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 INFOZONE » MA VIE MON RÊVE EM PORTUGUÊS

  Capítulo 3

 

Menos de um ano depois de aparecer no programa de Michel Jasmin, eu já tinha lançado dois álbuns e estava a trabalhar no terceiro. Eu já tinha estado na televisão cerca de 12 vezes. E eu fui em turnê com o show mais estranho do qual eu alguma vez fiz parte em toda a minha vida, quase um acto de circo. Um punhado de artistas estava no show, todos bastante mais velhos do que eu. Havia Plastic Bertrand e Nanette Workman, dois cantores de rock. Eles todos tinham muita experiência de palco e sabiam como provocar a multidão. As minhas pequenas simples baladas estavam no lado oposto do espectro do que eles faziam. Havia um mundo entre "Ce n'etait qu'un rêvê" e "Lady Marmalade" (com a letra "Querem-se deitar comigo, esta noite"), entre "D'amour ou D'amitie" e os desvaneios de Plastic. [93] Em outras palavras, eu estava como se estivesse fora de lugar. Os meus dois álbuns estavam a vender bem mas não certamente à audiência atraída por esta turnê.

"É perfeito", René disse à minha mãe. "Ela vai aprender a observar-se".

Cada noite, antes de ir para o palco, o René estava atrás de mim, a dizer-me que eu era a melhor e que eu tinha que chocar o público, de acordo com a sua expressão favorita, que significava que eu tinha realmente de os impresionar para me fazer notar. Quando os outros terminassem os seus shows rock and roll era a minha vez. Uma noite, eu voltei-me para o René e disse-lhe: "Nanette também impressionou o público". "Não a mim, ela não o fez". "Eu estou à espera de ti para me impresionares" Eu sei que tu podes fazer isso". Pela primeira vez eu cantei para ele. Ele juntou-se à multidão mesmo ao pé do palco, e ficou onde eu o pudesse ver facilmente. Mas eu não olhei realmente para ele até ao fim da minha canção. Eu soube que eu o tinha realmente tocado, ainda que metade da audiência não me estivesse a ouvir. Eu soube que tinha cantado como nunca o tinha feito antes e que eu me superei. E ele também sabia isso. Eu até penso que a audiência ficou surpreendida. "Tu fizeste-me chorar", disse-me ele quando me encontrou nos bastidores.

Eu não fiz todos os shows durante essa turnê. A meio do Verão, a Mamã, a Anne-Renee, o René e eu partimos para Paris. Eu ia gravar lá as primeiras canções do meu terceiro álbum. Primeiro a que eu amava muito, "D'amour ou D'amitie", também "Visa pour les beaux jours" e outra que o Eddy tinha escrito para a Mamã chamada "Tellement j'ai D'amour pour toi".

Pelo menos vinte e cinco membros da minha família foram ao aeroporto de Mirabel para nos ver partir. O Eddy e a Mia estavam à nossa espera em Paris com alguns amigos do René, Guy e Dodo Morali, que tinham um restaurante na rua Cadet no coração de Paris.

O René nunca me tinha falado realmente sobre os seus planos para mim, mas nessa noite no avião para Paris, ele gastou um longo tempo a explicar-me que os franceses não quiseram o meu primeiro álbum porque eles pensaram que não era suficientemente comercial. Lembrei-me logo de Mireille Mathieu, uma cantora que também tinha uma voz forte e vinha de uma larga família.

"É por isso que nós vamos trabalhar naqueles estúdios, com os seus técnicos, os seus produtores, para termos alguma ideia do que eles querem", disse ele.

Mas alguns dias depois de chegar-mos a Paris, quando o René me disse para ir ter algumas lições de dicção e de voz, ele informou-me que o executivo em Pathe-Marconi, a nossa companhia de produção, pensava que, não só os meus álbuns recentes não iriam ter sucesso, como também, o mais importante, a minha voz tinha alguns defeitos que necessitava de corrigir.

Eu soube que tanto o Eddy como o René, que estavam de acordo com os produtores franceses, pensaram que eu tinha cantado mal. [95] Isso perturbou-me realmente. Mas eu insisti em não deixar mostrar isso. Eddy sabia de uma senhora idosa de nome Tosca Marmor, que tinha estado a ensinar cantores e cantores de opera por mais de meio século. Ele levou-me a conhece-la, e depois saiu e disse-me que ele me vinha buscar numa hora.

Eu pensei que a vela senhora iria ficar impressionada pela minha voz e iria dizer que eu não precisava de aulas. Mas não foi o que de facto aconteceu.

A primeira sessão foi de bastantes treinos. Madame Tosca sentou-se no piano e fez-me escalas pelo menos meia hora. Depois ela pediu-me para cantar a mesma frase por outra meia hora. Ela não fazia nenhuns comentários, nem positivos ou negativos, nem mostrava alguma emoção. Logo que acabei, ela disse " Por favor, começa outra vez".

Eu fi-lo.

"Canta mais alto e com mais ênfase, por favor".

Cantei mais alto, com mais ênfase. Nenhuma reacção. Ela meramente parecia um pouco chata. Eu não sabia mais se era suposto eu cantar mais alto ou mais baixo.

Eu sai dali um pouco assustada e comecei a perguntar a mim mesma questões sobre a minha voz, sobre o que eu tinha estado a fazer com ela. Levei algum tempo até perceber que eu tinha tido uma das mais importantes lições de toda a minha vida.

Eu desejava que o René e o Eddy pensassem que eu era madura o suficiente para resolver este pequeno problema. Eu ainda não sei se era uma estratégia ponderada pelas suas partes. Mas sei que o meu ego sofreu bem um golpe nesse verão. Estava destruída e não estava mais segura de mim. Eu rezei para que algo positivo pudesse sair desta provação. Eu detesto boxe e não sei muito sobre isso, mas eu sei que eles dizem que um boxeador nunca cai em si até ser eliminado uma ou duas vezes. Eu achei que Tosca era uma mulher fantástica, inteligente, muito generosa e atenciosa para aos outros. Eu não sabia que o Eddy tinha falado com ela mas ela ensinou-me muito. Entre outras coisas, ela ensinou-me que eu ainda não tinha as ferramentas e as habilidades suficientes para me tornar numa grande cantora, longe disso. Eu também aprendi que não era suficiente ter uma voz poderosa, um registro grande, e cordas vocais de aço. Tinha de encontrar a emoção algures dentro de mim. E isso pode ser uma terrível e dolorosa experiência. Tal como Tosca me transtornava, ela também me ajudava, nos últimos tempos, a atingir um bom sentido de paz, e isso me ajudou quando entrei em estúdio.

Madame Tosca ensinou-me a não ter medo da minhas emoções, mesmo que eu não as entendesse. "Não as deixes controlar-te" ela disse. "E não fiques com medo delas. Tens de domesticá-las, tornar-te na sua mestre, fá-las servirem-te".

Como as nossas sessões continuaram, eu levava-lhe flores. Alguns dias, tudo o que nós fazíamos era falar, sobre o prazer e a dor de cantar.

 

Quase todas as noites desde que estávamos em Paris, nós terminávamos no restaurante de Guy e Dodo, onde nós ouvíamos outra vez e outra vez as gravações que nós tínhamos feito durante o dia. Uma noite, com risadas, nós ouvimos velhas gravações dos Baronets que o René tinha dado para o Guy, e dos Scorpions, o grupo ao qual Guy tinha pertencido quando era jovem.

[97] O estúdio “Family Song” era muito pequeno, mas sempre cheio como o estúdio “Saint-Charles” em Montreal. Os músicos que tinham feito a orquestra das faixas estavam lá, tal como o arranjador e o compositor. As pessoas de Pathe-Marconi estavam lá, e às vezes até um fotografo, os amigos de Eddy e Mia, pessoas francesas e pessoas  quebequenses de passagem por Paris iam lá, muitas pessoas que aparentemente não tinham nada para fazer naquele estúdio.

“Se isso te perturba, nós podemos-te deixar sozinha” disse-me o Eddy.

Eu estava preparando a gravação de “Tellement j’ai d’amour pour toi”, uma canção muito intimista. Mas a presença de todas estas pessoas não me perturbava absolutamente nada. Aliás, isso tranquilizou-me, estimulou-me. Muitos artistas preferem cantar atrás de um ecrã, no tipo de cabine onde ninguém os possa ver. Não eu. Não antigamente e não agora.

Fiquei direita no meio do estúdio. Eu olhei na multidão para a cara da minha mãe, pressionada contra a janela da cabine, e eu cantei para ela.

“O tempo tem a sua maneira

Em seu cabelo de cinza

Mas uma criança eu permanecerei

Até ao meu último dia.

Eu tenho muito amor para ti”

Eu conheço a minha mãe bem, e ela não chora facilmente. Para poupar outras compilações, ela guarda tudo para dentro. O René e eu choramos muito, mas ela não. Mas estava claro que ela estava muito comovida, orgulhosa de mim, contente, feliz com o trajecto que tínhamos feito.

Depois da segunda tentativa, houve um pequeno silêncio, depois toda a gente no estúdio me aplaudiu e o barulho era tão ruidoso que o som se ouvia na cabine. E eu aplaudi também, e sai para fora a rir. Algo mágico tinha acontecido, algo maior que todos nós. Parecia-me que por um momento, nós estávamos todos felizes juntos naquele pequeno estúdio. Mesmo as pessoas que não tinham nada a fazer ali.

Na primavera, eu terminei o meu sétimo ano de escola. Eu tinha esquecido muitas coisas, e cada vez que eu ia lá, eu notava sem muita emoção o quanto eu tinha ficado para trás. Eu rapidamente via que não poderia alcançar os outros. Uma vez fiquei a perceber isso, eu estava algures, num outro planeta. Eu criava pequenos filmes na minha cabeça. Eu retomava outra vez à África profunda ou ao Amazonas. Às vezes eu também contava a mim mesma histórias de amor realmente tristes ou mórbidas, romances melodramáticos que me trouxeram à borda de lágrimas. Mas muitas vezes, eu imaginei-me como uma estrela do espectáculo e dos filmes. O meu nome em quadros de avisos gigantes, abrindo noites, a receber aplausos.

Eu escrevi as histórias, fiz a direcção, as roupas, o cenário, os diálogos. E eu sempre tinha um papel de protagonista, normalmente como uma rapariga que se parecia com a irmã da heroína de Flashdance. Tinha visto aquele filme pelo menos cinco ou seis vezes, sozinha ou com o Manon, Dada, ou Pauline, num teatro no centro da cidade de Montreal.

[99] O Flashdance é a história de uma menina que tinha o sonho de dançar num grande show da Broadway, mas porque era pobre e tinha de trabalhar duro para ganhar a vida, ela nunca pôde ir para uma escola de dança. Ela tinha de aprender por conta própria, tudo sozinha. Dançar. E lutar. A cada teatro em que ela ia, eles olhavam-na baixo porque ela não conhecia ninguém. E ela nunca passou uma audição.

Um dia, por um acaso, ela conheceu uma senhora velha que foi uma grande bailarina numa companhia clássica. A mulher vê a sua dança e diz-lhe que ela tem muito talento e que ela vai encontrar a força para realizar o seu sonho em si e não em outro lugar. Ela disse-lhe para nunca deixar os outros imporem as suas visões nela. E acima de tudo, nunca abandonar a seu grande sonho. A menina nunca o abandona, e no fim do filme ela ganha um lugar nunca escola de dança de elite. Eu adorei tudo neste filme, principalmente a música e a canção "What a Feeling". Tinha-o aprendido com o coração. O Eddy tinha-me prometido que um dia eu iria cantar essa canção em turnê. Mas acima de tudo, eu adorei a história à volta de Flashdance. Fiquei com o conselho da senhora velha no coração.. Eu disse a mim mesma que eu não precisava mais de ir à escola para ter sucesso na vida. Eu estava convencida que o meu sonho não iria acontecer pela escola. Felizmente, eu não tive de insistir muito antes da minha mãe me deixar sair da escola, especialmente se eu tivesse uma nova canção do Eddy ou se eu tivesse um espectáculo nessa noite... ou até no dia a seguir.

A minha mãe nunca o disse, mas eu estou convencida que ela acreditou que eu pudesse aprender tudo tão bem em casa como na escola. Ela tinha nascido num povoado na parte mais remota da península de Gaspe, e tinha aprendido a ler, a escrever e a contar com a sua mãe e as suas irmãs mais velhas, tal como com os seus professores. Ela não o iria dizer realmente em voz alta, mas eu tenho a certeza que acreditou que no que toca a educação, os nossos melhores professores somos nós próprios e todos os que nos são próximos. Eu até poderia dizer que ela tinha mais respeito pelas pessoas autodidactas e que venciam pelo seu próprio esforço do que por pessoas com muitos diplomas.

Rapazes e raparigas na escola, e alguns professores, diziam-me de tempos a tempos que eles me tinham visto na tv ou nos jornais ou que eles tinham ouvido uma das minhas canções no rádio. Alguns deles até me pediram um autografo. Toda a gente era super formidável comigo. Eu adorava isso. Mas eu não me sentia realmente em casa. E eu nunca tentei fazer amigos porque eu sabia que eu estaria ali por pouco tempo.

O mundo mudou um pouco desde que eu era uma jovem. Excepto em muito raras excepções, eu não acredito que tu te possas sentir bem contigo sem uma educação. Eu estou também convencida que existe um grande prazer em aprender e em saber muitas coisas - como o mundo trabalha, história, geografia, história da arte, tudo isso. E nestes dias, eu adoro aprender sobre coisas novas. Mas quando eu era jovem, eu tinha outro peixe para pescar.

Nos estúdios de Saint-Charles, eu tinha acabado de gravar a canção final do meu novo álbum que iria ser lançado no Outono. O René falou-me sobre organizar uma grande turnê promocional por toda a província do Québec. Mas as coisas saíram muito diferentes, até mais diferente do que o René tinha imaginado nos seus piores sonhos. [101] De facto, durante os meses seguintes, dois importantes eventos - um no japão, o outro em França - iriam mudar a minha vida.

 

Uma noite, talvez um mês depois da escola ter começado, à hora de jantar, Eddy Marnay telefonou de Paris. Ele conto-nos que que "Tellement j'ai d'amour pour toi" tinha sido escolhida para representar a França na maior competição internacional do Japão no fim de Outubro. Eu acho que eu parecia muito estúpida ao telefone. Nesses dias, quando algo muito grande e excitante acontecia na minha vida, eu literalmente congelava. Todo o mundo à minha volta podia estar pulando mas eu estava fria e calma, mesmo estando no centro do furacão.

"Estás feliz, Celine ?" perguntou a mamã.

"Claro que estou"

"Tu não pareces estar"

Eu não penso que sei expressar a minha alegria. Ou tenho medo que se eu me deixar ir, eu não serei capaz de me controlar e explodirei. Eddy não poderia entender isto porque ele próprio estava contagiado pela alegria. Ele tinha apostado muito para colocar esta canção no festival em Tokyo. Entretanto eu estava fria como o gelo no outro fim da linha. Até que a Mamã percebeu que algo importante tinha acontecido. Ela disse-me para a deixar falar com o Eddy e perguntou-lhe milhares de perguntas. Ela felicitou-o. Disse-lhe claro que eu estaria lá, e que ela iria comigo. Depois a mamã acrescentou que eu lhe agradecia e que eu estava muito feliz, mesmo se eu não soubesse mostrar a minha alegria. Ela estava pronta para ligar aos meus irmãos e irmãs a contar as notícias quando o telefone tocou outra vez. Era o René. Ele tinha todos os detalhes, as datas exactas, o número de canções que tinham sido submetidas (mais de 1000, se bem me lembro), a lista dos países participantes, os nomes dos vencedores dos anos anteriores.

Ele pediu para falar comigo. Primeiro para me dizer que a Yamaha World Festival of Popular Song era o mais importante evento deste tipo no mundo. Que ele tinha ido lá à alguns anos atrás com René Simard, que tinha a minha idade, e que tinha ganho o grande prémio. Depois disso ele tinha-se tornado numa grane estrela no Québec. Até a revista Time tinha falado sobre ele.

"Frank Sinatra foi a pessoa que lhe deu o prémio", René disse-me. "E eu estava lá. Estás a imaginar, eu a apertar a mão de Frank Sinatra ?"

Depois ele começou-me a falar em voz baixa, como se ele estivesse a partilhar um segredo muito importante, muito intimo, como se ele e eu estivéssemos sozinhos no mundo.

"Eu sei que tu és a melhor cantora que vai estar lá. E you sabes que tu vais ganhar o primeiro prémio - tu sabes, não sabes ?"

Eu sempre tinha gostado da sua voz, tão tranquila e suave, mas nessa noite ele abalou-me realmente. [103] Não apenas por causa do que ele estava dizendo mas por causa do seu tom, que era tão tocante que eu sentia a sua respiração a vir contra a minha orelha. Era um momento incrível de intimidade. Num tom regular, mais suave, ele contou-me "Isto vai mudar a nossa vida, Celine, tu vais ver"

A nossa vida!

 

Portanto, eu tive de parar de ir à escola.

"Nós não temos qualquer escolha" disse-me o René, como se ele estivesse a anunciar más notícias.

Ele veio com a minha mãe e comigo ver o director da escola para lhe explicar que eu não poderia ter aulas regulares porque eu tinha uma carreira que era muito exigente. Digo "explicar" porque estou certa que na cabeça de René Angelil nunca houve a questão de pedir permissão. Depois das burocracias, ele simplesmente queria que o director soubesse que eu não iria voltar. E ele queria que ele soubesse porquê e que estivesse de acordo tanto quanto possível. René pediu-lhe para preparar um programa especial de estudos para mi. Ele disse que ficaria responsável por me fazer seguir este programa e passar os exames do Departamento de Educação do Québec. Ele também falou sobre a minha mãe. Ele disse que ela estava sempre ao meu lado, que ela era incrível, uma mulher inteligente que tinha criado catorze crianças. Ela também iria supervisionar a educação e os estudos da sua filha.

Sentindo-me muito intimidada, eu saí fora e fui-me sentar numa pequena cadeira. Eu estava apenas a fingir estar intimidade. Eu ouvia o René a dizer que as experiências que eu estava a viver eram pelo menos tão ricas em valor instrutivo como os cursos que eu podia tirar na escola. Como de habitual, ele falou tranquilo e gentilmente. Ele dizia que eu tinha compromissos não só em França e fora do Canadá, mas também no Japão. "E ela tem um contrato, escritores, compositores e arranjistas, muitas pessoas a trabalhar para ela," estava ele a dizer. "Todas estas viagens que ela faz e as pessoas que ela encontra são certamente tão valiosos quanto os cursos de Geografia e história ou cursos de economia que a sua escola oferece. [105] Certamente que concorda com isso. Senhor director"

Ele disse mesmo que eu era muito inteligente, que ele me tinha visto a aprender canções com o coração - letras e música - em apenas alguns minutos.

Ouvindo-o, eu mal podia conter a minha felicidade. Pela primeira vez, o René estava a tomar alguma atenção não apenas com a cantora que ele estava a agenciar mas também com a rapariga que eu era.

Ele estava a dizer que, enquanto todos os rapazes e raparigas da minha classe passaram o verão em Charlemagne ou no seu redor a ver televisão ou a trabalhar numa quinta ou no McDonald's, eu tinha ido para Paris, onde tinha gravado um álbum com artistas consagrados, eu tinha cantado numa dúzia de palcos por todo o Québec e conhecido jornalistas, e as minhas canções eram tocadas na rádio. "Entende-me, não entende, senhor director?"

Ele mesmo lhe disse que eu ganhei mais dinheiro num mês do que o meu pai num ano inteiro.

Eu fiquei oprimida e, claro, lisonjeada pelas suas palavras. Eu estava segura de que o René sabia como convencer o principal a me deixar ir. E que eu nunca mais voltaria a colocar os pés na escola outra vez.

Entretanto, eu estava a comportar-me muito bem sentada na pequena cadeira, e tinha os olhos para baixo.

Mas quando o director tirou os meus registos de escola e estendeu o meu cartão ao René, eu pensei em fugir dali. Eu provavelmente tive as piores notas da classe, na história inteira da escola, quase tudo abaixo da média, perto de fracassar.

O que o René pensaria do meu desempenho na escola? Ele era tão inteligente e bem educado, ele falava inglês tal como francês, provavelmente ele sabia matemática, história e geografia. Um olhar no meu registo e ele concluiu que esta pequena cantora não era muito inteligente. Eu estava profundamente humilhada.

Mas ao mesmo tempo, eu estava radiante. Eu ia finalmente sair da escola. Eu nem sequer tinha amigos para perder. As únicas memórias agradáveis que eu tinha eram as vezes em que a senhora Senechal me pedia para limpar o quadro depois das aulas. Eu limpava o quadro com intensa concentração até não haver um único vestígio de giz. Ás vezes a senhora Senechal tirava proveito dessa situação para rever comigo as várias lições que nós estudávamos. Eu tentava o meu melhor para repetir aquilo mas nunca conseguia perceber como é que aquelas coisas me podiam ajudar na vida real.

O René nunca abriu a minha caderneta de notas. Hoje eu conheço-o. Eu sei que se ele está decidido sobre algo, ele vai direito para isso; e se alguém quer mudar a sua mente o melhor que tem a fazer é levantar-se de manhã e ter alguns bons argumentos. No escritório do director, ele tinha pesado todos os prós e contras. E ele tomou medidas. Ele não estava ali para saber do meu desempenho académico ou para saber a opinião do director sobre mim. Ele estava ali para me tirar da escola. E isso foi exactamente o que ele fez.

E foi assim que eu me tornei numa jovem rapariga estudante e trabalhadora.

O René nunca me obrigou a seguir o programa de estudo do departamento de educação. Mas ele estava determinado a ensinar-me do mundo dos negócios:

a metodologia dos negócios, a história dos negócios, a geografia e a economia dos negócios. Durante horas, especialmente quando nós estávamos em digressão, no seu carro, no restaurante, ele contava a história do coronel Parker e de Elvis Presley outra vez, dos Beatles e de Brian Epstein. Ele falou-me da lenda de Edith Piaf, da lenda do "Elvis francês", Johnny Halliday; de Barbra Streisand. Ele descreveu todos os bons e maus espectáculos que ele tinha visto em Las Vegas ou na Broadway.

Eu tornei-me na mais estudiosa rapariga no mundo. Ele levou-me a cada espectáculo que passava por Montreal. [107] Ele disse que isso era parte do meu trabalho, do meu trabalho de casa. Via frequentemente Ginette Reno, Stevie Wonder, Nana Mouskouri, Manhattan Transfer, Anita Baker, Liza Minnelli; as estrelas francesas Yves Montand, Michel Sardou, e Julien Clerc; Julio Iglesias; os Stones; McCarteney; Metallica ... A minha mãe foi connosco bastantes vezes.

Nós tínhamos de partir para o Japão, pelo menos uma semana antes do festival de modo que eu pudesse descansar depois da viajem e não ser afectada pelo cansaço devido à diferença de fuso horário. Mia e Ben Kaye foram connosco.

Mia, como minha conselheira de imagem, conhecia todas as regras - de etiqueta, bom gosto, vestir, comportamento. Ela sempre sabia o que dizer, como reagir, o que usar para cada circunstância.

Ben Kaye tinha sido o agente dos Baronets. Ele era destemido, e tinha um impressionante sentido de humor. Uma das suas maiores proezas consistiu em formar um coro com todas as pessoas que estavam num restaurante particular. Ele teve-os todos a cantar, até os criados de mesa, até as pessoas que no princípio não queriam fazer isso com ele. Se eles se recusassem a cantar, ele punha-os a fazer barulhos com as suas bocas ou tocar percussão. O resultado foi tremendo. Eu tinha-o visto a trabalhar em restaurantes em Montreal. Eu sabia que ele era capaz de fazer o mesmo tipo de coisas em Tokyo.

Eddy ia vir directamente de Paris. Mas dois dias antes da sua partida, Mia informou-nos que ele tinha tido um problema nas costas. Ele tinha de ir ao médico. Nada nem ninguém nos tinha fornecido alguma tranquilidade sobre ele. No dia seguinte ele estava pior, e era praticamente incapaz de andar. Mia foi ter com ele a Paris.

Agora apenas quatro de nós iríamos partir: René, a Mãe, Ben e eu.

Dos quatro, eu penso que a minha mãe era a mais excitada. Ela sempre tinha sonhado em fazer grandes viagens, e aqui estava finalmente a sua oportunidade. Ela iria dormir em luxuosos hotéis, visitar locais exóticos; ela iria ter muitas pessoas à sua volta, guias, interpretes, choferes, empregados; ela iria ver a sua filha cantar - ou triunfar como o René dizia - perante uma audiência imensa.

"Eu não sei realmente se mereço tudo isto" disse-me ela na noite antes de nós partirmos para Tokyo.

No dia seguinte, apenas antes de entrar-mos para o avião, ela virou-se para o meu irmão Paul e estendeu o seu pacote de cigarros.

"Tu podes fumá-los, dá-los, ou deitá-los fora; Eu não os quero mais. Eu nunca mais vou fumar outra vez na minha vida".

Uma vez no avião, ela explicou-nos que com este gesto ela pretendia "merecer a viagem".

Eu nunca a vi fumar outra vez. E eu nunca a ouvi queixar-se sobre perder os seus cigarros. Durante toda a viagem, o René não parou de felicitá-la. Ele nunca tinha ousado contar-lhe que o fumo dos seus cigarros podia ser prejudicial para a minha. Mas a começar naquele dia, ele começou a controlar o meu ambiente cada vez mais estritamente. Os fumadores foram banidos, até o meu Pai, que rapidamente recebeu a ideia e acabou com o hábito de fumar os seus cigarros e os deitou fora pela varanda quando ele estava em casa.

[109] Frequentemente, muito frequentemente, eu pensei no gesto simbólico que a minha mãe fez naquele dia - e pensei sobre a ideia de que nós temos de merecer o que nos acontece. E eu quero acreditar que ela está certa. Certamente que a possibilidade favorece algumas pessoas e outras não. Então demais há o talento, presente  que o céu trás a alguns e não a outros. Portanto, devo, devo sempre merecer a voz que Deus me deu. Eu sempre fui muito disciplinada. Cumpri todas as minhas obrigações como cantora, e todos os dias eu pratiquei e fiz os meus exercícios de canto com todas as capacidades que sou capaz de fazer. Sem enganar, segui todos os regimes a que fui submetida, permanecendo em silêncio por longos períodos para descansar a minha voz. Eu nunca quebrei as regras, nem por um dia ou uma hora. Se eu o fizesse, então seria praticamente incapaz de subir a um palco, eu ficaria tão amedrontada que a minha voz tornar-se-ia rouca.

Esse tipo de interesse e dedicação inabalável vem da minha mãe. Ela sabia isso instintivamente. Ou talvez porque ela tinha sido educada como uma católica. Isso não interessa como. Hoje, para mim, é uma verdade absoluta que não vem do instinto mas da razão: o que nós não merecemos, nós não temos nenhum direito, não nos pertence.

Em Tokyo, eu penso que era demasiado nova para me preocupar com tais pensamentos. Eu fui-me impressionando com o que ia acontecendo, claro. E eu também tive momentos de susto no palco. Mas eu provavelmente não percebia realmente esta necessidade da minha mãe "merecer" o que estava a acontecer com ela, toda a alegria e felicidade. Em Tokyo, eu meramente quis eliminá-los.

O festival Yamaha durou vários dias. As finais eram sexta-feira e sábado e a grande final seria a televisão no Domingo. Isso decorreu num anfiteatro onde eu tinha cantado algumas vezes. Chamava-se Budokan. Tinha capacidade para cerca de 12 mil pessoas e estava localizado num magnifico parque perto do Palácio Imperial. Tu estás no coração da cidade, mas tudo é pacifico, mesmo a multidão que é muito bem comportada, muito diferente das multidões animadas que eu tinha presenciado no Forum em Montreal, por exemplo, quando fui ver Olivia Newton-John ou Elton John.

De forma a determinar a ordem das actuações, cada participante tinha de seleccionar um número aleatoriamente. Na sexta-feira de manhã, eu acabei por tirar o 5. O nosso intérprete contou-me que a palavra para isto em japonês é vai. O René, que sempre adorou presságios e coincidências, estava emocionado.

Eu cantei bem, sem forçar a minha voz, contudo eu actuei um pouco distraída. Pela primeira vez na minha vida, eu encontrava-me num grande e inacreditável palco em frente a uma enorme audiência. Eu estava acompanhada por uma larga orquestra de mais de 50 músicos com quem eu tinha ensaiado apenas 10 minutos. Senti-me um pouco fora do lugar e desorientada. Eu não sabia para onde olhar, e eu não me conseguia ouvir muito bem. Demorei um pouco para ganhar total controlo da minha voz.

Mas ao deixar o palco no fim da minha canção, eu ouvi o aplauso da multidão, que me pareceu mais intensivo do que para os dois rapazes que foram antes de mim. [111] Contudo, alguns dos participantes que se seguiram tiveram aplausos tão intensos quanto os que eu tive, se não maiores. Eu comecei a pensar que havia uma boa chance de eu ser eliminada antes da grande final.

No Sábado à tarde, depois da última competição, os juizes anunciaram os nomes das 10 pessoas que estariam na grande final no Domingo à tarde.

Eu fui uma delas. Desta vez, eu fiquei com o número cinco outra vez. E desta vez, outra vez, nós olhamos para isso como um bom presságio. Mas eu estava ainda muito nervosa.

Para além dos doze mil espectadores que enchiam o Budokan no Domingo à noite, haviam vários milhões a ver o evento pela televisão. Razão para me sentir fraca nos joelhos.

As ondas da angústia caíram sobre mim e eu só pensava no momento de ir para o palco e começar a minha canção. Eu imaginei a multidão que tinha de encarar como um monstro cruel capaz de me devorar. E eu tentei esquecer isso, de dizer a mim mesma que isso não era tão importante, que eu iria sobreviver muito bem sem levar o primeiro prémio para casa.

O René não tentou de todo convencer-me de que eu não tinha nenhuma razão para ter medo. Pelo contrário, ele continuava a dizer-me que este era um momento crucial e decisivo na minha vida, que o monstro que eu iria enfrentar era terrível. Ele sabia que era. Mas ele acrescentou que eu não tinha escolha, que eu tinha de ganhar.

Em vez de diminuir este monstro, como eu estava a tentar fazer, ele disse-me que eu era forte, determinada, capaz de enfrentar isto. Quando ele falou comigo, eu senti-me realmente uma grande pessoa, uma profissional real. Nessa noite eu fui para a cama convencida de que uma vez no palco eu saberia dominar a minha voz. E domesticar o monstro. Talvez mesmo saber eliminá-lo.

Na tarde seguinte, enquanto esperava a minha vez de cantar, eu permaneci de pé por isso eu não estraguei o meu vestido. Era branco e feito de algodão pesado pelo Josiane Moreau, o meu estilista nessa altura, que usou um padrão que a Mamã e eu encontrámos numa revista. Era magnifico, mas um pouco fora de estação. Nós as duas imaginámos que o Japão era um país morno, que o clima era o ano inteiro o mesmo do que em Julho no Québec.

Mesmo ao pé dos degraus que me levavam ao palco e mesmo no momento em que o anunciador disse o meu nome, eu vi algo no chão que a princípio pensei que fosse uma medalha, mas era afinal uma moeda. Eu peguei nela. Quando eu vi que o número cinco estava gravado nela, eu decidi guardá-la. Sorte para sempre. O meu vestido não tinha nenhum bolso, então eu coloquei a moeda dentro do meu sapato. Quando eu caminhei debaixo das luzes para cantar "Telement J'ai D'amour", eu senti-a a escorregar debaixo do arco do meu pé. Ela seria a minha boa sorte. Eu sabia disso. Eu viria a tê-la sempre comigo. De agora em diante o cinco seria o meu número da sorte. Eu estava segura disso. Graças à moeda eu iria ganhar o primeiro prémio.

O que eu vi nas noite anteriores e na manhã seguinte como um monstro horrível - os juizes, a multidão,  máquinas fotográficas, milhões de telespectadores - agora pareciam-me uma presença morna, amigável.

Quando os prémios foram anunciados, eu dividi o primeiro lugar com o cantor mexicano Yoshio. [113] Os músicos, que também votaram, entregaram-me um prémio de melhor orquestra. Antes de eu ensaiar com eles na sexta-feira à tarde, o René disse-me para lhes agradecer e se possível para apertar a mão ao condutor, ao pianista e também ao violinista. Eu acho que eles apreciaram muito esses gestos de cortesia.

Eu chorei muito. No palco, em frente à audiência no Budokan e em frente aos telespectadores japoneses. Depois eu achei o René também a chorar como se o seu coração se fosse quebrar. E a Mamã e o Ben.

O nosso interprete e as pessoas japonesas à nossa volta pareciam que estavam em choque. Eu penso que eles não estavam habituados a ver tal público a expressar assim a emoção. Nós os quatro ficamos abraçados uns aos outros e a chorar durante algum tempo.

Depois, de repente o René pegou na minha mão e levou-me para um auditório, em frente ao palco. Um telefone estava colocado entre dois monitores. Ele deu-me o auscultador.

"É para ti"

Era o Eddy e a Mia em Paris, onde ele estava a curar-se. Eles viram-me a cantar "Tellement J'ai D'amour Pour Toi" e depois ouviram o presidente do júri anunciar o nome dos vencedores. O René e o Ben tiveram este telefone instalado pelos organizadores do festival. Desta vez, eu sabia como expressar a minha alegria. E eu para celebrar disse ao Eddy o quanto eu o amava e o quanto eu lhe devia. À Mia também. Claro que eu continuei a chorar e a chorar. Desta vez eu sabia que merecia a minha felicidade.

 

A mamã e eu tínhamos prometido ao René que se nós ganhássemos o primeiro prémio da Yamaha, nós comeríamos peixe cru.

Isso aconteceu a bordo avião. Aos passageiros tinham sido dados a escolher entre um prato ocidental - carne, massas ou frango - e alguns pratos japoneses. Sem hesitação todos nós escolhemos frango. Mas como era de esperar, porque isso foi sempre o que ele fez, o René tentou-nos convencer a tentarmos um prato japonês. Ele estava convencido de que: "Basta provares e tu vai adorar isso" disse ele.

"Não a bordo de uma avião", respondeu a Mamã.

A Mamã adorava cozinhar para as pessoas. E o René gostava realmente das suas tortas, massas, filés cortados, e pasteis de carne, mas nós saibamos que eles nunca estavam suficientemente temperados para o seu gosto. Ele sempre quis escabeches, temperos. E não havia variedade suficiente, nenhuma.

O René sempre quis que toda a gente à sua volta gostasse do que ele gostava: jogar, comida exótica, o Elvis, os Beatles, coca-cola. Ele estava sempre a tentar converter os seus amigos. Em cada oportunidade, quando estávamos em Montreal ou Paris, ele levava-nos a restaurantes Libaneses ou Marroquinos. Ele queria que nós tentássemos tudo - falafel, babaganoush, hummus, shwarma.

Então enquanto ele comia o seu sushi e sashimi, ele extraiu essa promessa de nós. Eu tinha de comer peixe cru. Eu teria a ocasião para o fazer dias mais tarde. Depois de ter ganho o festival, eu fui convidada a cantar na grande gala para os oficiais e ministros do governo japonês. [115] No banquete que se seguiu, eu estava sentada na mesa de honra, tal como estavam a minha mãe e o René, mas eu não estava ao pé deles. Logo que pôde, o René fez-me um sinal e levantou um pedaço de peixe cru com os seus pauzinhos como se dissesse "É agora ou nunca". Tive de manter a minha promessa. Eu já tinha conseguido engolir um sopa fortemente temperada quando o pior chegou: fatias de peixe cru com bolas pequenas de arroz - sushi. Havia também uma tigela pequena de molho preto para colocar sobre o sushi. Tomei um bocado. E eu pensei que a minha cabeça ia explodir. Era como se tivesse recebido um forte choque eléctrico. Pelas minhas lágrimas, eu via todas as cabeças viradas para mim, até os convidados na outra mesa.

A minha mãe e o René tinham-se levantado para me ajudar. Trouxeram-me tolhas para limpar as minhas lágrimas e nariz. Quando o meu interprete explicou o que tinha acontecido, toda a gente começou a rir-se. Mas o René não se ria. Ele permaneceu ao pé de mim, com os seus joelhos ao lado da minha cadeira, até eu puder falar.

"Tens a certeza de que queres cantar ?" perguntou-me ele.

"Sim"

"Tenta, vamos ver"

Para tranquiliza-lo e fazê-lo rir, eu cantei para ele num tom que passava pela minha cabeça. Era uma canção de amor, numa voz aveluda. Mesmo ao pé do seu ouvido.

"Estás sozinho esta noite ?"

Ele não chorou. Ele ficou muito sério. Ele segurou-me muito apertada nos seus braços e depois voltou para o seu lugar sem me olhar. Recusei o filé e o peixe grelhado que me foi oferecido. Depois do que eu fiz eu só me ria, estava pronta para engolir fogo. Consegui agarrar um pedaço de peixe muito vermelho, de um canto que eu ainda não tinha tocado, molhei-o no molho e levei-o à minha boca. Textura estranha, lisa, oleosa. E provar não é mau de todo. As pessoas ao meu lado mantiveram-se silenciosas com os seus olhos nos seus pratos. Eles perceberam que eu era uma novata e, eu penso que eles estavam a ver se eu vomitava outra vez para o prato. "Mmmm" disse eu, sinalizando de uma maneira exagerada que eu pensava que aquilo era muito bom. Todos eles sorriram.

Essa noite foi magnifica. O meu pequeno problema com o sushi tinha criado uma atmosfera magnifica e pôs toda a gente com bom humor. As pessoas sentadas perto de mim começaram a falar durante muito tempo sobre as maravilhas da comida japonesa. Eles mostraram-me como segurar os pauzinhos. Depois perguntaram-me milhares de coisas sobre a minha família, a neve e as florestas do Canadá, os esquimós, os lobos e ursos, as montanhas canadianas. Desde esse tempo que amo o Japão. Eu sinto-me sempre tranquila, em casa, mesmo se existem barreiras linguisticas e de etiqueta, regras e protocolos que eu ás vezes não percebo. Eu adoro a ordem que reina neste mundo, o humor especial das pessoas, a sua descrição.

Na altura, eu mantinha um diário que tinha trazido comigo. [117] Foi uma ideia da minha mãe para me manter ocupada. Nele eu tinha listadas as datas de nascimento de todos os membros da minha família e os meus amigos. Durante dias, longe da minha casa como eu nunca tinha estado na minha vida, eu questionei a minha mãe sobre a sua infância, sobre como ela conheceu o meu pai, sobre o nascimento dos seus primeiros filhos, sobre o meu nascimento.

Então, eu ia escrevendo no meu diário o que acontecia em cada dia, descrevendo este país que era ao mesmo tempo tão estranho e tão familiar. Mas eu não prosperei em encontrar palavras para descrever o que eu estava sentindo, ou até par descrever o que ia vendo. As frases estavam todas sabidas na minha cabeça. Estava tudo a acontecer muito depressa. Mais rápido, muito longe, e numa altitude mais alta do que aquela que eu filmava na minha cabeça quando estava na escola. Agora eu não tinha mais o tempo nem a inclinação para fazer os meus filmes de casa. O que eu vivia era tão excitante como o que eu tinha sonhado durante muito tempo.

 

Voltar ao Québec foi inesquecível. No aeroporto de Montreal, uma multidão estava à minha espera com flores e ursos de peluche. Câmaras de TV estavam apontadas para mim e microfones foram impelidos na minha direcção. O meu irmão Paul tinha trazido os jornais. Todos eles estavam ali por causa do grande prémio que eu tinha ganho em Tokyo.

"Na TV também", disse-me ele. "Eles estão a falar sobre ti em todo o lado". "Os repórteres tinham ido à nossa casa em Pointe-aux-Trembles, para onde nós nos tínhamos acabado de mudar, e entrevistaram o meu pai. Eles tinham pedido fotos minhas. Eles queriam saber que idade eu tinha, se tinha um namorado, de que cor eram os meus olhos. O primeiro ministro do Québec, René Levesque, pediu para me conhecer e felicitou-me em nome de todos os quebequenses. Eu também fui convidada para integrar um grupo de uma dezena de artistas que iriam dar um mega-show no "Montreal Forum". Quando subi ao palco, antes de começar a cantar, as dez mil pessoas que enchiam o auditório levantaram-se e aplaudiram-me. Nesse dia fiz uma descoberta estranha. Muitas das pessoas que me aplaudiram nunca me tinham visto a cantar em palco. Muitas delas provavelmente não conheciam o meu nome dez dias antes. Eles deram-me os seus aplausos e ovações não porque eu a cantar os tivesse impressionado, mas porque eu tinha alcançado algo no outro lado do mundo.

Isso fez-me sentir, de certa maneira, como se lhes devesse algo. Como se tivesse sido paga em adiantado. Os seus aplausos e gritos estimularam-me. E por essa razão, eu cantei com o meu coração, com um prazer incrível. No dia seguinte a minha foto apareceu em todos os jornais de Montreal.

O René estava jubilante. Não podia ser a melhor altura para lançar o meu próximo álbum, Tellement j'ai d'amour pour toi.

Com a Mia, ele preparou uma enorme campanha de publicidade. Eles queriam colocar-me em toda a imprensa, radio e televisão por isso falaram mais sobre mim. Mas eu nunca senti que tivesse alguma coisa para lhes dizer. A única coisa que eu sabia como se fazer era cantar.

[119] O que mais intrigou os repórteres foi o porquê do mais brilhante agente do país estar interessado em mim e em mim apenas. Por esta altura o René tinha terminado com todas as relações profissionais com Ginette Reno e estava apenas ocupado com a minha carreira. Ele sabia como me cercar com os melhores escritores - Eddy Marnay, de certeza, mas também Luc Plamondon, que tinha escrito uma das canções para o novo álbum. Também tinhamos os melhores compositores: Francois Cousineau no Québec e, em França, Hubert Giraud, que tinha escrito a música para um clássico, o muito bonito "Mamy Blue" (que eu costumava cantar quando tinha 5 anos de idade) assim como a canção para a minha mãe que deu nome a este álbum: "Tellement J'ai D'amour Pour Toi".

Nas férias, o René, a sua esposa, e as suas crianças iam para Sul. E pela primeira vezes em meses, eu não tinha nada para fazer durante mais de duas semana. Nenhuns compromissos, nenhumas promos, nenhuma aparição televisiva. Depois de três dias, eu estava numa completa desorientação sobre o que fazer comigo. Quando o René estava perto de mim, ele criava sempre algo à nossa volta. Eu tinha sempre muitas coisas para fazer, concertos para ver ou dar, entrevistas, programas de tv, novas canções. Eu também estava a aprender coisas novas, a descobri-las, tendo todos os tipos de experiências animadoras. Quando ele estava longe, tudo à minha volta se tornava rotineiro e igual. Eu nunca saía, excepto quando ia visitar os meus irmãos e irmãs com o Papa e a Mamã; as únicas vezes em que estávamos juntos cantávamos todos. Era como nos velhos tempos, mas agora eu tinha uma voz real, um lugar verdadeiro no coro da minha família.

Os meus irmãos e as minhas irmãs estavam todos felizes com o que tinha acontecido comigo. Contudo, alguns deles, nomeadamente a Claudette e o Michel, a minha avó e o meu avô, estavam conscientes de que quando a minha carreira começasse a subir, isso provavelmente ia acabar com as suas chances de terem as suas próprias carreiras no mundo dos negócios. Era como se todos os sonhos da minha família me tivessem sido dados, a mim que não tinha mais do que os outros, excepto a sorte e um atento, inteligente e atrevido gerente.

Durante algum tempo, eu tinha visto a minha carreira mudar não apenas a minha vida mas também a dos outros que estavam à minha volta, especialmente a da minha mãe. Mas também a vida do meu pai, que por causa de mim, muitas vezes ficava sozinho em casa. A minha mãe tinha deixado o seu emprego e acompanhava-me sempre para todo o lado, mesmo se fosse uma aparição televisiva rápida. Ela até vinha comigo quando eu ia à compras com a Mia ou a Anne-Renee. Eu queria que ela estivesse ali. Eu precisava dela para estar ali. Mais tarde perguntei-me se o meu pai me tinha dado vida para lhe roubar a sua esposa.

Mas durante essas férias, as últimas em que estive na nossa casa de Charlemagne, o meu pai sempre foi muito gentil comigo. Ele via que eu estava triste, mas ela não tentava perceber porquê, como a minha mãe fazia. Ele simplesmente tentava colocar-me a rir, tentava colocar-me outros pensamentos na minha cabeça. Uma noite quando nós estávamos sozinhos em casa, ele tirou o seu acordeão e tocou para mim durante várias horas.

[121] Ele deve ter dito que eu tinha todas as razões do mundo para estar feliz. Eu estava a tornar-me em tudo no que tinha sonhado.

Todos os dias, eu ouvia "D'amour ou D'amitie" no rádio e também as canções do álbum de Natal que eu tinha gravado um ano antes. Mas isso parecia que tinha sido há milhares de anos atrás, parecia que eu tinha cantado aquelas canções noutra vida.

Eu expliquei a minha tristeza a mim própria como resultado de não ter nada melhor para fazer. Só mais tarde eu viria a perceber que isso tinha sido algo mais.

 

Mesmo antes do René retornar ao Québec, ele desencadeou um novo furacão que me levaria ainda mais longe.

Uma noite ele ligou-me para me dizer que eu iria cantar nos Midem, uma feira internacional que a industria discográfica organizava cada ano em Janeiro ou Fevereiro em Cannes, França. "Tu vais cantar para profissionais, profissionais dos negócios. De todos os cantos do globo". Este era o maior mercado do mundo para os negócios da música. E os melhores produtores, escritores, compositores e jornalistas do globo iriam estar ali para me ouvir.

A bordo do avião, ele disse-nos que as minhas canções nunca se tinham vendido bem em França. Eles não me tocavam no rádio. Nem mesmo "D'amour ou D'amitié" que Pathe-Marcone tinha lançado como single e que o Eddy e o René tinham pensado que era feito à medida do público francês. "O Eddy não percebia" disse-nos ele. "Ele vê isso como um fracasso pessoal. Ele estava humilhado. Mas eu sabia qual era o problema. "É que eles nunca te ouviram por ali". Quando eles te ouvirem uma vez, apenas uma vez, as coisas mudarão. Tu vais ver".

Uma vez mais ele tinha razão.

Em Cannes, todos os artistas tinham de cantar usando a música em orquestra. Para muitos deles, isso era um inferno. Não só tinham de cantar perfeitamente sincronizados com a música como também tinham de simular esforço e emoção. Por outras palavras, eles tinham de ser actores.

Mas eu tinha feito isso milhares de vezes em frente ao espelho do meu quarto. Além do mais, eu sempre adorei cantar para pessoas que eram dos negócios. Por isso eu estava perfeitamente tranquila. Ao mesmo tempo, eu sabia que tinha de dar o meu melhor.

Por todo o Palácio dos Congressos, aonde a gala teve lugar, eu podia ver grandes posters e banners com a minha cara e o meu nome em letras gigantes. Todos os discotecários e produtores de cada estação de rádio em França estavam ali.

Eu percebi que, desta vez, se a minha canção não fizesse sucesso em França, eu nunca mais o conseguiria. Eu estaria fora de jogo por completo. Eu estava excitada por tão alta fasquia, por esta última e única oportunidade e não tinha escolha a não ser cativar as pessoas. Antes de acabar a minha canção eu sabia que o tinha conseguido. Eu podia sentir a multidão a ficar atenta, cativada, segurando a respiração. [123] A sala estava brilhantemente iluminada. Eu podia ver os rostos virados para mim, todo o mundo imóvel até a minha canção terminar, e desta maneira eles levantaram-se para me aplaudir.

Naquela noite, nós conhecemos os executivos das grandes estações de rádio de França, que nos asseguraram que iam adicionar a canção às suas listas. Um homem muito gentil e uma mulher vieram até ao nosso hotel para nos presentearem com um convite para o programa de TV de Michel Drucker, o "Champs Élysées", nome da mais famosa avenida de Paris.

"O programa do Drucker é o maior programa de variedades da Europa" fez-me saber o René.

Foi-me dito para preparar duas canções. Talvez houvesse ainda uma pequena entrevista com o Drucker. Mas o que excitava o René ainda mais era o facto de eu ter sido convidada para o próximo programa, que ia para o ar dentro de poucos dias. "Isso significa que eles colocaram alguem de fora do programa por causa de ti" disse ele.

"Drucker's" é realmente importante, tu sabes. Ele é o francês "Ed Sullivan".

Ele teve de me explicar quem era o Ed Sullivan. Nós estávamos em Paris, na sala de estar de um grande hotel no "Place de la Concorde", tão fascinados a ouvir a história da vida de Sullivan, cujo programa de Domingo à noite - "o maior programa de TV dos anos cinquenta e sessenta" - tinha recebido como convidados Elvis, os Beatles, os Stones. Depois levantando-se, ele imitou Sullivan, com as suas costas arqueadas, esfregando as mãos e a dizer com a sua voz nasal "Senhoras e Senhores ... Celine Diooooon".

Durante a noite, eu encontrei-me a mim própria cercada por publicitários, produtores, todos os tipos de conselheiros. Na minha análise era o vestido de algodão que me tinha trazido sorte em Tóquio, a calça preta e a blusa branca que eu tinha usado em Cannes, a capa de peles que Josiane Moreau tinha desenhado para mim, o vestido vermelho que a Mia tinha comprado para mim. E as raparigas ainda estavam a discutir a minha imagem. No dia anterior às gravações, eles estiveram em todas as lojas outra vez e fizeram-me experimentar malhas, vestidos, jeans. Uma cabeleireira arranjou o meu cabelo durante horas enquanto um agente de imprensa me falava de Drucker.

"Se ele for ter contigo quando tu acabarem de cantar e se ele pegar na tua mão, ou melhor ainda, se ele puser os seus prazos à volta do teu pescoço e dizer coisas bonitas, se ele falar contigo apenas por trinta segundos, tu saberás se te tornaste numa grande estrela na Europa".

No dia das gravações, nós todos, como de usual, juntamo-nos no restaurante de Guy e Dodo Morali. Apesar de todos estarem insuportavelmente nervosos, René e eu só saímos dali mais tarde. Ele estava a guiar o pequeno carro de Guy, e o Guy ia atrás. Nessa altura o René gostava de guiar. Especialmente em Paris. Para ele isso era um jogo excitante. Com o Guy atrás ele colocou desafios a si próprio como guiar ao redor da "Place de L'Etoile" na direcção oposta ao do fluxo de trânsito. Mas hoje ele diz que estava demasiado nervoso. Na rotunda dos "Champs-Elysees", o René bateu num carro. Imediatamente virou-se para o Guy. [125] E depois os dois começaram a fugir entre os carros. Nós ainda podíamos ouvir o outro condutor gritando quando entrámos num táxi que nos levaria poucos minutos mais tarde ao estúdio do "Champs-Elysees", onde a Mamã, o Eddy, a Mia, a Anne-Renee, e o pessoal inteiro de Pathe-Marconi estavam à espera de nós.

Havia uma multidão incrível no estúdio e nos vestuários. Cada artista que ia estar no programa tinha o seu próprio pessoal e amigos. Nicole Croisille, Herbert Leonard, Francis Lemarque, e outros cantores franceses bem conhecidos estavam ali. Eu achei isso tranquilizante, eu estava feliz por ensaiar em frente a todas essas pessoas. Eu sempre senti que os profissionais do mundo dos negócios eram bondosos comigo, mesmo aqueles que actuavam num género completamente diferente, como um grupo inglês de punk que era também convidado do programa.

Primeiro cantei "D'amour ou d'amitie". Drucker, que estava a seguir os ensaios por um monitor, saiu do seu escritório e veio ter comigo felicitando-me muito quentemente. Ele disse-me que me iria perguntar algumas questões no fim da transmissão. Então, tinha eu ganho o prémio ? Iria eu ter os meus "30 segundos" ?

O René não me queria a declarar vitória tão cedo. Eu pude ver que ele não ficou agradado com o facto de Michel Drucker ter vindo ter comigo a felicitar-me tão cedo. "Isso não significa que tu já tenhas passado no teste", disse ele. "Tu tens de o impressionar ainda mais. Tu tens de mexer com ele". Mais e mais, era o que o René estava a pedir. Eu ainda era muito nova, mas eu sabia que quando eu fosse maior, mais longe iria.

Quando a transmissão começou e o Drucker me introduziu, o René ficou muito perto de mim, a sua cabeça estava perto da minha. Isso tinha-se tornado um costume, um pequeno ritual que eu não queria prescindir. Cada vez que eu fazia um programa de tv, ele dizia na minha orelha que eu era a melhor - com aquela voz que eu adorava muito.

"Tu és a melhor. Tu aqui estás em casa. Toda a gente de adora". E depois ele me empurrou suavemente em direcção às luzes do placo. "D'amour ou d'amitie" é a canção que está plena de nuanças. Eu tinha trabalhado nela muito com o Eddy. Durante dias, eu cantei aquela canção vezes e vezes na minha cabeça. Era feita por medida para mim, para uma rapariga que começava a questionar sobre o amor.

Penso que impressionei o Drucker. Ele veio na minha direcção batendo palmas, abraçou-me, agarrou a minha mão e falou comigo durante um bom bocado. Nessa noite , nós celebramos no restaurante de Guy e Dodo. O René estava contaminado com alegria. "Sabes como é que ele disse quando te introduziu" perguntou-me ele. Eu não tinha a menor ideia. Nos bastidores, é outro mundo, onde tu te concentras e não ouves realmente o que se está a passar no palco. [127]

"Eu suponho que ele tenha dito: "Senhoras e Senhores, Celine Dion" ou qualquer coisa desse tipo.

Não de todo. Quando ele te introduziu, ele disse: "Senhoras e Senhores, vós nunca ireis esquecer a voz que vão ouvir. Portanto lembrem-se deste nome: Celine Dion".

O René ficou maravilhado com estas poucas palavras e repetiu-as uma centena de vezes naquela noite. Anos mais tarde, quando nós lançamos o meu primeiro álbum em inglês - Unison - ele colocou isso no slogan que o departamento de publicidade da CBS usava.

Em menos de uma semana, Midem e Drucker tinham-me tornado numa estrela em todas as partes de língua francesa na Europa. "D'amour ou D'amitie" tocava em todo o lado e esteve no top de todos os charts, e ficou lá até ao verão. Eu dei muitas entrevistas. Em Paris, tal como em Montreal, as pessoas reconheciam-me cada vez mais nas ruas. Nesse ano eu tive de atravessar o atlântico cerca de 20 vezes para fazer trabalhos promocionais ou gravar programas de tv ou gravar novas canções. Em França e no Québec, os meus lançamentos tornaram-se ouro, platina ou diamante. Eu tinha apenas 15 anos de idade. Eu estava também acostumada a hotéis de luxo, boutiques caras, aviões, e chofere de carros. Eu tinha o tipo de vida com que tinha sonhado, mas mesmo assim, as coisas eram realmente agonizantes. Ás vezes eu esquecia-me da nossa casa em Charlemagne, e especialmente do papá, que eu via tão pouco, e os meus irmãos e irmãs. Perdi todos esses momentos doces que nós todos tínhamos partilhado no passado quando fazíamos parte de uma família muito unificada.

Eu sabia que isso nunca mais seria o mesmo connosco, que de agora em diante eu não seria capaz de fazer mais do que o que por já tinha passado. Eu também vivi uma vida diferente, não vivia no mesmo mundo. Tinha arrastado a mamã, que estava sempre comigo, e que eu sempre precisei muito quando estava afastada dela. O Eddy fez-me falar sobre todas estas coisas durante horas. Ele levou-me muito a andar pelas ruas de Paris. Ele era o melhor caminhador que eu já tinha visto na minha vida. Nós íamos para os jardins do Luxemburgo ou para os bancos do Sena, ou para uma zona de moda em París chamada Neuilly. E eu tinha de lhe contar das minhas disposições, sonhos, temores. Isto ajudou-me realmente.

 

Ás vezes quando ele tinha de trabalhar algumas linhas da canção, o Eddy ficava tão excitado que me liga às oito da manhã para me as fazer ouvir. Especialmente naqueles dias que eu não existia às oito da manhã.

Eu odiei falar com ele, especialmente ao telefone. Mas ele era tão elegante que me conseguia acordar e fazer sair da minha cama. Quando ele ia até à minha casa, uma hora depois, eu estava acordada, tudo a funcionar bem, e a sua canção corria pela minha cabeça, com ou sem música.

Um dia ele ligou-me do aeroporto de Mirabel, e disse-me: "Escuta o que eu criei no avião". [129] Ao telefone, ele começou a cantar as primeiras notas daquela que viria a ser "Les Chemins de Ma Maison". Ele estava muito excitado com isso. "Achei o fio à meada". "O teu próximo álbum está na minha cabeça. Este será o último vestígio da tua infância, da infância que tu estás a viver. Depois disto, tu vais cantar sobre a vida de mulher.

Nas canções do Eddy, eu via-me a mim própria como num espalho. Ele fazia-me conscienciosa das mudanças por que ia passar. Falando com ele sobre o que eu estava a sentir e cantando as canções que ele escrevia para mim, eu fui capaz de passar tranquilamente pelas etapas de desaparecimento da minha infância e da vida cómoda que eu tinha vivido no seio da minha família.  Eu estava-me a ver a crescer, a tornar-me pouco a pouco numa mulher. Uma mulher estranha contudo. Eu era uma artista profissional que podia confrontar largas audiências, suportar grandes pressões, mas eu ainda me precisava de esconder atrás das saias da minha mãe.

Eu não tinha tido nenhum romance de luar ou roubado beijos nos corredores. Nem tinha amigas. Nem tempo. Mais do que nunca eu estava rodeada por adultos. E eu estava a viver como eles, trabalhando como todos eles na minha carreira, exclusivamente, sete dias por semana, cinquenta e duas semanas por ano. Na altura eu não era capaz de fazer mais nada. Eu estava a colocar todo o meu tempo, a minha energia, na minha profissão. Até quando comia ou dormia eu tinha apenas um objectivo: ser suficientemente forte e saudável para cantar melhor. Tinha aprendido muita disciplina. Estava eu feliz neste lugar infernal ? Eu penso que estava. Eu estava a fazer o que sempre tinha sonhado: eu estava a cantar. O René cuidou de tudo o resto. Ele planeou tudo, negociou, organizou. Ele achou-me as palavras e a música, os músicos e os palcos, todos os tipos de palcos. Ele estava obcecado. Ele queria que toda a gente ouvisse as minhas canções e me visse.

Nós estávamos sempre a partir. Uma noite eu ia cantar com a Orquestra Sinfónica de Montreal e depois, pela hora do jantar eu estaria a fazer uma transmissão televisiva com músicos do país. Daria um concerto numa jangada num lago em Laurentides no centro do Québec. Há noite tinha de gravar uma canção de Natal com um coro de quarenta pessoas, todas da minha família. Depois a Mamã, o René, e eu iríamos para uma distante região do Québec aonde eu tinha actuado num festival.

Pediam-me também com alguma frequência para actuar nos programas de variedades na Tele-Metropole, o canal mais popular no Québec. Nós aceitamos sempre os convites. Mas o René queria a audiência da Radio-Canada também a ver-me e a ouvir-me.

Então ele rondou os produtores e programadores do canal público de televisão até que concordaram em produzir uma emissão especial, um tipo de retracto de mim, que iria ser emitida durante o prime-time.

Durante dias, eles seguiram-me para todo o lado, até na cozinha da nossa casa em Pointe-aux-Trembles e no meu quarto. Eles até incluíram reportagens em Paris.

Entrevistas com o Papa e a Mamã, com o Eddy, com os músicos e técnicos, com o René, que obviamente, disse em frente às câmaras da Radio-Canada que um dia eu iria ser a melhor cantora do mundo.

[131] "Isto saiu-me para fora" disse ele como forma de pedir desculpas. "Mas eu digo isto porque acredito realmente nisso. Um dia, tu vais ver".

Ao mesmo tempo ele estava a trabalhar para expandir a minha audiência tanto quanto possível. Quando ele descobriu, por exemplo, que o Departamento de Negócios Culturais do Québec estava a preparar um grande espectáculo para a inauguração do Teatro Felix-Leclerc, ele meteu na sua cabeça que eu tinha de estar lá. "Tu vais cantar uma canção do Feliz" disse ele. Isso vai surpreende-los. Tu vais ver".

No entanto, nessa altura, o negócio do mundo do espectáculo estava dividido em duas importantes classes que eram frequentemente o oposto uma da outra. Haviam os intelectuais, e haviam os "outros".

Obviamente, eu fazia parte do segundo grupo. E os "outros" não tinham sido convidados a participar no espectáculo de inauguração do Teatro Felix-Leclerc. Não obstante, o René arranjou maneira de eu estar lá.

"Tu vais para lhes mostrares que és capaz de cantar não apenas canções que foram feitas para ti mas também clássicos." disse-me ele.

Ele queria-me a cantar "Bozo" com um ritmo muito lento, e praticamente sem gestos. E nós treinamos isso durante vários dias.

"Pensa nele" disse-me ele. "Pensa no Bozo. Ele é um rapaz pobre que ama uma menina que não existe".

Mas actualmente eu apenas penso em mim. Eu queria amar e ser amada. Mas eu estava sozinha, uma pobre doida sem amor, como o Bozo. Quando eu acabei a minha canção na noite da inauguração uma lágrima caiu-me pela cara.

No dia seguinte os críticos estavam cheios de elogios e francamente espantados, todos eles diziam que eu tinha cantado com um grande sentido com alma. Claro que foi assim: eu estava a cantar a minha vida, a minha dor. Bozo era eu.

Alguns dias mais tarde, na cerimónia dos prémios Adisq, eu ganhei 4 Felix Awards, incluindo melhor nova estrela do ano e melhor actuação feminina do ano. Os felixes estão para o Québec como os Victoires de la Musique estão para a França e os grammys para os Estados Unidos. A Adisq é a "Association of Recording and Performing Industries no Québec".

Eu chorei bastante quando fui receber o meu primeiro prémio, e ainda mais quando fui receber o segundo e o terceiro. Que emoção!

Mas quando eu ouvi o meu nome a quarta vez, a sala inteira teve um ataque de risos. E eu comecei a soluçar no corredor que dava acesso ao palco.

No dia seguinte, o principal jornal do Québec mostrou o meu rosto inchado com lágrimas e eu a soluçar.

Muitas raparigas ficaram comovidas quando foram receber o prémio, mas eu acho que eu registei o recorde absoluto do choro.

Durante dois ou três anos, o meu chorar era o encanto dos críticos e comentadores do Québec. Várias vezes eu fui alvo de imitações hilariantes nas revistas de televisão de fim de ano.

Tive de aprender a controlar as minhas emoções. Em vez de desperdiçar energias em chorar, eu tinha de coloca-la na minha voz, nas minhas canções. [133] Se eu chorasse muito, não iria ser capaz de cantar, eu iria perder o controlo da minha voz.

Mas nada me movia tanto como uma ovação. Mesmo hoje, quando eu vejo uma multidão em pé a aplaudir um artista ou um atleta que deu uma boa actuação, eu automaticamente começo a chorar. Em algumas ocasiões, eu não me consegui controlar e esqueci-me de cantar a canção seguinte.

É difícil cantar enquanto se chora. Eu tive um trabalho longo e difícil para canalizar as minhas emoções e conter as minhas lágrimas. Deve-se conseguir sorrir para aceitar agradecidamente os aplausos e as ovações e prevenir a garganta de tremer, e fechar os olhos quando uma lágrima começa a surgir.

 

Desde o início, quando o René começou a tomar conta de mim, ele criou o hábito de se sentar na audiência para ver os meus espectáculos. Ele sempre o tinha feito. Ele nunca permaneceu em pé, como os outros gerentes. Depois vinha até ao meu quarto de vestir ou até ao meu quarto de hotel e dizia à minha mãe e a mim o que tinha acontecido, canção após canção, durante o espectáculo. Para ser honesta com Deus, ele fazia as coisas como se eu não estivesse estado lá. Ele dava-me uma descrição completa do que eu tinha feito e o que eu tinha dito.

Mas eu gostava de ouvir ele a contar. E depois, eu já não prescindia disso. Normalmente esses comentários demoravam menos de meia hora. Depois o René levantava-se; ele beijava a minha mãe e eu nas bochechas e deixava-nos a sós, mas antes perguntava à minha mãe, se eu estava a comer bem, se a cama era confortável, e se toda a gente do hotel e do restaurante tinham sido simpáticos connosco, etc.

Iria para a cama com as minhas bochechas suavemente tocadas e com um pouco da sua água e colónia na minha pele. Ele ia sair para estar com os seus amigos. Se estávamos em Chicoutimi ou em Val d'Or no Québec, ou em Ottawa, ele tinha sempre algumas pessoas para visitar. Ele ia jogar cartas ou ver um espectáculo num clube de noite. Ele vivia num mundo misterioso que eu sonhava em entrar, um mundo que parecia muito fascinante e excitante. Mas eu tinha apenas quinze ou dezasseis anos, e eu nem tinha perdido os meus dentes de bebé, como a minha mãe costumava dizer.

Pela primeira vez na minha carreira, eu escondia algo da mamã, escondia o meu amor por René. Devo-lhe ter dito pelo menos uma centena de vezes que ele estava perto do meu coração, mas eu ousei contar-lhe que sonhava com ele todas as noites: como ele viria para a minha cama receber-me e levar-me para uma ilha deserta onde nós fazíamos amor. Eu nunca lhe contei sobre os meus filmes tórridos que ele protagonizava cada vez mais frequentemente. Tinha encontrado - aonde eu não sei - uma foto dele que eu olhava milhares de vezes por dia sem a minha mãe saber e que cobria de beijos à noite, na minha cama. Esfreguei-a contra a minha bochecha. Escorreguei-a sobre o meu pescoço como um beijo e deslizou sobre os meus ombros.

Antes de cair no sono, eu escondia-a debaixo da minha almofada, com medo que a minha mãe, que sempre partilhou o quarto comigo, a encontrasse.

[135] Uma manhã, eu acordei com a foto do meu amor ao lado da almoçada, toda à vista, perto da minha cabeça. A minha mãe já se tinha levantado, lavado, vestido, e aberto as cortinas. Deve ter visto a foto. Eu estava com medo que ela fosse falar com o René sobre isto, que ela lhe dissesse que eu tinha caído em amor por ele e que ele ficasse preocupado comigo. E que seria melhor para mim acabar com isso o mais depressa possível. Se ela tivesse visto aquela preciosa foto, ela não devia ter acreditado que pudesse haver alguma coisa séria entre o René e eu. A cabeça e o coração do René estavam noutro lugar.

Assim que deixei o palco e o trabalho terminou, ele não me viu. Era como se eu não existisse mais. Nos seus olhos, eu voltei numa extraordinária rapariga pequena que não era muito bonita, com caninos desordenadamente longos e proeminentes (alguns humoristas tinham-me metido a alcunha de Drácula), sobrancelhas espessas, um rosto longo ainda sobrecarregado com gordura de bebé, com um nariz grande e lábios que eram finos demais.

Se ele alguma vez falava comigo de uma maneira pessoal, era sobre o que eu fazia em palco e na tv, sobre a Celine Dion, a cantora, nunca sobre a minha vida real.

E por isso, eu nunca queria deixar o palco porque era o único lugar aonde eu sentia que existia para ele.

Provavelmente foi o facto de ele estar a ver-me que me fez começar a adorar estar em palco ou em frente a câmaras ou até nos estúdios de gravação, a cantar. Apenas para o fascinar mais.

Eu digo isto agora, mas eu não sabia realmente o que ia na cabeça da jovem que eu era. Eu nem sei mais como e quando o meu amor por René começou, nem quando controlar as minhas emoções se tornou obvio para ser  ignorado.

Ás vezes eu via-o a ficar muito atentamente a olhar nas sombras, na audiência que estava a ver-me, a aplaudir ou a ficar de boca aberta. E cada vez era mágica; Eu cantava para ele de modo a ele pensar que eu era boa, para ele me vir dizer mais uma vez e outra vez, "Tu és a melhor." E ai eu conseguia fazer as lágrimas virem-me aos olhos.

Eu tinha dezasseis. Eu nem sabia como estar ao pé dele. Estava já sem esperança no amor.

 

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