CELINE DION PT

NOTÍCIASINFOZONEDOWNLOADSSHOPTWITTERFACEBOOKSITE

 INFOZONE » MA VIE MON RÊVE EM PORTUGUÊS

  Capítulo 7

 

René parecia preocupado desde manhã. No avião entre Minneapolis e Dallas, onde iríamos passar os próximos 10 dias, eu reparei que ele estava passando muito a mão no pescoço. Eu perguntei o que ele tinha, mesmo sabendo a resposta que ele me iria dar.

− Não tenho nada.

− Deixa eu ver.

A minha mão tocou o pescoço dele. Eu senti uma massa dura do lado direito do pescoço, debaixo da orelha, uma massa grande e dura como um ovo.

− Há quanto tempo você tem isso?

− Isso não é nada, vai passar.

Eu fiquei furiosa com ele.

− Você está esperando o quê para consultar um médico?

− Mas isso só apareceu há algumas horas.

− Dói?

− Não, nada.

Imediatamente pensei que seria muito grave. Um inchaço que cresce em algumas horas e que não dói, não poderia ser benigno… Durante a viagem, eu tentei não pensar no pior mas não conseguia. Eu ainda sentia debaixo dos dedos a sensação terrível daquela massa estranhamente dura.

No dia seguinte de manhã, muito cedo, René saiu para fazer exames numa clínica de Dallas. Ele não quis que eu o acompanhasse.

− Você vai dormir – disse-me ele. – Você tem um concerto hoje à noite. Você tem que estar em forma.

Ele beijou-me no rosto e saiu com Martin Lacroix, o filho dos nossos amigos Coco e Pierre, que se ocupava da logística da tour. Eu bem que disse a mim mesma que eu precisava descansar para a minha voz estar em boa forma de noite mas eu não consegui dormir. No final da manhã eu fui ao hospital, onde encontrei René preocupado.

− É possível que eu tenha que ser operado – disse-me ele.

Eu nunca em toda a minha vida vou esquecer esse momento terrível: no começo da tarde um médico jovem veio encontrar-nos no quarto de René e anunciou-nos que ele devia fazer uma biopsia. Eu já estava ouvindo, como nos meus piores pesadelos, a palavra que não quer ouvir, mas na qual nós dois estávamos pensando desde o dia anterior. O médico não falou disso logo. Ele utilizava termos técnicos, ele explicava que o tumor poderia ser maligno. Eu insisti para que ele dissesse claramente as coisas, para que não restassem dúvidas. [345] Eu segurava a mão de René.

− É ou não é, doutor?

− A biopsia vai dizer.

Ele não era animador mas também não era assustador. Era frio, técnico.

− Se for cancro, teremos que operar. A biopsia seria feita no final do dia e saberíamos os resultados antes da noite. René ligou para Nova Iorque para um amigo médico, que prometeu encontrar o melhor cirurgião dos Estados Unidos.

Perto das 17 horas, eu peguei o avião para ir cantar em Kansas City. Eu não disse a ninguém o que estava acontecendo. Apenas disse aos músicos, a Manon e a Suzanne que René tinha uns negócios para cuidar, sem falar detalhes. Eu não queria guardar segredo mas eu não me sentia capaz de falar.

Antes de subir no palco eu liguei para o hospital. René disse-me que tinham feito a biopsia e que saberíamos os resultados antes da manhã seguinte.

− In Allah Rad, meu amor, com a graça a Deus.

De repente tudo me apareceu horrível, terrível. Eu estava sozinha no meu camarim com a minha dor, desfeita, de repente senti-me tão cansada que sentia zumbidos nos ouvidos e dificuldade em articular facilmente. Nessa noite, eu tive que ceder o meu lugar à minha pior inimiga, a cantora robô. A minha alma estava em outro lugar.

Eu poderia ter dito, quem sabe, o que estava acontecendo às pessoas que me escutavam e me aplaudiam (tão generosas!). Mas eu teria chorado tanto, eu estava tão abandonada e tão desesperada. Por isso eu dei lugar à detestável cantora robô. Eu fiquei fora das minhas canções e eu escutei-a, eu vi-a fazendo o seu show, o meu show. Eu tinha o espírito e o coração em outro lugar. Mas só até "The First Time Ever I Saw Your Face" (A Primeira Vez Que Vi o Seu Rosto). Aí eu encontrei-me no coração da canção, que eu cantei muito bem, mesmo com os olhos cheios de lágrimas…

Eu voltei a Dallas um pouco antes da meia-noite. Fui directamente do aeroporto para o hospital. Abrindo a porta, eu vi duas camas na escuridão. René estava numa, na outra estava o seu amigo Pierre Lacroix, que tinha chegado de Denver durante a tarde. Eu fiquei tão comovida de o ver ali que quase comecei a chorar. René estava dormindo. Pierre levantou-se e depressa me levou para o corredor. Ele acalmou-me, falou-me para ir dormir, que Coco me esperava no hotel. Depois ele deixou-me sozinha com René mas eu não o quis acordar. Ele parecia em paz. Eu via uma ligadura do pescoço dele, onde ele tinha feito a biopsia.

A minha noite foi curta e agitada. Eu tinha acabado de adormecer quando bateram com força na minha porta. Tinha havido um rompimento de canos no hotel e o meu banheiro estava inundado. Os meus chinelos flutuavam no quarto. Os empregados vieram secar tudo, fecharam as válvulas, consertaram os canos. Eles eram muito educados, falavam muito baixo.

Eu adormeci de novo. Pelas nove horas acordaram-me de novo. Coco estava sentada na cama, debruçada sobre mim, ela tinha pegado no meu rosto entre as mãos. Eu sentia-as, muito frias, contra o meu rosto. Ela disse-me, olhando-me nos olhos:

[347] − Céline, minha querida, o seu marido precisa de você.

Eu compreendi logo exactamente o que estava acontecendo. Meia hora mais tarde eu entrei no hospital com Coco.

René estava sentado na sua cama. Ele tremia e chorava. Pierre Lacroix estava do lado dele.

− Eu tenho cancro, Céline. O médico disse-me. Eu tenho câncer.

Pierre, Coco e eu rodeamos René. Falámos com ele como se fala como uma criança. Ficamos assim muito tempo, os quatro abraçados.

Era o dia 30 de Março de 1999. Era o dia em que eu fazia 31 anos.

René só chorava quando eu me aproximava dele e o pegava nos meus braços.

− A nossa felicidade está destruída – dizia-me ele.

Ele estava errado. Ele agora sabe disso.

Eu também estava terrivelmente abandonada, esmagada pelo medo e pela dor quando soube dessa notícia horrível. Eu não conseguia respirar, eu não conseguia falar. Mas, como sempre, nessas situações, eu fiquei em piloto automático.

Eu decidi na hora não chorar. O homem que eu amo precisava de mim. Eu não podia ir abaixo. Eu seria forte, eu seria a sua força, a sua saúde, a sua cura… foi isso que eu disse a mim mesma na hora. E foi nisso que pensei enquanto ele esteve doente.

Eu pensei também que preferia que tivesse acontecido comigo. Eu sou forte. Eu tenho muita força. Por mais que René dissesse o que estava sentindo, eu não podia viver o que ele estava vivendo.

O doutor Bob Steckler, o amigo médico de René, veio visitar-nos. Ele tinha visto René na véspera, tinha assistido à biopsia e tinha sabido dos resultados. Bem cedo de manhã ele tinha dito a René que o seu cancro era grave e que ele o operaria dentro de algumas horas.

Bob é um homem muito caloroso, gosta de rir. Sem nos mentir, ele animou-nos muito. Ele até nos fez rir. Ele dava-nos a impressão de que estávamos todos indo num passeio juntos. Patrick, o filho de René, que faz parte da minha tour, estava com a gente.

Para o meu aniversário, René tinha convidado, como sempre, os meus pais e alguns amigos. Eles chegaram de Montreal no final da tarde e foram directo para o hospital: papá e maman, Paul e Johanne, Marc e Murielle. O doutor Steckler tinha deixado o seu escritório à nossa disposição. E a sua mulher Debbie, tão linda e tão meiga, veio acolher-nos, serviu-nos refrigerantes, café, bolo. Jean-Pierre e Anne-Marie vieram depressa ver o seu pai.

René adivinhou que eu queria cancelar os meus concertos. Alguns minutos antes de ir para a sala de operações, já sob o efeito dos sedativos, ele repetia-me que eu tinha que continuar.

− É muito importante que você não pare. Não vai mudar nada, você sabe.

Eu lembrei-me do que ele me tinha dito quando teve o ataque cardíaco: "se você parasse eu morreria duas vezes."

Ele convenceu-me a continuar. Anne-Marie estava do outro lado da cama, grandes lágrimas correndo sobre o seu rosto.

[349] − Eu estou aqui – disse-me ela. – Eu cuido do papá.

E ela logo parou de chorar. Nada melhor do que canalizar a dor para um dever, uma missão.

Os enfermeiros vieram pegar René. Estávamos todos em volta dele, toda a tribo, uma dúzia de pessoas. Seguimos ele até à porta do bloco operatório.

Voltamos em silêncio para o escritório do doutor Steckler.

Duas ou três vezes ele ligou-nos da sala de cirurgia para nos dizer que estava tudo bem. Bob Steckler é um optimista. Ele vê sempre o lado bom das coisas.

Depois da operação, ele disse-nos que tinha retirado tudo o que tinha de mal. E tínhamos que ficar confiantes e positivos.

− A cura de René acabou de começar – dizia ele.

René dormia. Nós voltamos para o hotel. Ele tinha mandado decorar a sala de jantar da nossa suite e preparar um jantar de aniversário para mim, um grande bolo com cinco velas.

Pela primeira vez, o nosso grande organizador estaria ausente.

Nós tentamos seguir as recomendações do doutor Steckler, de estar bem dispostos, rir. Mas ninguém tinha vontade de estar num banquete. Mas, mesmo assim comemos o meu bolo de aniversário. Costuma dizer-se que dá sorte e felicidade e a gente sentia que estávamos precisando muito disso.

Tirámos fotos em grupo. E eu pensei numa coisa terrível. Pela primeira vez em muitos anos, René não estava presente. Eu pensei também, apesar de tudo o que o doutor Steckler nos tinha dito, apesar de saber que temos que afastar os pensamentos ruins, que ele podia morrer e nunca mais estaria presente.

Eu estava sentada no fim da mesa, entre a minha mãe e o meu pai, e quase desfaleci, literalmente, quase caí no chão entre os dois.

Johanne, a minha decoradora, tinha vindo com malas cheias de esboços, plantas, amostras de pedras e telhas destinadas à nossa futura casa nova do Rio Mille-Îles.

Para nos fazer pensar em outras coisas, ela abriu as suas malas. Colocamos no chão as pedras, sobre os tapetes, olhamos uma a uma, por vezes mexendo na iluminação… mas eu não tinha coração para isso. Eu estava incapaz de escolher o que quer que fosse.

Na noite seguinte eu cantaria em Houston. René tinha recusado cancelar o concerto. Tínhamos que continuar como se nada tivesse acontecido. Nessa noite a cantora robô quis-se impor. Mas havia muita serenidade na arena. Parecia que a multidão compreendia o que eu estava vivendo, mesmo sem saberem de nada, porque nenhum comunicado tinha sido enviado nesse momento sobre a doença de René.

Eu senti a minha voz tremer quando cantei "All The Way", a nossa canção romântica. Eu poderia ter chamado a cantora robô. Mas deixei a minha voz tremer e a emoção tomar conta de mim.

Antes de começar o concerto, eu tinha reunido os músicos no meu camarim. Mégo, André, Marc, Yves, Paul, Dominique, as coristas, Daniel e Denis, os engenheiros de som, e Lapin, o responsável das iluminações. [351] Eu contei o que estava acontecendo.

Eu não queria prolongar-me porque tínhamos que fazer um concerto. Mas quando eu vi os olhos deles enchendo-se de lágrimas, eu não segurei as minhas lágrimas. Nós choramos todos juntos. Depois, um a um, eles vieram abraçar-me. Acho que nunca estivemos tão unidos e atenciosos uns com os outros como naquela noite. Eles rodearam-me, envolveram-me com a sua música, que foi mais doce e acariciante do que nunca. Foi como se tivéssemos rezado juntos. Foi isso que Mego disse depois do concerto. Os outros também nunca esquecerão esse momento que partilhámos.

É verdade que fizemos um concerto magnífico. Mas, meu Deus, a que preço!

A bordo do avião que, durante a noite, me levou de volta a Dallas, eu decidi mandar cancelar todos os concertos, todas as gravações, todos os programa de televisão, todas as entrevistas. Enquanto René não estivesse fora de perigo eu queria dedicar-me unicamente a ele.

Evidentemente, ele não estava de acordo.

− O que é que isso vai mudar? – dizia ele.

Essa vez, eu estava determinada a me impor contra ele e ir até ao fim. Eu queria partilhar essa provação com ele. Eu não podia continuar trabalhando numa tour sabendo que ele estava sozinho com a sua doença e o seu medo. No entanto, fiz cedências. Eu fiz quatro ou cinco concertos, muito próximos para poder cancelar. Mas os últimos concertos da tour do Canadá e dos Estados Unidos foram cancelados até ao Outono.

Nós tínhamos vontade de ficar sozinhos. René admitiu que descansava melhor quando eu estava do lado dele. Eu deitava-me ao seu lado, na sua cama de hospital, e ficávamos horas na escuridão, em silêncio.

Um dia, mais ou menos uma semana depois da operação de René, nós estávamos dormindo quando a porta se abriu sem terem batido antes. Era o doutor Steckler.

− Oi, namorados, como vai?

Ele chamava-nos sempre de "namorados". Ele fala muito depressa, com um forte sotaque de Nova Iorque que ele adora exagerar.

Ele sentou-se com força em cima da cama. René tinha uma grande ligadura no pescoço, de onde saía um dreno. Há uma semana que ele mal se mexia e falava pouco.

− O que é que você vai fazer essa noite? – Ele perguntou a René.

René sorriu fragilmente, sem responder.

− Eu vou ver a sua boa esposa cantar. Posso-te arranjar um ingresso, se você quiser.

Dessa vez, René riu com vontade.

− Eu adoraria acompanhar-te, mas com essa ligadura e esse dreno…

−Ah! Mas se é por isso…

O doutor debruçou-se para René e arrancou, com uma puxada, a ligadura e o dreno.

− Se você não vier ver a sua mulher cantar essa noite, vou achar que você não é um bom marido.

Ele falou-nos dos tratamentos de radioterapia que René deveria fazer.

− A gente começará quando você tiver bem descansado. Terá alguns efeitos secundários desagradáveis mas nada de sério. Você vai recuperar bem depressa, você vai ver.

Eu pude constatar, nessa noite mais do que nunca, a que ponto todo o mundo na nossa equipe adorava profundamente René. [353] Todos o vieram cumprimentar.

− Estamos todos com você. Cuide de você, campeão.

O nosso campeão iria assistir ao meu concerto. Ele tinha sempre sido o meu crítico, o meu público, o meu fã mais intimidante. Há 15 anos, todas as noites, quando ele estava presente, eu sabia que ele me iria julgar, e que ele tiraria notas, que ele veria o meu menor erro… Eu preciso que ele esteja presente. E, ao mesmo tempo, o seu olhar reflectia a pressão que eu sentia. Eu, às vezes, via o olhar dele entre a multidão. Se os meus olhos cruzavam os dele, eu dizia sempre a mim mesma: "Desliga, Céline, não olhes para ele… ele vai-te desconcentrar."

Mas, nessa noite em Dallas, pelo contrário, eu procurei os olhos dele, eu prendi-me a ele e cantei só para ele. Eu dizia a mim mesma que havia algo mais importante do que a minha performance a partir de agora: a sua saúde, a nossa felicidade. Nós estávamos num momento de mudança na nossa vida. Era assustador, terrível e, ao mesmo tempo, muito empolgante.

Alguns dias mais tarde, voltámos a Jupiter, para a nossa grande casa, agradável e fresca. René começou a sua convalescença. Ele devia ficar em forma antes de começar os seus tratamentos de radioterapia. Os médicos tinham previsto 38 sessões, 5 por semana.

Ele dizia, rindo, que a sua doença tinha um lado bom: ele iria emagrecer um pouco. Mas os médicos recomendaram que, enquanto ele esperava o começo da sua radioterapia, comesse tudo o que tivesse vontade, porque os tratamentos iriam roubar muita energia dele.

− Seja como for, − dizia o doutor Steckler – você vai perder, junto com o seu apetite, as suas forças e algum peso.

Depois da sua operação, durante duas semanas, ele só podia engolir purés. Mas ele recuperou o apetite depressa. Ele podia finalmente, pela primeira vez em muitos anos, comer sem remorsos. E ele fez isso com muito prazer durante algum tempo.

Os seus amigos continuaram a chegar de Montreal, os seus velhos cúmplices de sempre: Marc Verrault, Paul Sara, Jacques Desmarais, Ben Kaye, Rosaire Archambault, Guy Cloutier e Pierre Lacroix. Eles vinham passar dois, três dias, uma semana com a gente. Pierre e Coco estiveram muito presentes durante a convalescença de René. Eles rodearam René com o seu humor e o seu afecto. Eles estavam em volta dele como os seus guardiões, defensores, guarda-costas… Eu achava que eles pareciam guerreiros que tinham vindo defender um amigo do mal que o ameaçava.

Estávamos no mês de Maio de 1999 e René continuava jogando golfe com os amigos. Ele usava um lenço e um chapéu para não se expor demais ao sol. Era penoso para mim ver ele assim, forçado a se proteger, logo ele que ama tanto o calor e o sol. Ele dizia sempre às pessoas que ficavam surpresas de o ver sair para o golfe debaixo do calor de Las Vegas:

− Vocês esquecem que eu sou árabe!

Ele dizia isso brincando, é claro. Mas, no fundo, ele tem muito orgulho das suas origens. Ele tem um fascínio pelo mundo e pela cultura árabe, pelo deserto, pelo calor…

Eu passava horas no jardim ou em volta da piscina com as minhas irmãs Manon e Linda. Eu continuava vendo revistas de moda e de arquitectura. Os homens saíam para o golfe muito cedo de manhã para aproveitar o frescor. À tarde eles assistiam televisão – poker, golfe, basebol, fórmula 1, cuja época tinha acabado de começar – ou jogavam às cartas. Quando eles baixavam a voz, eu sabia que René tinha adormecido. Ele sempre dormiu assim, nunca longos sonos de 7 ou 8 horas mas apenas algumas horas várias vezes ao longo do dia e da noite. Então os homens levantavam-se, saíam para o jardim. De vez em quando um deles ia ver René, ia colocar a coberta sobre ele ou ajeitar o travesseiro.

René tem todo um universo no qual eu nunca entro: o universo dos seus amigos do golfe, do blackjack… Ele tem com eles umas ligações de amizade muito fortes, muito íntimas. Ele liga para eles nos seus aniversários (ele sabe as datas todas). Eles encontram-se várias vezes em Las Vegas, que eles chamam "A Casa". Entre eles, eles chamam-se de "campeão", "chefe" ou "doutor". [355] Eles têm o seu jeito de apertar as mãos, segredos, linguagens. Eles vão pelo Canadá e pelos Estados Unidos ver jogos importantes de baseball e de hockey, ver combates de boxe. Eles adoram o show-business e as grandes cidades. Muitos deles são, como René, jogadores. Eles fazem apostas sobre tudo, para dar mais empolgação à vida… Eles jogam, eles apostam entre eles, eles brigam, eles ficam amuados e reconciliam-se.

Todas as manhãs, cinco dias por semana, Alain levava-nos ao hospital onde René fazia o seu tratamento. A gente ia sempre no mesmo carro, fazíamos sempre o mesmo itinerário, saíamos sempre à mesma hora, exactamente 9 horas e 5 minutos. Todos os dias, René ligava-se em pensamento a um amigo, frequentemente um casal. Alain sempre avisava esse amigo previamente, pedia para pensar em René durante 5 minutos, o tempo que durava o seu tratamento. Muitas vezes, pelas 9 horas e 20 minutos, quando o Explorer de Alain viajava na estrada, esse amigo ligava a René para lhe lembrar que estaria pensando nele e que sabia que ele se curaria.

Uma manhã eu quase não acordei. Quando saí do quarto, Alain e René estava prontos para sair sem mim.

− A gente queria deixar-te dormir – disse René.

Eu fiquei muito brava com ele. Eu sabia que ele queria muito que eu descansasse. Mas, para mim, era como se ele não tivesse confiança em mim, como se ele não levasse a sério o mais importante juramento da nossa vida.

− Você esqueceu, René Angélil, que no dia do nosso casamento, eu prometi viver com você o melhor e o pior?

Depois disso, ele vinha-me acordar todos os dias de manhã.

Ele nunca se queixava. Nem a mim, nem aos seus filhos, nem aos seus amigos. Eu importunava ele. Eu queria que me dissesse tudo, cada dúvida que ele tivesse, os seus medos, as suas dores. Mas nada, nunca. Eu sentia-o, por momentos, tão longe de mim, tão sozinho. Ele vivia coisas que eu não poderia partilhar. E isso entristecia-me infinitamente, a gente tinha sempre partilhado tudo.

Quando o seu médico viu que ele reagia bem à radioterapia, ele quis propor outra coisa.

− Para colocar todas as chances do seu lado, você teria que fazer um pouco de quimioterapia. Algumas sessões apenas. Vai ser muito duro. Dessa vez vai ter efeitos secundários pesados e desagradáveis. Mas será o melhor. Você decide.

Os três filhos de René estavam em casa nesse dia. René perguntou o que eles achavam. E cada um respondeu a mesma coisa.

− O doutor tem razão. Você tem que colocar as chances todas do seu lado. A gente está aqui, a gente vai-te ajudar.

Eu sabia que eles fariam tudo para o apoiar. Eles são bons filhos, generosos e cheios de amor. Mas, mesmo assim, na luta que ele iria lutar, René estaria muitas vezes muito sozinho. Não podemos partilhar de verdade a dor e o medo das pessoas que amamos, pelo menos não até ao limite.

Nessa noite, ao apagar a última vela do nosso quarto, eu pensei muito em Karine e na morte. E tive medo. Nós ficamos acordados muito tempo. Eu disse a René que preferia que isso tivesse acontecido comigo em vez de com ele.

− Eu sabia que você ia dizer isso – ele respondeu-me. – E você seria forte, você lutaria até ao fim, sem se queixar. Eu sei disso. E é isso que me ajuda mais. No fundo, você está no meu lugar. Eu sei disso. Eu sinto a sua força.

O médico falou-nos dos efeitos secundários da quimioterapia. Entre eles, havia o perigo de René ficar estéril durante algum tempo mais ou menos longo e que nós não poderíamos mais ter um filho.

[357] Havia uma solução. Não era a mais agradável nem a mais romântica mas ela dava-nos a segurança de que, acontecesse o que acontecesse, o nosso sonho era realizável. Alguns dias antes de René começar os seus tratamentos, nós fomos num banco de esperma. O nosso sonho esperaria, congelado, numa proveta.

Nós falámos tanto desse filho com que eu sonhava que eu tinha a impressão que ele fazia parte da minha vida. Não havia uma conferência de imprensa nem uma entrevista sem que me pedissem notícias dele.

Rumores corriam sobre isso. Disseram que estávamos preparando as coisas para adotar uma criança na Rússia ou na China. Mesmo no momento pior da doença de René. A verdade é que nunca pensámos nisso antes da media o mencionar. Se eu tivesse que ter um filho, eu queria que fosse do homem que eu amava, a incarnação do nosso amor…

Eu nunca pensei que a minha vida não teria sentido se eu não tivesse um filho. Eu nunca disse isso. Eu não teria ficado "numa dor eterna" como a media adorava repetir. Eu não queria culpabilizar esse filho que eu não tinha e o fazer responsável pela minha felicidade. Mas eu esperava-o, eu procurava-o, ele estava em todos os meus planos…

Em tour, acontecia a minha menstruação ficar desregulada. Cada vez que atrasava, eu fazia várias versões de um filme na minha cabeça: eu via-me com náuseas, eu fazia um teste de gravidez, depois eu via em grande plano o rosto de René quando eu lhe dizia que estava grávida. Ele pegava-me nos seus braços.

Durante muito tempo eu achei que a gente ia ter uma filha. Eu tinha imagens muito precisas dela. Eu inventava papéis para ela. Ela estava sempre comigo no meu camarim, a bordo do avião, ela estava sempre alegre. Durante os testes de som, ela vinha para perto de mim no palco. Os músicos e os técnicos eram loucos por ela.

Durante algum tempo, era um menino que eu via mais vezes. Contrariamente à minha filha, ele era muito reservado, quase tímido. Ele não vinha ver-me no palco. Ele esperava-me, muito sossegado, no camarim. Ele vestia-se sempre como meninos europeus, com meias curtas, bermudas, sempre com muito estilo e muita classe. Ele vinha comigo nas boutiques e eu comprava muitas roupas. Ele era independente, muito misterioso. Cada vez que ele se afastava, ele partia-me o coração. Mas eu amava-o por isso também, pela sua frieza, pela sua indiferença.

 

Pouco a pouco, especialmente depois do primeiro tratamento de quimioterapia, René começou a dizer que tudo o que engolia tinha gosto de barro, a giz e a ferro. E ele não quis comer mais. Ele tinha náuseas, momentos de esgotamento, de grande tristeza. Ele parou de jogar golfe, ele só saía para ir nos seus tratamentos.

A gente olhava por ele dia e noite, Anne-Marie, Linda, Alain e eu. Ele às vezes ficava irritado. Mas a gente forçava-o a dormir, a fazer um pouco de exercício, a comer quando ele não tinha fome nenhuma, e isso era novo para ele.

Alain desenvolveu verdadeiros talentos para preparar refeições ligeiras e variadas, cada vez menos pesadas. René fazia um enorme esforço todas as vezes. Pouco depois, ele só conseguia engolir purés. No fim, o menor odor deixava ele enjoado. [359] Durante uns dias, ele apenas conseguiu comer sorvetes "de nada", como dizia Alain, e beber um pouco de chá muito leve.

Os médicos tinham dito que ele sentiria, mais cedo ou mais tarde, uma grande fadiga. Quando essa fadiga anunciada caiu sobre ele, mesmo ele esperando por ela, foi insuportavelmente pesada e esmagadora.

O que a gente estava vivendo mudou completamente a minha visão das coisas, as minhas necessidades e os meus projectos. Eu também já não jogava golfe. Eu não sentia falta. Um jogo de golfe é como uma viagem ao fundo de nós mesmos para procurar paz, beleza e repouso. Vendo René doente e incapaz de fazer essa viagem, eu não tinha mais vontade também. Temos que estar em forma para encontrar paz, beleza, força e repouso. Quando estamos doentes não temos nada disso, ou, pelo menos, muito menos.

Todos os amigo de René tinham ido embora, os meus pais também. E, durante dias, nem Alain, nem Linda, nem as empregadas vieram. Nós vivíamos numa ilha isolada do mundo exterior, sozinhos. Quando a doença de René se tornou pública, tomamos a decisão de não ter os jornais. Nós sabíamos que eles se apressariam a aumentar todos os rumores que pudéssemos imaginar e colocariam na primeira página coisas alarmantes.

De tempos em tempos, recebíamos do nosso escritório de Montreal cópias de cartas com votos de melhoras, que eu lia a René enquanto tomávamos o nosso chá debaixo da nossa palmeira de cinco troncos.

Nós estávamos mais unidos do que nunca. A sua doença tinha-se tornado a nossa doença, o nosso cancro, a nossa luta. Nós lutaríamos e ainda lutamos juntos, os dois, até ao fim.

Como todos os jogadores, René acredita.

− Eu escolhi curar-me – dizia ele. – O doutor disse que o bom humor é excelente para a saúde, por isso decidi estar de bom humor.

Ele via a vida, a saúde e a cura como uma aposta. Ele tinha escolhido olhar, em primeiro lugar, para o lado bom das coisas. Ele dizia que isso que estava acontecendo com ele era justo e que Deus sabe o que faz.

− Eu fui muito bem tratado pela vida, eu tenho que pagar de volta, eu tenho que pagar pela minha felicidade, é justo isso – era isso que ele dizia aos seus amigos.

A gente acreditava na cura. A gente chorou e rezou. E, mesmo nos momentos piores dessa provação, vivemos momentos verdadeiramente felizes, porque estávamos juntos, porque nos amávamos.

Eu sou, para a vida e para a morte, a mulher de um homem só. Eu nunca tive outro amor, nunca tive outro amante, apenas pequenos flirts insignificantes quando eu tinha 15 ou 16 anos. Eu lembro-me vagamente de ter tido uma paixonete por um jogador de hockey profissional que nem deve ter sabido e eu nem sei se me lembro do nome dele direito.

Os homens não me cortejam. Isso não me faz falta nem me causa dor alguma. Eu não sou mulher de se deixar seduzir. Nunca. Tenho que dizer que é muito raro eu ficar sozinha com um homem, excepto René, claro. E também tenho que dizer que sempre proclamei o meu amor por René o suficiente, para que todos os homens que se aproximam saibam que eu sou uma mulher preenchida e que não procuro aventuras. Os que eu encontro bem que podiam fazer-me algumas sugestões, piscar, mesmo por jogo. Mas não.

Eu não sou, quem sabe, o tipo de mulher que provoca paixão nos homens. [361] Eu não sou provocante, ou pelo menos nunca me apercebi disso. Todo o meu charme feminino, eu investi para conquistar René Angélil.

Muitas mulheres da minha idade já tiveram muitos amantes. Eu não as invejo nem as julgo. Eu escolhi viver de outro jeito. E não é por princípios ou por moral. É apenas por isso. René e eu amamo-nos pelo que eu sou e pelo que ele é. Esse amor é o que tenho de maior, de mais forte e de mais lindo em toda a minha vida. É indestrutível, inalterável, como eu acredito que o verdadeiro amor deve ser.

Eu sei que é ingenuidade, que provavelmente é irrealista e injusto mas que não entendo como as pessoas que se amam de verdade podem separar-se e escolher não viver mais juntas. Elas não devem amar-se de verdade ou um deles amou mal o outro. Quando dois seres se amam, tem que ser para sempre. É isso o que eu acredito.

Eu fui criada no respeito pelo amor, na certeza que ele é mais forte do que tudo. Somos impotentes diante dele, não podemos resistir, mas ele faz-nos mais fortes, mais sólidos, invencíveis. Nós acreditamos, René e eu, que o melhor remédio, mais do que a quimioterapia, a radioterapia ou todos os medicamentos que os sábios nos possam dar, é o amor que nós partilhamos.

 

René nunca aceitou, nem nos piores momentos da doença, cancelar a tour dos estádios Europeus, que começava em Junho.

− Quando você for – dizia ele – eu terei terminado os tratamentos e estarei curado.

Ele tinha reconquistado a sua confiança. Ele não tinha mais náuseas. Alain preparava purés cada vez mais consistentes, que ele conseguia engolir. Ele redescobria os odores, os perfumes.

Quando parti para a Europa, a meio de Junho, ele estava ainda fraco, mas eu via nos seus olhos e na sua voz os sinais da cura.

Desde 30 de Março até essa partida, nós não nos tínhamos afastado, dia e noite, durante dois meses e meio. Mesmo quando ele ficava no hospital para os tratamentos de quimioterapia, eu dormia do lado dele. A gente tinha sempre ficado regularmente longe um do outro durante alguns dias, por vezes semanas. Ele tinha negócios para tratar, pessoas para ver e eu tinha concertos para fazer ou promoção… Eu estava em Estocolmo ou em Tóquio e ele em Nova Iorque ou em Las Vegas… Nunca, eu acho, em 18 anos, a gente tinha passado tanto tempo junto como durante a sua doença. Essa aproximação tinha-nos trazido muita felicidade. Indo embora, eu quebrava uma magia.

René dizia-me que isso seria um repouso para mim. Durante dois meses e meio, eu tinha cuidado dele sem parar, eu via se ele comia bem, via se ele tomava os remédios, fazia ele descansar quando ele precisava, levava ele para fazer exercício e, especialmente ajudava ele a manter a esperança…

René mandou instalar uma ligação em satélite que permitia que ele seguisse ao vivo na nossa casa, na sala de cinema, os concertos que eu faria em Londres, Paris ou Zurique. Eu sentiria a sua presença, invisível aos outros mas tão preciosa para mim.

Algumas pessoas nunca falam que se amam. Por pudor ou porque elas não se amam de verdade. Com a gente é o contrário. Todos os dias René fala que me ama e que vai-me amar para sempre.

[363] O momento em que fiquei mais comovida foi durante o Stade de France, diante de 90 mil pessoas. Eu fiz, eu acho, o concerto mais lindo de toda a minha carreira. O clima também era caloroso e íntimo, como se fosse numa sala pequena. Depois de ter cantando "Pour Que Tu M’Aimes Encore", eu recebi uma ovação ensurdecedora. A multidão rodeava o palco. Eu agradecia. As pessoas abanavam cartazes sobre os quais eu podia ler "Nós te amamos, René". E eu sabia que o meu marido via e escutava tudo isso, em Jupiter, ao mesmo tempo que eu. Ele tinha pedido a Daniel, o engenheiro de som, de o ligar aos meus fones. E, do nada, eu escutei a voz dele no meu ouvido, a sua voz de veludo.

− Eu amo-te, Céline, você é o meu amor para sempre.

Eu queria tanto poder chorar, chorar de medo, de dor e de alegria, tudo misturado. Mas eu não podia. Eu não queria. A minha voz iria quebrar. Eu não podia, evidentemente, responder que eu também o amaria para sempre. Nós tínhamos combinado um sinal.

− Quando você me vir tocar a ponta do nariz, é para dizer que te amo.

A minha mão tremia com o microfone.

Quando Jean-Jacques Goldman subiu ao palco, alguns minutos mais tarde, houve uma trovoada de aplausos que, durante um longo momento, nem eu nem ele pudemos fazer nada nem dizer nada. Jean-Jacques fala pouco, ele não é muito comunicativo, nem na vida nem no palco. Ele caminhou para mim, debaixo dos aplausos. Depois ele levou o microfone até à boca e falou docemente, sem elevar a voz. Logo o barulho se acalmou por todo o estádio, como se todo o mundo quisesse saber o que ele tinha para me dizer.

Ele agradeceu-me por estar presente, como se ele falasse em nome da França. E olhávamos os dois para a multidão, os braços estendidos para a gente, aqui e ali cartazes com votos de melhoras destinados a René.

Como se ele tivesse lido os meus pensamentos, Jean-Jacques disse-me:

− Tudo o que eu posso dizer, Céline, é…

E ele começou a cantar, sem música, os primeiros versos de "S’il Suffisait D’Aimer".

Dessa vez, mais ainda, eu tive toda a dificuldade do mundo em segurar as lágrimas. Eu toquei de novo na ponta do nariz. Eu tinha mais ou menos vinte segundos para voltar a mim mesma antes de entrar na canção com Jean-Jacques. Eu fiquei um pouco escondida, na sombra, respirei muito lentamente e profundamente. Quando chegou o momento de cantar, eu já tinha de novo o controle das minhas emoções, avancei para a luz e cantei.

 

Quando voltei para Jupiter, no começo de Julho, René estava bem melhor.

Eu teria amado que maman tivesse estado perto de mim. Melhor do que ninguém, ela saberia animar-me, aconselhar-me, ela era a minha cúmplice, a minha amiga, a minha protectora. Eu sentia, no entanto, que nesse combate que eu devia lutar do lado do homem da minha vida, eu tinha que apelar às minhas próprias forças. As palavras da minha amiga Coco, quando ela me veio acordar naquela manhã de Março em Dallas, ficaram no meu coração:

− Céline, minha querida, o seu marido precisa de você.

Eu sabia que René precisava da sua mulher. E enquanto ele não estivesse definitivamente curado, eu não seria mais nada, apenas a sua mulher. Não seria mais cantora, nem jogadora de golfe, nem decoradora de casas, nada. Apenas a sua mulher.

Durante dias, a gente não viu ninguém. A gente preparava as refeições juntos. Eu ainda vejo a gente na cozinha, em algumas noites, René descascando, esmagando e cortando legumes. Por vezes ele chegava perto de mim, ele pegava-me nos seus braços e a gente dançava, sem música senão a nossa, na cozinha, sozinhos. E felizes!

E depois, um dia, ele pediu-me massa. Eu compreendi que ele estava no caminho da cura. Alguns dias mais tarde ele recuperou o apetite.

[365] Então passámos dias, os primeiros dias em seis meses, sem pensar na doença dele, na nossa doença…

O nosso único motivo de angústia era o retorno a Montreal, à vida pública. René tinha mudado, tinha emagrecido. A sua voz, já aveludada, estava mais rouca e abafada do que nunca. Por vezes ele sufocava quando falava. Ele precisava ter sempre uma garrafa de água na mão. Eu acho que nunca o tinha visto tão nervoso e tenso. Foi alguns dias antes de um concerto no Centre Molson.

Ele tinha consciência que todos os olhos estariam sobre ele. Fariam questões sobre essa maldita doença, sobre a sua voz, sobre os tratamentos que ele tinha feito, aqueles que ele ainda teria que fazer. E isso o angustiava mais do que tudo. A mim também. Ele ainda estava muito cansado nessa época. Ele tinha medo de sufocar ou começar a chorar ou não saber responder às questões que iriam fazer.

Para que esse retorno acontecesse do melhor jeito, a melhor coisa a fazer era, segundo o nosso método habitual, convocar a media para uma conferência de imprensa e falar tudo. Assim que ficou diante das câmaras e dos microfones, René falou:

− Está tudo bem. Céline e eu atravessámos uma dura prova. Estamos mais próximos e mais apaixonados do que nunca. E, para não esconder nada, estamos felizes!

Os jornalistas aplaudiram. E, durante uma hora, falámos do concerto que preparávamos para o dia 31 de Dezembro e da pausa que faríamos. E, evidentemente, do filho que sonhávamos ter…

 

Alguns dias depois, fomos para o Coliseu do Québec, onde eu não cantava há 4 ou 5 anos. Eu sabia que não voltaria tão cedo. Lá, os produtores também organizaram uma conferência de imprensa. Dessa vez, René estava calmo e confiante. Era um daqueles dias em que, sem sabermos direito porquê, tudo é lindo e bom, tudo parece fácil. Nós tínhamos a intuição que a noite seria mágica.

Durante a conferência de imprensa, René disse uma coisa que, eu acho, comoveu todo o mundo. Começando por mim. Uma jornalista muito jovem perguntou do quê ele estava mais orgulhoso na vida. Ele respondeu que o seu maior orgulho era que eu tinha continuado sendo uma mulher capaz de ser feliz, atenciosa com os outros, forte e autónoma. Isso, evidentemente, comoveu-me muito. Ele disse que a nossa maior realização, segundo ele, era nós seremos capazes de ser felizes juntos.

− Como manager, é a minha maior realização − ele disse. Colonel Parker criou um dos maiores artistas do século, Elvis Presley. Mas falhou no essencial, eu acho. Ele não soube fazer ele feliz. O desafio de um manager é levar o seu artista ao topo e segurá-lo lá. Mas o maior de todos os desafios é fazer o artista feliz, evitar que ele não se desfaça, nem que ele se transforme num monstro insaciável.

Eu não sou a pessoa certa para dizer se sou uma boa mulher, generosa e atenciosa. Mas não acho que sou um monstro insaciável. Eu não tenho caprichos de diva e, se reclamo de alguma coisa, é por um bom motivo.

[367] Uma noite, por exemplo, em Montreal, na véspera de um concerto importante, eu entrei no meu quarto de hotel, eu deitei-me na cama e percebi que teria uma noite ruim. O colchão era muito duro, novo demais. E eu só durmo bem num colchão mole, no qual eu posso afundar-me um pouco.

− Se eu passar a noite aí, eu não vou dormir bem, não vou descansar direito, a minha voz vai sofrer e, amanhã de noite, eu não estarei em forma.

Pior, eu tinha que passar um mês nesse hotel. E eu tinha uns 10 concertos para fazer, em Montreal, Boston, Ottawa, Québec, etc. René compreendeu logo a minha preocupação. Ele mandou vir de Rosemère o meu colchão e os lençóis de linho que eu amava.

Enquanto instalavam a minha cama no quarto, eu comecei a pensar naquela princesa que sentia uma ervilha debaixo de 10 colchões. Quando eu era criança, as minhas irmãs diziam que ela era uma menina impertinente, caprichosa e mimada, que deviam ter cozido a ervilha e obrigado ela a engolir. Eu também não gostava dela. E aqui estava eu, trocando de colchão porque o meu estava duro demais.

Mas eu não tinha escolha. Eu tinha que dormir para que a minha voz estivesse no seu melhor no dia seguinte. E eu estava pronta para passar por uma menina impertinente, caprichosa e mimada, até por uma diva.

Em momentos normais, quando a minha voz não está ameaçada, eu acomodo-me a tudo, eu como de tudo, eu falo a todo o mundo…

Eu tenho a certeza que, graças ao homem que eu amo, eu sou capaz de ser uma mulher feliz. E, por causa disso, eu sei que o meu marido é o manager mais extraordinário com que uma artista possa sonhar.

Chegar às maiores honras do show-business não tem nada a ver com realizar-se na vida. O que conta é saber continuar a ser, apesar do sucesso, das dezenas de milhões de dólares e de fãs e da insuportável pressão que pesa constantemente sobre nós, um ser equilibrado, capaz de se maravilhar, capaz de se surpreender, de se apaixonar, de ter ídolos e sonhos.

Claro, René é mais do que o meu manager, ele é o meu amor, o meu marido, o que muda as regras do jogo completamente. Mas, mesmo no começo, ele nunca pensou unicamente na minha carreira. Ele sempre teve em conta, antes de tudo, o meu bem-estar, a minha felicidade. Ele fazia-me viver a vida que eu amava, tinha a minha mãe perto de mim o tempo todo, o meu pai e os irmãos e irmãs perto de mim. A vida tinha que ser sempre, e sempre terá que ser, bela. É a nossa grande e única prioridade. Hoje, mais do que nunca.

Nesse dia, no Québec, escutando o homem da minha vida falando sobre a felicidade em plena conferência de imprensa, eu disse a mim mesma que o único fracasso que nos poderia acontecer seria não saber mais ser feliz. Quanto a isso, eu sabia que estava realizada. Graças ao homem que eu amo, eu queria ser uma cantora e uma mulher feliz. E continuar feliz. Isso não é muito fácil.

Aos trinta e dois anos a gente sabe que a nossa felicidade depende muito dos outros, das pessoas que amamos, do que se passa no mundo. Aos trinta e dois anos, uma mulher sabe que não pode ser feliz sozinha no seu canto. E que há muitos horrores no mundo, guerras, miséria…

Eu posso ajudar, eu sei. Financeiramente, claro. Mas também, e acima de tudo, com o meu trabalho. Eu acho que tenho que cantar o amor para que ele continue a existir, para que ele ilumine e aqueça de verdade o mundo. E é isso que eu vou continuar a fazer por toda a vida, se Deus me emprestar a voz.

 

[369] Eu sabia que René estava no bom caminho no dia em que ele voltasse para o golfe e para o blackjack. Em Outubro, enquanto eu terminava a última parte da minha tour americana, ele jogou nove buracos em Denver com Pierre Lacroix, Marc e Rosaire. Depois ficámos uns dias em Las Vegas. Eu nunca soube se ele ganhou ou perdeu no jogo. Isso não tem importância. Tudo o que contava era que ele tinha reencontrado o prazer de jogar.

Não foram o golfe e o jogo que o curaram mas foi no momento em que ele voltou para os campos de golfe e para as mesas dos casinos que eu soube que ele estava de verdade no caminho da cura.

Eu acredito hoje em dia que as coisas ruins nos trazem coisas boas. A doença de René aproximou-nos, mudou as nossas prioridades, os nossos sonhos… Eu nunca saberei o que aconteceria com a gente se ele nunca tivesse tido essa doença mas ela deu-nos profundidade e maturidade. Ela uniu-nos também, tornou-nos mais atenciosos com os outros e com as coisas boas da vida.

Uma manhã de Primavera, estávamo-nos preparando para sair para o golfe. René entrou na cozinha, onde eu tomava o meu café com Linda e Alain, e ficou extasiado com o jogo de sombras e de luz que o sol projectava na parede. Antes ele nunca tinha sido sensível a essas coisas. Ele nunca parava, como ele pára agora, cada vez mais, para ver ou cheirar uma flor.

Um dia, há muito tempo, quando eu era ainda adolescente e estávamos voltando da Europa, voando sobre o Atlântico, quando nos apercebemos de um cometa que atravessava o céu para sul. Eu fui falar com os comissários de bordo para me explicarem o que era um cometa, a sua cauda e cabeleira. Depois eu fui falar com René, para que ele visse esse espectáculo. Ele debruçou-se para a janela e falou:

− Ah, que bom!

E voltou para se sentar, para continuar lendo a sua revista. Hoje em dia, eu tenho certeza que ele se interessaria por esse cometa, que ele iria querer saber quanto tempo ele ficaria no céu, de onde vinha e para onde estava indo…

Da noite de 1 de Janeiro de 2000, logo depois do concerto do Centre Molson, nós partimos para Las Vegas com os meus pais, os meus músicos e alguns amigos.

A bordo do avião, nós estávamos estranhamente calmos e silenciosos. O concerto que tínhamos acabado de fazer tinha sido tão cheio de emoção que estávamos todos vazios, doloridos como os lutadores de boxe depois de um combate.

A minha voz não tinha estado muito estável, eu tenho a certeza. Tinha havido tantos gritos de todos os lados e eu estava tão perturbada que, por momentos, eu não me escutava nem escutava a música. Várias vezes eu tive a impressão de cantar fora de tom.

− Ninguém percebeu, apenas você. Nem a gente te conseguia escutar.

Num dia normal, a ideia de cantar fora de tom teria-me levado ao desespero. Mas essa noite tinha sido mágica, porque era a passagem para o ano 2000, é claro, mas também porque era o meu último show. Eu estava diante do meu público pela última vez em muito tempo, diante de toda a minha família, do meu país, dos meus amores. O ciclo completou-se.

Cada uma das canções, eu interpretei-as com uma dimensão nova. Estávamos vivendo o fim de um sonho, o fim de um mundo. Era, ao mesmo tempo, doloroso e maravilhoso. À meia-noite, René subiu ao palco e nós abraçamo-nos por muito tempo. Eu tinha acabado de cantar "L’Amour Existe Encore". [371] À minha volta, 25 mil pessoas abraçavam-se.

 

Eu não estava apenas a caminho de Las Vegas, eu estava a caminho de uma vida nova. Antes de mergulhar nela, eu iria dar uma grande festa. Diante dos meus pais e amigos, René e eu iríamos casar de novo. Iríamos renovar os nossos votos diante de Deus e dos homens.

Assim que soube das minhas intenções, Arthur Goldberg, proprietário de uma dúzia de casinos de Las Vegas, entre os quais o Caesar’s Palace, ligou-nos e exigiu tomar conta disso. No final, eles ofereceram-nos essa festa como "presente de casamento", como ele disse. Mia e Johanne trabalharam com Anna Dimartino do Caesar’s Palace para conceber a decoração, organizar a cerimónia, o banquete, etc.

Eu quis que a decoração, a música e os cânticos, a cerimónia religiosa, a recepção, o banquete e todo o desenrolar dessa grande festa lembrassem as origens libanesas e sírias de René. A estrela e o crescente, símbolos da cultura do Oriente Médio, estavam presentes em toda a decoração. A música, a dança, as roupas, os jogos propostos aos convidados, evocavam diversas culturas árabes. Havia mesmo camelos e pássaros exóticos… Parecia um dos contos das Mil e Uma Noites: René triunfava no seu personagem de Grand Vizir ou de Califa e eu como Sherazade.

Para a capela onde a cerimónia teve lugar, a gente inspirou-se na arquitectura e no clima de uma mesquita árabe. Recriámos, na sala de baile do Caesar’s Palace, um imenso jardim oriental onde colocamos 6 tendas berberes, cada uma com decoração digna das Mil e Uma Noites.

Os convidados sentaram-se do jeito oriental, sobre almofadas. Eles comeram uma refeição de cinco serviços, preparada por cozinheiros libaneses, sírios e marroquinos. Todos os homens se vestiram de preto. Todas as mulheres vestiram vestidos longos da cor das pedras preciosas: esmeralda, safira, rubi e diamante. René vestiu-se de branco, eu tinha um vestido dourado de Givenchy.

Muitas pessoas disseram que estávamos exibindo a nossa riqueza. Quem sabe. E o que tem? A riqueza não se esconde. E eu queria que esse evento fosse, primeiro do que tudo, uma proclamação pública do nosso amor. Eu queria que o mundo inteiro escutasse a coisas mais importante que eu tinha para dizer: "René, eu te amo". Era esse o objectivo. E não podia ser discreto.

A nossa vida juntos é o meu conto de fadas. Eu preciso contá-la ao mundo inteiro, do mesmo jeito que preciso falar com as pessoas, preciso apertar a mão delas, preciso aproximar-me delas e de cantar para elas. Quanto temos a chance de ser extravagantes, um pouco loucos, de fazer os outros sonhar ao mesmo tempo que nós mesmos, não nos devemos privar.

Alguns dias mais tarde fomos para Jupiter, onde passamos o Inverno mais lindo da nossa história, muitas vezes sozinhos, outras vezes perto de amigos queridos.

Por vezes eu ia passear com René. Para não ser reconhecida, eu usava óculos escuros, chapéu e cortei os cabelos muito curtos. Muitas vezes, René era conhecido primeiro do que eu. Ele fazia parte da minha imagem. E isso deixava-me realmente feliz. Éramos apenas um. Quando me vêem, as pessoas pensam nele. Quando as pessoas o vêem, pensam em mim. Estamos unidos para a vida.

Pela primeira vez em anos, a gente assistiu a gala dos Grammys e dos Óscares na televisão, sozinhos na nossa sala. [373] Eu percebi até que ponto participar nessas coisas podia ser, por vezes, penoso. Eu nunca tinha dito isso, nem mesmo a René, acho que nunca tinha dito a mim mesma. Mas eu nunca gostei muito de galas, da falsa alegria que reina, as punhaladas invisíveis que as convidadas jogavam umas nas outras junto com os sorrisos falsos… Todo o mundo quer esmagar todo o mundo. Cada mulher quer ter o vestido mais bonito, ou pelo menos o vestido mais falado.

René nunca gostou de me ouvir dizer coisas negativas sobre seja quem for, especialmente sobre outra cantora ou sobre qualquer pessoa do show-business, ou sobre uma gala ou uma sala ou um anfiteatro onde eu tinha que cantar. Apenas quando estávamos sozinhos, evidentemente. E mesmo assim! Ele acha que falar mal dos outros é vulgar e pouco produtivo.

Desde que ficámos de férias, nós invertemos os papéis. Passei a ser eu quem contava as coisas que tínhamos vivido, como antigamente ele me contava todos os meus concertos. Todas as noites, depois do jantar, a gente sentava-se na sala, assistíamos um pouco de televisão e eu começava a falar de certos eventos que tinham acontecido numa tour, de uma pessoa que tínhamos encontrado há dois ou três anos, do tempo em que tínhamos vivido enrolados naquele turbilhão.

Eu dizia a René que adorava essa e aquela cidade, que não gostava tanto desse ou daquele produtor mas aquele outro eu achava adorável. Ele ria muito porque, no fundo, ele sabia de tudo isso. Mas, na época, levados por tudo aquilo, a gente não falava sobre essas coisas, não desse jeito. Nós não tínhamos tempo para isso. Ou tínhamos muito pouco. E raramente.

Depois, pouco a pouco, com a Primavera, deixámos de falar do passado e a fazer o balanço. Olhámos para o futuro. Uma grande felicidade estava desse lado, fazia-nos sinais, esperava-nos, ainda nos espera, esse filho, o nosso filho, que virá, mais do que qualquer coisa que já tenhamos vivido, embelezar e mudar as nossas vidas…

 

[Avançar para o Epílogo]  |  [Voltar à página principal]