a
cantar.
Num grande
jardim encantado
de repente
eu me reencontrei.
De repente, eu
sentia-me muito bem e confiante.
Aparentemente
(pelo menos de acordo com a minha mãe e com o rené) eu
cantei como se estivesse realmente no "Palácio das Artes",
como se eu pudesse ver a audiência nas suas cadeiras, e eu
estivesse a olhar para eles directamente nos olhos, na
orquestra, no balcão nobre, nas bancadas. De vez enquando,
eu olhava para o ele, para o René Angélil. Que eu lembro-me
bem. Porque num momento eu disse que ele tinha lágrimas nos
olhos. Eu antes tinha-o dito para mim própria. Eu nunca
tinha visto um homem a chorar por ouvir alguém a cantar. Eu
acho que a minha mãe também ficou realmente surpreendida.
Quando eu
terminei, foi a minha vez de esperar por um século de
silêncio. O René limpou os seus olhos. Então disse, como se
nós não tivesse-mos visto nada, "Tu fizeste-me chorar."
Eu ainda não o
conhecia realmente, mas e senti tudo o que ele disse.
Tu
tens de ser
bastante calma e ter um bom sentido de humor para estares à
volta da nossa família sem te sentirem magoada ou espantada.
[73]
Nós gostamos realmente de divertir as pessoas. O meu pai
ensinou-nos isso. Quando alguém novo aparece no nosso lugar
nós sempre o fazemos passar por um tipo de teste. Se ele se
sair bem nós adoptamo-lo para a vida.
Eu tinha visto
os meus irmãos e irmãs a saírem de casa um após o outro, mas
todos eles ainda viviam na vizinhança, e nós ainda
tocava-mos música juntos à noite e aos fins-de-semana.
A primeira vez que o René foi a nossa casa, ele foi tratado
como se fosse o bem conhecido homem da paródia do velho
grupo, os "Baronets". Isto não significa que nós não
estávamos orgulhosos, realmente foi uma honra ser visitada
por este homem, que era conheçido em todo o Québec.
Estávamos certos de que todos os nossos vizinhos deram conta
da sua chegada à nossa porta. Ele guiava um Buick LeSabre.
Mas desde que nós todos somos um pouco conhecidos no nosso
lugar, famosos ou não, o René tinha de aguentar a nossa
tradição de gozar. O meu irmão tinha ensaiado uma das suas
grandes canções, a imitar as vozes, os gestos e a expressão
facial dos "Baronets". Chamava-se "É louco mas é tudo" uma
rendição fiel da canção dos Beatles "Segura-me firmemente".
Felizmente,
o René riu-se
muito ao ele ouviu isto.
Depois a minha
família falou com ele durante muito tempo, sobre os Beatles,
os Beach Boys, os roqueiros dos anos cinquenta e sessenta. E
claro, sobre o Elvis. Dessa primeira conversa ficamos a
saber que o René Angelil adorava o rei. Ele conhecia com o
coração todas as canções do Elvis e cantava versos inteiros
delas com a Clement e com a minha mãe, que também eram
grandes fãs. Ele falou-nos em irmos ao funeral do Elvis em
Memphis com o Johnny Farago, cujo agente tinha sido. Nesse
tempo, Farago tinha feito uma carreira a imitar o Elvis.
Ambos, ele e o René se fizeram passar por jornalistas para a
Rádio-Canada e foram capazes de seguir a procissão do
funeral em todo o caminho, até ao cemitério, que era
proibida ao publico em geral.
O René
contou-nos todo o tipo de histórias, com muitos detalhes.
Ele podia-o continuar por horas, que nós adorámo-lo ouvir.
Ele passou a nossa prova com óptimos resultados. Dai para a
frente ele ficou a fazer parte da nossa família. As minhas
irmãs e a minha mãe achavam que ele era realmente bonito. É
verdade que ele tinha olhos magníficos e como a Denise ou a
Claudette ou talvez a Ghislaine disse, os seus olhos tinham
um olhar aveludado. Ele era sempre muito elegante. E ele
tinha algo de misterioso, exótico dentro dele, como um
sedutor, seguro dele próprio. Os Dion's sempre tinham vivido
num mundo pequeno, com pessoas que apenas falavam francês,
nascidas e criadas no Québec. Mas o René vinha de um outro
lugar, de um outro mundo. Os seus pais eram Libaneses e
falavam muitas línguas. Aos nossos olhos, ele tinha uma
imensa classe. Para nós ele parecia um tipo de príncipe no
exílio.
No início,
quando ele vinha a casa, ele falava horas sobre tudo e nada,
excepto o que me dizia respeito. Depois, antes de sair,
sempre discreto, ele ficava sério. A primeira vez, ele tinha
o seu casaco vestido quando ele disse para os meus pais: "Se
vocês puserem a vossa fé em mim, eu posso garantir que a
vossa filha será uma estrela importante no Québec e em
França dentro de 5 anos."
Nessa noite
ele disse-nos que já não era o agente de Ginette Reno.
[75]
Ninguém ousou perguntar-lhe o que tinha acontecido. Mais
tarde, nós soubemos que ela quis continuar por conta
própria. E o René tinha ficado realmente ferido e humilhado
quando ela o deixou.
Uma vez, com
um pé fora do lado de fora da porta, ele falou-nos de um
escritor que ele conhecia, um homem de França, que podia
escrever canções para mim.
"Ele é o
melhor," ele disse à minha mãe. Ele escreveu canções para
Edite Piaf, Yves Montand, Mireille Mathieu, até para Barbra
Streisand. Quando ele ouvir Celine, ele irá escrever para
ela também."
Mas no que diz
respeito a ele ouvir-me, René queria que nós tivesse-mos
regravado "Ce n'etait qu'un revê" e "Grand-maman." Ele disse
desta vez que nós deviamos fazê-lo num estúdio real, com
violinos reais, novos arranjos, e um ritmo levemente mais
lento.
Ele pediu ao
pianista Daniel Hetu, que nós conhecíamos da televisão, para
preparar algumas orquestras novas. Uma noite, René veio até
nós (os meus pais, Jacques, Michel, acho eu, e talvez
Ghislaine) e levou-nos para o estúdio Saint-Charles em
Longueuil.
Ele
introduziu-nos um por um aos engenheiros e a Daniel Hetu,
como se nós fossemos as pessoas mais importantes do mundo.
Quando ele veio até mim, ele disse-lhes: "Esperem e oiçam
ela cantar. Ela vai tocar-vos."
Certo, eu fui
lisonjeada, mas eu desejava que ele não tivesse feito tanto
isso.
Estes foram os
meus melhores técnicos (para ouvir René, tu tinhas de pensar
que todos nós éramos os melhores dos melhores). Eles
trabalharam com Ginnette Reno e com muitos outros cantores
que tinham infinitamente mais experiência do que eu.
Eu logo
aprenderia que o René tinha sempre expectativas muito altas,
ou devo eu dizer, expectativas que eram demasiado altas. É
consideravelmente terrível - mesmo se é motivante - criar
para você os maiores desafios que possa imaginar. Dizendo a
toda a gente: "Oiça com cuidado e veja o que eu posso fazer.
Você não pode parar de delirar." Toda esta acumulação deu-me
definitivamente o sentimento de que se eu "caísse" nessa
noite, talvez tudo entre nós se concluiria. Nesse caso, eu
só teria dado metade, um quarto de mim. Mas felizmente, sou
do tipo de cantores que se esquece de tudo depois das
primeiras notas e descobre uma confiança enorme em si. Deixo
a minha voz ir livremente. Eu não tenho que empurrá-la. Ela
simplesmente surge em mim.
Actualmente,
eu não tenho a certeza que qualquer um tenha sido
impressionado pela minha voz, mas eu dei o meu melhor,
cantando com toda a minha força, com restrição quando era
necessário, e com confiança e coração.
Hoje, quase
vinte anos mais tarde, quando escuto essa gravação,
redescubro toda a paixão. A voz que eu oiço releva sons
desajeitados às vezes, mas está correcta, e certamente tem
presença. Dentro disso há alguém, uma pequena rapariga com
treze anos que quer conquistar o mundo inteiro.
Depois dessa
sessão de gravações, as coisas começaram a acontecer muito
rapidamente.
Uma
noite, o René chegou com um homem francês, o senhor Eddy
Marnay. Com ele estava Mia Dumont, senhora companheira de
alma, Marnay. [77] Alguns de nós estávamos em casa, mas eu não me
lembro de colocar à prova essas pessoas particulares. Nós
estávamos muito impressionados e terrivelmente intimidados,
um pouco assustados também. Nesse tempo, no nosso mundo,
toda a gente acreditava que todos os franceses eram
pretensiosos, que pensavam que sabiam tudo sobre tudo,
quando realmente não sabiam nada de nada. Mas Eddy era um
refinado, um homem gentil, um tipo que nós nunca tínhamos
encontrado antes, sempre muito considerado. Ainda que
falasse melhor francês do que qualquer um de nós, às vezes
ele usava palavras cujo significado nós vagamente sabíamos
mas nunca tínhamos usado, e ainda que se ele tivesse viajado
pelo planeta e conhecido as maiores estrelas do século, ele
nunca nos olho com desprezo, nem com condescendência. Pelo
contrário, Eddy era muito curioso em relação a nós. Ele
perguntou-nos milhares de perguntas. Pareceu-me realmente
surpreso por os meus pais terem tido catorze crianças, por o
meu pai ter construído uma casa com as próprias mãos, por a
minha mãe escrever canções, que nós cantávamos, e por todos
seremos músicos. Não faltaria muito antes de nós o
adoptar-mos também permanentemente. Ele era mais velho que
os meus pais, tinha quase cinco vezes a minha idade. Mas ele
rapidamente se tornou um amigo verdadeiro, um amigo querido,
para mim, muito mais do que o René era nessa altura.
Eu sempre
gostei de falar com o Eddy. Ele sabia como se aproximar de
mim, ganhar a minha confiança, mais facilmente do que os
rapazes e as raparigas da minha idade. Deixei-o entrar em
todos os meus segredos e contei-lhe todos os meus sonhos. E
tudo o que eu lhe disse pareceu fasciná-lo.
No que diz
respeito a ele escrever canções para mim, ele dizia que
precisava de me conhecer profundamente. A minha vida como
adolescente era fácil o suficiente para descrever. Eu nunca
tinha tido um namorado. E se às vezes eu pensava no amor, eu
nunca tinha contactado com a cara de nenhum rapaz que
conhecia. Eu também falei um pouco sobre a minha mãe, que
era o meu universo.
Ás vezes ele
corrigia-me quando eu usava tempos verbais incorrectamente
ou confundia um advérbio com um adjectivo. Mas ele fazia
isso sem rir-se de mim. Muito rapidamente, apenas alguns
dias depois de o conhecer, ele tinha-nos trazido uma canção
que ele tinha escrito para mim, "La Voix du bon Dieu" (A Voz
do Bom Senhor).
E ele deu-me
as letras a estudar durante alguns dias até ele ter a
certeza de que eu as tinha entendido.
"Nunca cantes
letras que tu não tenhas completamente interiorizado"
disse-me ele.
Mesmo
perturbando-o, mais tarde contei-lhe que, durante anos, tal
como as minhas irmãs, eu cantava canções em inglês sem
entender uma única palavra.
"Tu não deves
cantar canções que não tenham sido feitas para ti, que tu
realmente não viveste."
Tal como o
René, ele disse-me que eu tinha uma voz bonita, e que
cantava com muita emoção. Mas quando nós começamos a
trabalhar a sério, ele disse-me muito francamente que eu
tinha sérios maus hábitos, que tinha de os corrigir antes de
ir gravar para estúdio. Nós estávamos sozinhos na sala de
estar. O René jogava às cartas com os meus pais na cozinha.
Penso que todos os três sabiam o que o Eddy me estava a
dizer.
Ele
explicou-me que a minha voz soava demasiado nasal,
especialmente alguns dos meus sons vogais. [79]
E que às vezes eu
usava muitos ordenamentos, como ele os chamou - demasiada
decoração.
"Eles
precisavam de ser chamados apenas quando necessário" disse
ele. "Demasiadas vezes tu afogas-te nas articulações das
palavras. Para dar todo o significado a uma palavra, tu tens
de pensar em cada palavra cuidadosamente, pensar sobre o que
ela contem, tudo o que ela possa significar. Em algumas
palavras tu podes chorar, noutras podes murmurar. Algumas
precisam de parecer muito tocantes. Outras estão apenas ali
entre duas ideias ou para a sua qualidade de som.
Tomei suas
palavras. Literalmente demoliu a minha interpretação de "Ce
n'etait qu'un rêve". E eu fiquei emocionada. Ele tinha
solução para tudo, porque ele estava ali, tranquilo, atento,
inteligente, em sintonia comigo. Eu soube que iríamos longe
juntos. Ele era o meu confidente, o meu conselheiro, o meu
amigo.
Antes de nós
irmos para um estúdio de gravações, ele fez-me gastar alguns
dias a preparar tudo na minha cabeça. Depois cantou comigo.
A sua voz não era singular mas em chave. Repassados cada
frase, vinte, cinquenta, umas cem vezes. Ele contou-me onde,
quando e como fazer uma respiração; onde, quando, como,
porquê pausar, como segurar direito uma palavra até ao fim
da minha respiração. E nós nem notamos o tempo a passar.
Depois do novo
demo ter sido preparado, René veio um dia a nossa casa para
dizer que ele tinha dado a ouvir "Ce N'etait Qu'un Rêve" ao
apresentador de televisão "Michel Jasmin" e que ele tinha
sido conquistado também. Jasmin estava disposto a fazer
alguma coisa para me ter no seu talk-show, o mais popular no
Québec. Nós tiramos proveito da oportunidade para eu ser
lançada. De facto, esta iria ser a minha primeira verdadeira
aparição pública, o meu primeiro teste. "É o mais importante
talk-show no Canada" disse o René. "Um milhão de pessoas vão
estar a ouvir-te cantar. Jasmin é o melhor, tu verás".
A minha mãe
fez-me um vestido cor-de-rosa que com sobras de tecido. Três
dias, ou antes, três noites de trabalho. A minha irmã Dada
achou meias de ceda da mesma cor cor-de-rosa mas mesmo nas
grandes lojas do shopping na rua Sainte-Catherine, nós nunca
fomos capazes de encontrar sapatos que combinassem.
Finalmente, a mãe pegou num par velho de sandálias e
tingiu-as de cor-de-rosa. Manon tratou do meu cabelo e
maquilhagem, coisa que ela já tinha feito umas cem vezes
antes apenas por divertimento. A minha irmã adora tratar do
cabelo e da maquilhagem das pessoas. Mas nesse dia, eu posso
dizer que ela estava nervosa. Ela gastou muito tempo a pôr o
meu rosto a parecer bem. Honestamente, o meu rosto não era
fácil de fazer. O meu cabelo é tão ondulado como o de uma
ovelha. E nesse tempo ele era muito comprido. Se ele fosse
mal secado ou mal arranjado, ele tornava-se selvagem. Eu
parecia como um palhaço.
A minha mãe, o
René e eu fomos para o estúdio Tele-Metropole pelo menos
duas horas antes do programa começar. René introduziu-nos ao
director, ao gerente de estúdio, ao operador de câmara, aos
pesquisadores, e aos outros convidados.
[81] Mas desta vez ele
não disse a ninguém que a minha cantoria os iria tocar. Eu
estava tranquila mas também preocupada. Por um momento, eu
perguntei-me se ele tinha parado de acreditar em mim.
Estava frio no
estúdio. Quando chegou o tempo de ensaiar a minha canção, eu
compreendi assustada com as câmaras. Eu não sabia em qual
olhar. Por sorte, o René teve um plano para eu seguir.
Cantaria o meu primeiro verso para a audiência e depois o
refrão para a câmera. Depois deveria fazer o mesmo mas ao
contrário. Mas não havia ainda qualquer audiência ali só
bancadas vazias que podiam assentar mais de cem pessoas. E
enquanto cantava as câmeras mantiveram-se em movimento.
Quando eu me observei no monitor, eu via o meu perfil, nunca
o meu rosto inteiro, como quando eu cantava no meu espelho
do quarto. Eu fiquei totalmente desorientada. Eu coloquei o
meu melhor nisso, eu tentei concentrar-me, mas o vazio e o
frio e olho preto da câmera horrorizavam-me. Tu tens de
olhar directamente para ela, disse-me o René. Olha para
qualquer câmera. Faz como se estivesses a falar com a tua
mãe através da lente e ela te estivesse a escutar. E que ela
te ama.
Tinha medo que
me esquecesse das minhas palavras ou que a minha voz ficasse
tremula ou que desatasse a chorar. Imaginem-me a sair do
estúdio. Isso significaria uma barreira para a minha
carreira como cantora famosa. Para ter boa sorte eu quis
bater na madeira - algo que o René fazia frequentemente. Mas
eu não conseguia ver nada de madeira no estúdio. O René
procurou comigo.
Finalmente,
ele achou o cachimbo de um dos convidados, Fernand Gignac.
Ele perguntou-lhe de que era feito. "Madeira" disse o senhor
Gignac.
"Segue
adiante, é madeira" disse o René.
Eu toquei no
cachimbo de Fernand Gignac, e isso tranquilizou-me um pouco.
Quando Michel
Jasmin me introduziu à audiência, eu estava na sombra,
sacudindo-me. René estava atrás de mim, a sua cabeça estava
muito perto da minha. E ele disse: "Segue adiante,
mostra-lhes que és a melhor". Era como mergulhar num espaço
vazio. Eu não conseguia ver nada. Eu caminhava no palco como
se tudo estivesse para cair ao meu redor. Mas como de
costume, quando começei a cantar o meu medo desapareceu.
Sentia-me realmente bem. Eu começei a olhar a direito para a
câmera, ciente de que, pelo menos 1 milhão de pessoas me
estavam a ver e a ouvir. De tempo a tempo, eu olhava para a
audiência enchendo o estúdio. Nas sombras eu podia ver o meu
pai, a minha mãe, os meus irmãos com as suas mulheres, as
minhas irmãs com os seus maridos, todos a verem-me, a
amarem-me. E às vezes eu sentia como se eles estivessem
todos a cantar em coro comigo. Logo que a canção acabou, os
meus nervos retomaram rápida e furiosamente. Cantar eu
soube. Foi tão natural como respirar. Mas responder às
questões do apresentador de TV era outro desafio.
Repentinamente, eu idealizei que não tinha nada para falar a
não ser sobre o meu amor pelo canto. E que queria fazer isso
toda a minha vida. Nada mais. Parecia muito pequeno para
mim.
Michel Jasmin
mencionou a minha idade, treze, e disse que a minha mãe e o
meu irmão tinham escrito a canção que eu tinha cantado. [83]
Ele
felicitou-me e elogiou a minha voz e perguntou-me
gentilmente se eu já tinha tido lições de canto. Eu fiquei
espantada pela pergunta e respondi bruscamente, como se
fosse obvio, que eu não precisava de lições. Eu não sei
porque respondi dessa maneira. Eu estava feliz com a minha
actuação e a minha vitória sobre o palco, mas estava bem
ciente, como estava Eddy, que ainda tinha muitas coisas a
aprender. A minha resposta deve ter parecido ridiculamente
pretensiosa. Mas eu queria tanto tornar-me numa grande
cantora que começei a pensar que tinha tudo o que precisava
para o conseguir. Eu acreditei tanto em mim que a modéstia
parecia desaparecer logo que o assunto era a minha voz. Hoje
compreendo que ao contrário de Eddy, René encorajou essa
atitude em mim, e eu não acho que ele tenha ficado chateado
pelo que eu tinha dito a Michel Jasmim.
Contudo, mais
tarde ele quis que eu tivesse lições de voz, ele sempre me
incentivou a dizer alto e em bom som que eu podia poderia
surpreender toda a gente. "Se queres ir longe, tu tens de
saber o que podes fazer e tens de dizer isso ao mundo.
Algumas horas depois de filmar o programa de televisão eu vi
a gravação na sala de estar dos meus pais, rodeada pelos
meus irmãos e irmãs. Quando eu cantei, isso funcionou. Mas
eu odiei totalmente a entrevista. Parecia pretensiosa. E há
uma coisa nesta terra que eu realmente odeio, é as pessoas
que sabem tudo, que nunca tiveram medo, que têm opiniões
sobre tudo e pensam que não têm nada a aprender de ninguém.
Eu não tenho
nenhuma memória da reacção do René. Eu nem sequer me lembro
se ele estava na sala connosco. No entanto, eu lembro-me que
nos dias seguintes, no seu escritório, eu tive de suportar
repetidas vezes ver-me a cantar e deixar as minhas idiotices
em relação a Michel Jasmin. René não era crítico em relação
a isso. Ele não comentou, excepto na maneira como eu peguei
o microfone, demasiado alto na frente da minha boca, e o
modo como eu passei o microfone de uma mão para a outra.
Dois pequenos hábitos dos quais eu tinha de me livrar.
O que ele
realmente queria era que eu olhasse para mim própria e
ficasse confortável com o que via, como se eu fizesse parte
do público. Isso não era fácil de fazer. Mas tu tinhas
realmente de o fazer. Durante anos, o René pôs-me a fazer
este exercício sempre que eu
ía à televisão. Eu tinha de vislumbrar a transmissão e de me
observar a cantar e isso era mais terrível para mim do que
encarar grandes audiências. Se certas coisas me pareciam um
desastre, eu rapidamente as corrigia e não voltava a fazer
mais o mesmo. Eu desenvolvi a capacidade de não olhar muito
tempo para o passado. Eu não me agarro a pensamentos iníteis.
Várias vezes
durante o verão eu cantei o hino nacional no início dos
jogos de baseball no estádio Olímpico de Montreal.
[85] O
comunicador anunciou que "O Canada" e "Stars and Stripes"
iriam ser interpretadas por uma rapariga jovem de treze
anos. "Senhoras e senhores: Celine Dion". De micro na mão,
eu corri para o centro do estádio e em frente à multidão e
às câmeras de televisão, usando o uniforme dos "Expos" de
Montreal, eu cantei os hinos. No dia seguinte eu vi-me
cinco, seis vezes. Sem comentários.
Nesse verão, o
melhor da minha vida, nós fizemos juntos dois álbuns: um de
canções originais escrito pela Mamã e pelo Eddy, e outro de
canções de natal. Eu lembro-me de cada sessão de gravações
como uma celebração real.
No final do
dia, o René vinha buscar a minha mãe e eu, e às vezes o meu
pai também, para estúdio Saint-Charles. René convidava
sempre muitas outras pessoas - o seu primo Paul Sara, os
seus amigos Marc Verreault, Ben Kaye, Jacques Des Marais,
entre muitos outros, pessoas da industria e da media. Às
vezes ele trouxe as suas crianças, e a sua mulher,
Anne-Renee. Eddy and Mia estavam ali também. E com muitos
dos meus irmãos e irmãs, as suas crianças, os seus amigos, a
sala de controlo estava pronta para estourar com todas estas
pessoas que nos viam trabalhar, às vezes até altas horas da
manhã. A meio da noite, nós tínhamos pizza ou comida chinesa
entregue. Um dia o René decretou que as pessoas que queriam
fumar tinham de sair para o parque. Nesse tempo, a Mamã
fumava, assim como o meu pai e alguns dos meus irmãos e
irmãs. Mas eu nunca gostei de ver a Mamã fumar. Eu nunca
gostei do cheiro dos cigarros.
Nos dias em
que eu não cantava, eu ia às compras, ou com as minhas irmãs
ou com Anne Renee, ou Mia. René tinha dado a Mia a
responsabilidade de me ensinar como criar um look para as
fotos dos álbuns.
Eu sempre
adorei a moda. Quando eu era pequena, eu via a minha mãe a
costurar e a tricotar. Eu recortava partes de revistas e
desenhava vestidos e casacos para mim. E tinha vestidos
engraçados e sapatos de salto alto das minhas irmãs.
Para o meu
aniversário e outras festividades, Claudette, a minha avó,
comprava-me sempre alguma coisa para usar. As minhas irmãs
Dada e Liette às vezes levavam-me às compras com ela.
Com o meu
primeiro dinheiro que eu ganhei como cantora, no verão de
1981, com 13 anos, eu comprei algumas sapatos de tacão alto,
feitos de couro preto envernizado. A minha paixão por
sapatos tinha apenas começado. Para mim, eles eram jóias, os
acessórios indispensáveis para completar um traje. Embora eu
nunca tenha contado, devo ter mais de mil pares hoje.
A minha
colecção inclui tudo - botas de chuva cor de rosa, sapatos
com penas e lantejoulas, sapatos com pele de jacaré, outro
calçado em plástico. E claro, eu tenho muitos sapatos de
salto alto que são muito chiques, em cada cor possível e
impossível, até transparentes e florescentes. E eu usei-os
pelo menos uma vez, mesmo os que machucam os meus pés. Eu
não sei aonde é que eu ganhei esta obsessão. Eu apenas sei
que naquele momento eu caminhava numa loja de sapatos. E eu
posso comportar-me de maneiras que são completamente
irracionais. Muitas vezes, eu comprei o mesmo sapato em cada
cor disponível.
[87] Depois quando eu chegava a casa eu
compreendia que o que tinha feito era louco, perturbador
também. E mais tarde, um dia eu disse a mim mesma que talvez
isso fosse a minha única peculiaridade. Em cada aspecto da
minha vida profissional, eu tenho de controlar as minhas
emoções ao máximo, todos os meus impulsos, os meus
sentimentos. Faz parte da minha profissão. Eu tenho de ser
extremamente razoável e disciplinada sobre o que eu faço.
Então, porque é que eu devo negar esta minha peculiaridade
inofensiva que não machuca qualquer pessoa e não prejudica a
minha carreira de qualquer maneira? Aonde eu vá, eu olho
para os sapatos de todas as mulheres que eu começo. Para o
dos homens também, embora com eles o universo dos sapatos
seja menos rico e menos mudado. Com as mulheres a escolha é
sem limites. E nesta consideração, todas as mulheres são
iguais. Magra ou gorda, nova ou velha, nós todas temos um
vasto número de escolhas sempre que saímos a cada momento do
dia. Nos meus tempos de jovem, eu gostava de roupas
espalhafatosas e brilhantes. Se a minha imagem tivesse sido
tratada só por mim , eu tenho a certeza que eu me teria
equipado como uma brilhante estrela de rock ou como uma
mulher fatal com uma fita ao pescoço, com uma longa saia com
uma faixa e com sapatos altos. Aonde eu estivesse com a
Dada, nós encontrávamos sempre algo hilariante e provocador.
Diria quase pecaminoso sobre os trajes que eu escolhi, ou
que eu poderia escolher se eu tivesse dinheiro.
Eu sonhava
ver-me a caminhar por uma rua como uma modelo. Eu
imaginava-me a cantar como a descer a escadaria do teatro de
variedades, usando um vestido sumptuoso com penas e
lantejoulas. Eu penso que cada rapariga nova sonhou com isso
uma vez ou outra. Mas para manter os custos da moda era
preciso muito mais dinheiro do que aquele que estávamos
habituados a ter. Mas nesse verão, pela primeira vez, nós
estivemos bem um pouco.
Para mim, de
qualquer maneira, parecia que nós estávamos a nadar em
dinheiro. O René pagava sempre tudo: os estúdios, os táxis,
os restaurantes, até as refeições a meio da noite para os
engenheiros e para a audiência nos estúdios de gravação. Ele
também ia pagar a minha imagem, para uma sessão de
fotografias, o lançamento, etc.
Mas a ideia
não era fazer roupas e ter o cabelo para risadas nem para
chocar as pessoas. Mia, em quem René confiava absolutamente,
explicou-me o quanto importante eram essas primeiras imagens
de mim, que seriam apresentadas ao público. Ela lembrou-me
os maiores temas das canções do Eddy.
"As tuas
roupas devem combinar com o que as tuas canções dizem",
disse ela. "Devem estar de acordo com a história da rapariga
jovem a descobrir a vida, a questionar-se sobre o amor,
contando-nos sobre a sua avó, os teus seus sonhos. É uma
menina doce e amável que só tem treze anos de idade". Eu
talvez tenha ficado decepcionada porque não ia ser mais
espalhafatosa, mas não durou muito tempo. Logo que começei a
trabalhar com a Mia na imagem que eu teria no álbum, eu
fiquei realmente envolvida. Eu percebi a lógica disso. Eu
também tive confiança em Mia e René. Tal como na minha mãe.
No entanto,
havia um problema. Quando posei para as fotografias para o
álbum, recusei-me a rir ou mesmo a sorrir, porque eu não
queria mostrar os meus dentes.
[89] Os meus dentes eram tão
longos e proeminentes que mesmo com a minha boca fechada,
Eles faziam
subir o meu lábio superior. Mais ninguém na família tinha os
dentes como eu, nem os meus pais, dos quais eu tinha fotos
quando eram pequenos. Era uma distinção com que eu tinha de
conviver sem poder fazer nada. Paras as fotografias da
escola eu tinha criado o hábito de fechar a minha boca para
esconder o meu problema.
Sempre que
tinha de sorrir - como eu tive de fazer para a fotografia da
capa do álbum - eu abria os meus lábios o mínimo possível.
Além disso o fotógrafo criou uma luz suave para que diminuiu
consideravelmente os altos que os meus dentes faziam nos
lábios.
Eu lembro-me
do lançamento desse álbum mais claramente do que os outros
que se seguiram. Provavelmente porque foi o primeiro. Mas
também porque os jornalistas não me perseguiam. Nas
aparições promocionais, depois de eu cantar "Ce n'etait
qu'un rêvê" e "La Voix du Bon Dieu" eles todos queriam
entrevistar o René e o Eddy como se eu não tivesse nada para
dizer. O que foi provavelmente o caso. Eu ainda não sabia
como falar com os jornalistas. Ou talvez eles não soubessem
como me perguntar as perguntas correctas. Apesar de ter a
voz de um adulto eu era apenas uma jovem. Acredito que foram
surpreendidos pela discrepância.
Eddy falou com
eles sobre a minha voz, o meu espírito, o meu sentido de
disciplina, e a minha família. Depois da minha mãe, claro,
ele era a pessoa que me conhecia melhor no mundo.
Eddy foi a
primeira pessoa, antes mesmo da minha mãe e das minhas
irmãs, a saber que eu beijei um rapaz. O seu nome era
Sylvain. Isso tinha acontecido no alpendre da casa da minha
irmã Claudette em Lachenaie. Foi um beijo real, não
muito longo, mas eu fiquei muito nervosa com isso. Isso foi
porque, depois, eu não identifiquei o que eu tinha sentido.
Eu não me perguntei se ele me amava, mas se eu estava
apaixonada. Além disso, eu não teria entendido até se ele
tivesse amor por mim. Eu não me achava muito atraente.
Depois ele
levou-me até ao porão da casa dos pais dele, onde ele passou
horas a jogar Nintendo enquanto eu folheei revistas de caça
e de pesca, as quais não podiam me interessar menos. E nós
nunca nos beijamos de novo. Terminamos quase sem nos
falarmos.
Aquele beijo
me deixou muito confusa. Eu sondei meu coração, eu queria
entender, colocar os meus sentimentos em ordem. Quanto mais
pensava sobre isso, mas eu ficava confusa.
Quando o Eddy
me perguntou um dia se eu estava atraída pelo Sylvain, eu
percebi que não estava. E eu comecei a chorar. Eu queria
muito amar um garoto. Até um garoto que não me amasse.
Especialmente um que não me amasse. Mas eu tinha muitos
projectos que me iriam gastar muito tempo. Eu só queria
estar apaixonada.
Dois ou três
dias depois dessa conversa com o Eddy, quando eu voltei da
escola, a minha mãe disse-me que o Eddy tinha ligado. Ele
tinha escrito uma música nova para mim. Chamava-se "D'amour
Ou D'amitié" (Amor Ou Amizade). Quando eu li a letra, eu
chorei muito, porque a letra era-me muito próxima. Era como
se o Eddy a tivesse arrancado do meu coração.
[91]
E eu
estava como uma ilha
no meio do oceano.
Diria que o meu
coração
era demasiado grande.
Essas palavras
foram feitas à medida para mim. Essa era eu, a minha
história, a história de uma jovem rapariga sonhando em se
apaixonar. Mas além do amor da minha família, não havia
nenhum tipo de amor à minha volta ou em mim. Nenhum grande
amor possível. Eu estava sozinha. E por muito tempo, eu
achei que eu sempre ficaria sozinha, a minha vida toda. Eu
disse para mim que talvez o amor se estivesse esquecido de
mim. Isso fazia-me muito triste, e eu cultivei essa
tristeza, eu mimei isso, e quando eu cantava isso passava
para minha voz.
Ao mesmo tempo, eu tinha algumas grandes razões para estar
feliz. A minha vida estava a mudar. Eu sabia que grandes
coisas estavam reservadas para mim. |