Eu
nunca vou esquecer o dia em quem cantei em publico pela
primeira vez. Foi no casamento do meu irmão Michel que
também é meu padrinho. Eu tinha 5 anos. Tinha vestido um
longo vestido azul com pequenas flores brancas e luvas
brancas. Isto deve ter sido no verão porque Michel casou no
dia do seu aniversario que é 16 de Agosto.
Os meus irmãos e irmãs fizeram um
verdadeiro show para os recém casados. Levantaram um palco
inteiro com luzes e amplificadores. Até fizeram testes de
som. Começamos por cantar musica folk todos juntos e depois
cada um de nos fez o seu pequeno número. Durante alguns dias
antes do casamento, Maman pos-me a praticar varias musicas
incluindo “Mamy Blue” (Granny Blue), que eu amo e que ia
cantar acompanhada pelo meu irmão Daniel ao piano.
Ate àquele momento eu só cantava em
nossa casa, com a família. Quase todas as noites depois do
jantar, formávamos um coro e cantávamos musicas antigas em
roda. Ou cantávamos grandes sucessos de Jimi Hendrix ou
Credence Clearwater Revival que tanto gastávamos.
Muitas
vezes o meu pai pegava no seu acordião e minha mãe no seu
violino. Daniel e Ghislaine podiam tocar qualquer
instrumento. E, se não houvesse tambores em casa eles batiam
nas mesas, paredes, panelas, no frigorifico….
Enquanto a família lavava os pratos
alguém me punha em cima da mesa da cozinha- o meu primeiro
palco, uma espécie de teatro como os que eu tenho hoje em
dia, com audiência em todos os lados. Eu cantava com toda a
minha força, usando um garfo, colher ou a escova de lavar
pratos como microfone. E fazia-os rir. Eu não tinha medo de
nada nem de ninguém. O único problema é que eu nunca queria
parar de cantar. Depois de começar era difícil de me tirar
da mesa.
Uma noite, como brincadeira, ou só
porque eles já estavam fartos, assim que a cozinha ficou
arrumada, fizeram sinais entre eles para irem para a sala,
depois de desligarem a luz deixando-me sozinha com o meu
“microfone” nas mãos.
Isto não me deixou nada chateada.
Primeiro eu sabia que eles não estavam a tentar nada com
isso. Nenhum dos meus irmãos e irmãs teve, alguma vez a
intenção de me magoar; disto eu estou certa. Ainda mais,
nunca na minha vida, no passado ou presente, eu duvidei, por
uma fracção de segundo do amor da minha família por mim, ou
do amor que os meus irmãos tem pelos outros irmãos e mesmo
pelos meus pais.
[25]Quando eles saíram do meu “concerto de
cozinha”, eu sabia que era um jogo, um truque que eles
estavam a fazer comigo. Eles queriam fazer rir toda a gente.
Portanto, eu sai calmamente da mesa e juntei-me a eles, na
sala onde se certificaram que eu tive um grande momento. Eu
sempre adorei fazer brincadeiras na família. Acho que
herdamos isso do meu pai.
Quando tínhamos visitas, amigos dos
meus irmãos ou namoradas ou colegas das minhas irmãs a
atmosfera era completamente diferente. Para mim, sem duvida.
Eu nunca teria subido para a mesa ou cantado sozinha. A não
ser que os que viessem também fossem músicos ou cantores, o
que acontecia muitas vezes. De facto, a nossa casa atraía
todos os jovens da área que gostavam de fazer musica. E
tínhamos muitas vezes “convidados estrelas” a aparecer com a
nossa banda. Estas vezes, eu ficava calada. E quando me
sentia suficientemente confiante, juntava a minha voz aos
outros. Mas por muito tempo, o meu canto era privado,
puramente um acontecimento familiar.
Como resultado, eu nunca cantei para
um publico tão importante e tão fora da família como o que
tive no casamento de Michel. Quando foi a minha vez de ir
para o palco eu fiquei paralisada com medo do palco. Todos
estavam a ver-me e esperando que eu começasse. Estas pessoas
intimavam-me: primos que eu quase nunca vi, amigos dos meus
irmãos e irmãos que provavelmente não sabiam nada de musica
e que não queria certamente ouvir-me cantar.
Um amigo de Michel, Pierre Tremblay,
tocou os primeiros acordes de “Mummy Blue”. Eu estava ao seu
lado a olhar para o chão com um antipático ruído nos meus
ouvidos. Pierre acenou-me e começou a introdução mais uma
vez. Mas eu continuei ali, gelada. Depois senti a mão da
minha mãe nas minhas costas, puchando-me firme mas
gentilmente. E ela estava a dizer-me: “Força, minha
pequenina, força. É a tua vez.”
Então eu avancei e comecei a cantar.
Eu não me lembro exactamente o que
aconteceu depois, mas continuo a lembrar-me de não querer
parar e pedir a Michel para me deixar cantar mais musicas.
Também cantei em todos os grupos formados pelos meus irmãos.
Eles deram-me um grande prazer, um
sentimento de ter conquistado o meu medo, o meu medo do
palco. E, definitivamente, eu conheci, pela primeiríssima
vez na minha vida aquela inesquecível sensação sentida por
uma cantora quando capta um ouvinte, quando esta a ser
ouvida, aplaudida.
Naquele dia eu soube que cantaria
toda a minha vida. E descobri a minha alegria em faze-lo."
Eu
nasci em 30 de Março de 1968. Fui um erro, um acidente e a
causa de um sério embaraço para a minha mãe.
No dia em que ela soube que estava
grávida de mi, teve que abandonar planos que tanto tinha
desejado, por muito tempo. Eu não estava de todo nestes
planos. O meu nascimento não foi desejado nem esperado.
Vindo ao mundo eu quebraria os seus sonhos. Eu sempre a amei
tanto que se eu tivesse sabido disto eu nunca me teria
deixado nascer.
[27]
A minha mãe já tinha criado 13
filhos. Por mais de 20 anos ela manteve a casa. Ela fazia as
lavagens, o trabalho da casa, as limpezas, passava a ferro,
fazia as refeições. E ela fazia isto sempre, durante os bons
e maus momentos, 365 dias por ano. No momento que ficou
grávida de mim, ela pensou e teve o direito de o fazer, que
tinha terminado o seu trabalho. Pensou que, finalmente,
estava pronta para fazer algo diferente.
Os seus filhos mais novos, Paul e
Pauline, que são gémeos, entravam para a escola no próximo
Outono. A minha mãe teria algum tempo livre. Ela poderia
deixar a casa e ver o mundo. Ela queria arranjar um emprego
e fazer algum dinheiro. Talvez ela viajasse com o meu pai
para uma parte do Québec, chamada Península Gaspé, outra
vez. Eles tinham ambos passado as suas infâncias lá e nunca
mais lá voltaram desde que casaram.
A minha mãe foi longe, ao ponto de
ir ver o prior para lhe perguntar se ela poderia “parar de
ter filhos”, como eles diziam naquela altura, o que
significa usar contraceptivos.
Naquele tempo o prior de Québec
tinha muita autoridade. Este começou a pregar para ela.
Disse-lhe que ela não tinha o direito de desafiar a
natureza. A minha mãe ficou furiosa. E também eu fiquei
quando soube da historia. Mas ao mesmo tempo, eu tenho que
admitir que devo a minha vida, de uma certa maneira, aquele
prior.
Os gémeos estavam a celebrar o 6º
aniversario no dia em que eu voltei com a minha mãe do Le
Gardeur Hospital, onde eu tinha nascido quatro dias antes.
Maman deixou-me nos braços dos meus irmãos e irmãs e fez um
bolo de chocolate para os gémeos. Na nossa casa as crianças
tinham sempre direito a um grande
bolo de chocolate ou
baunilha com velas e também a presentes que os meus pais
compravam.
Então este era um dia de celebração,
mas o coração da minha mãe estava pesado. Comigo em cena,
que vim acabar com os seus planos ela encontrou-se atirada
de volta ao principio, mais uma vez confinada ao pequeno
mundo que ela tanto quis deixar. Eu estava a força-la a
deitar fora o sonho de uma nova vida, um sonho que ela
pensou estar perto de realizar.
Eu imagino que, no fundo do seu
coração, ela se tinha arrependido um bocadinho do meu
nascimento. Mas também penso que ela não perdeu muito tempo
sentindo pena de ela própria. Isto não e de todo a maneira
dela. A minha mãe e feliz a tomar conta de todos mas ela
nunca teve paciência para para queixas e bebes chorões.
Eu não sei como isto aconteceu mas,
de alguma maneira, eu tive êxito em fazer a minha presença
sentida. Eu devo ter encontrado uma maneira de fazer paz com
a minha mãe que, ao principio não me desejou. De alguma
maneira eu devo tê-la conquistado. Mas não posso tirar muito
credito disto. A minha mãe foi sempre doida por bebés - os
dela e os das outras pessoas. E, ainda por cima parece que
eu fui um bom bebé. Não chorava muito e comecei rapidamente
a dormir as noites completas. Claro, eu tinha 15 pessoas nas
minhas costas e a chamar-me.
Eu passei os primeiros dias,
semanas, ou talvez meses da minha vida nos braços da minha
mãe ou pai ou nos dos meus 13 irmaos e irmãs mais velhos.
[29]
Era o foco de interessa destas 15 pessoas, sem dúvida a mais
autêntica e indulgente audiência que alguma vez tive. Eles
olhavam-me, mimavam-me, veneravam-me. À noite discutia para
saber em que cama eu ia dormir.
A minha irmã Ghislaine, que tinha
quase 10 anos, fez uma surpreendente descoberta. Sempre que
ela cantava o meu nome suavemente com uma voz baixinha, em
voz de falsete, eu começava a chorar como se fosse uma
deixa. Muito naturalmente, ela deduziu com isto que eu não
gostava do meu nome. A minha mãe escolheu-o
porque, durante
a sua gravidez a canção de Hugues Aufrey “Celine” foi um
grande sucesso no Québec e em França. “Celine” contava a
historia da mais velha de algumas crianças cuja mãe morrera
durante o nascimento do seu ultimo filho. A mais velha
sacrificou a sua juventude aos seus irmãos e irmãs. E os
anos passaram sem que tivesse conhecido o amor.
Ghislaine cantava outros nomes no
mesmo tom de voz para ver como é que eu reagia. Eu chorava
ainda mais. Então, era claramente a canção que me aborrecia.
As outras crianças começaram a divertir-se fazendo-me chorar
ate que a minha mãe interviesse. Acabaram as musicas
naquelas notas. Mas ninguém parou de cantar nem de fazer
musica.
Eu tive a incrível sorte de nascer
numa casa cheia de música e canções de manhã até à noite -
às vezes até mesmo de madrugada. A música dos outros - Janis
Joplin, Jimi Hendrix, Félix Leclerc, Jacques Brel, Barbra
Streisand e Ginette Reno - assim como a nossa própria
musica.
A música que os meus pais tocavam -
o meu pai com o seu acordiao e a minha mãe com o seu violino
- a viva musica de dança chamada “rigadoons”. E a musica que
os meus irmãos e irmãs tocavam com as suas guitarras,
pianos, instrumentos de percussão…há alguma duvida que todos
nos nos mantenhamos tão profundamente ligados a nossa
infância?
Nos estávamos longe de ser ricos.
Mas nos amávamo-nos uns aos outros. E nos tínhamos a nossa
musica, que juntamente como a saúde e amor representava o
que é mais bonito e precioso no mundo.
E acredito realmente que onde há
musica, a felicidade não pode estar longe. Tal como o meu
irmão Clement diz, a musica atrai felicidade tal como as
armadilhas de madeira usadas pelos caçadores atraem veados e
alces.
Isto explica porque a família sempre
foi tão importante para mim, porque esta directamente
conectada com a minha felicidade e com o meu equilíbrio
emocional, com a minha vida diária e com a minha carreira.
Eu
sempre fui muito chegada aos meus pais, aos meus irmãos e
irmãs, mas essencialmente a minha mãe. Mesmo quando alcancei
a idade quem que quase todas as raparigas saem das saias da
mãe, se distanciam, tentam emancipar-se e se tornam
rebeldes, eu continuei a ver a minha mãe como um modelo a
seguir. Ela era a minha amiga, a minha confidente e
companheira, assim como insubstituível, essencial, única
como uma mãe. A minha mãe é o pilar da nossa família.
Ela escreveu a minha primeira
canção. Ela foi o meu primeiro manager. Se hoje eu conheço o
homem que me faz feliz, é graças a ela…e também para
“tristeza” dela.
[31]
O temperamento do meu pai é
completamente diferente do da minha mãe. É muito mais
reservado e discreto e menos autoritário também, talvez
menos seguro de si mesmo diante dos outros e por fim mais
isolado. A sua mulher é a autoridade. Eu penso que isso é um
acordo. Ela decide; ele vai com o fluxo. Ela toma conta dos
problemas; ele detesta ficar embrulhado neles. Ela participa
em tudo o que diz respeito a família: ele foge das disputas,
de conflitos. Talvez demais.
O meu pai fala muito, mas a maior
parte das vezes ela fá-lo para entreter, para fazer rir as
pessoas, para as fazer esquecer as preocupações e os seus
medos. Ele sempre foi um mestre em fazer de tudo uma piada.
Ele não queria ver a miséria, a pobreza, a doença ou
sofrimento em casa ou na casa dos outros. Ele detesta
hospitais, por exemplo. Mesmo quando a minha mãe ou as
minhas irmãs estavam a ter os bebes era praticamente
impossível lava-lo a visita-los. Mas eu acredito que na
maior parte dos casos os homens não gostam destas situações.
O meu pai não comunica com os outros
com tanta facilidade como a minha mãe. Mesmo com os seus
filhos, ele não tenta comunicar em níveis em íntimos ou
saber o que os outros estão a pensar ou a sentir. Ela so
quer que todos estejam felizes. Por acaso, eu não me lembro
de o ouvir queixar-se de alguma coisa ou falar mal de
alguém.
Ele adora pescar, mesmo quando os
peixes não mordem. Ele ama o golfe, mesmo quando esta a
jogar sem par. Ele gosta destas actividades, e dos suas
bonitas áreas.
O meu pai e muito bom com as suas
mãos. Ele pode construir uma casa inteira - as fundações,
fazer toda a carpintaria, por as janelas, a instalação
eléctrica, o isolamento - tudo. E ele esta a faze-lo. Eu ate
penso que quando alguma coisa partia ou se estragava em
nossa casa, ele ficava contente por isso. Ele pegava nas
ferramentas e punha tudo como era antes. Ele era o ídolo dos
meus irmãos e eles aprenderam muito com ele. O que ele gosta
menos e de todo o trabalho de acabamento e detalhe as
“coisinhas do fim” como ele as chama.
O Papá é extraordinário tocador de
acordeão. Quando eu era pequena ele fazia parte de uma
orquestra que tocava em casamentos e celebrações de
feriados, não apenas na nossa pequena suburbana vila de
Charlemagne mas em toda a região- em Repentigny, em
Lanaudière no este de Montreal. Quando ele ensaiava sozinho
ou com os seus amigos, o som do seu acordeão emocionava-me,
tão fluido e tão alegre, tão doce- tal como ele. Ele sempre
teve uma maneira muito distinta de tocar. Basicamente o meu
pai revelava-nos mais de si através da sua musica do que a
falando connosco. Quando ele tocava, ela parecia mesmo
diferente. E ele estava sempre a sorrir.
Então eu costumava ouvi-lo assim
como os outros membros da família. Ele tocava sempre de pé
com as costas contra a parede da cozinha ou na sala de
estar.
[33]
E eu penso que todos nos ficávamos surpresos por ver
este homem, que nunca queria atenção, de repente, manter-se
em pé. Ele fazia mais que tocar. Ele punha alma na musica. E
isto era algo que todos podíamos sentir; isto tocava-nos.
Algumas vezes, também, ele improvisava ou misturava estilos
de musica e todos os tipos de melodias, antigos sons que ele
nos ensinou e algum rock que os meus irmãos ouviam naquela
altura. Depois ele sentia que nos tinha agarrado, e ficava
feliz…e nos também. E ele piscava-nos o olho. O meu pai e
campeão do mundo em piscadelas.
A tocar musica foi também como ele
seduziu a minha mãe. Eu posso adivinhar como ele o fez.
Quando o meu pai toca acordião, ele pode-se tornar
perigosamente sedutor. Como musico ele tem este invulgar
talento de entrar directamente no coração das pessoas, de
realmente as tocar.
Tal como ele a minha mãe foi
transplantada da península Gaspé - do mar, floresta e céu -
para La Tuque, que é na parte mais remota da região Mauricie
do Québec - com as suas faricas e fumo. Foi ai que se
conheceram. Ela tinha 17 anos, ele 21. Ele tinha o seu
acordião, ela o seu violino. Eles sabiam o mesmo reportório.
Tocavam “Hanging Man Reel”. Ele mostrou-lhe acordes para “Mockingbird”.
Um ano mais tarde estavam casados. E depois vieram os
filhos, de Denise aos gémeos, 13 crianças em 16 anos- que
imagem.
Depois eu, inesperadamente, um erro,
uns anos mais tarde.
Quando tentei recondar a minha infância, eu perguntei a mim
mesma se as memórias que eu guardei dela eram realmente
minhas ou se as recreei na minha cabeça baseado naquilo que
os mais velhos me contaram. Na nossa casa todos se lembram
do dia em que eu nasci. Eles falaram-me tanto disto que eu
posso dizer como estava o tempo - nublado e ventoso. Todos
os meus irmãos e irmãs testemunharam os meus primeiros
passos; eles esperavam todos e ouviram as minhas primeiras
palavras. Eles também se lembram das primeiras canções que
cantei com eles, e, o acidente de carro que quase me custou
a vida quando eu tinha dois anos de idade. Eu acabei no
hospital com uma fractura no crânio e uma concussão.
Eu consigo visualizar perfeitamente
a cenário. Estava muito sol. Um dos primeiros dias de
primavera. A terra e o rio perto cheiravam bem.
Os meus irmãos Michel, Jacques e
Daniel estavam a fazer a limpeza no pátio. Eles tinham que
apanhar a relva velha, limpar os canteiros e apanhar as
folhas velhas. Eu estava na caixa de areia a brincar.
Através da sebe - muito magra - que
rodeava o pátio eu via uma mulher a empurrar um carrinho de
bebé - um carrinho azul.
Pensei que fosse a minha irmã Denise
com a sua bebé Christian. Aparentemente eu estava mesmo
fixada na Denise com a bebé. Então eu fui em direcção a
elas. Eu estava no meio da rua quando me apercebi que me
tinha enganado. Não era a minha irmã, mas uma vizinha com o
seu bebé.
[35]
Os meus irmãos, que estavam no
pátio, ouviram os travões de um camião e o choro de uma
mulher. Dois segundos mais tarde, eles estavam no cenário do
acidente, em frente da casa.
Eles viram um grande carro preto
parado no meio da rua Notre - Dame, a porta aberta, um homem
do lado dela, imóvel, e eu, estendida no chão.
Michel atirou-se ao chão para me
tirar dali. Daniel e Jacques tentaram segurar a minha mãe
que saiu a correr porque pensou que eu estivesse seriamente
ferida, que talvez eu estivesse morta e eles não queriam que
ela me visse.
Dali em diante, as versões diferem
de alguma maneira, como usualmente acontece neste tipo de
situações.
“Tu choravas com toda a força>”,
dizem os meus irmãos.
“Ela não fazia barulho nenhum”,
contesta a minha mãe. “E foi precisamente por isso que me
preocupei mais. Ela não chorava mas os seus olhos estavam
revirados.”
Eu também não estava a sangrar mas
tinha marcas azuis e negras e contusões graves nos braços e
testa.
“O papá estava lá”, mantem Daniel e
Jacques.
“Impossível”, reclamam Maman e
Michel. “Eu estaria a trabalhar àquela hora (naquela altura
era inspector de carne na Federação Cooperativa do Quebec).
“A ambulância já tinha partido quando ele chegou. Não estava
la ninguém a não ser policias a acabar os relatórios.”
À alguns anos atrás quando eu
comecei a coleccionar recordações de família para as por num
álbum para os meus pais- um presente que ainda tenho que
acabar- o meu pai tirou da carteira um velho pedaço de papel
cor de rosa que ele guardava por mais de 25 anos. Era o
relatório da policia.
Graças a este documento e
explicações dos meus irmãos eu sei a forma e a cor do carro
que me bateu assim como o nome do homem que o conduzia-
Jacques Picard.
Ele oferece aos meus irmãos 20
dolares para não chamarem a policia. O meu entendeu o porque
algumas semanas mais tarde quando viu a cara do homem na
terceira pagina do Journal de Montreal. O homem pertencia ao
submundo do este de Montreal. E ele tinha sido batido por
outros criminosos por alguns alegados crimes. Deus tenha a
sua alma!
Naquela noite, pela primeira vez na
minha vida, eu dormi completamente sozinha, longe da minha
mãe, num hospital de crianças. Obviamente eu não me lembro
de nada, nem de nada mais do acidente. Eu so tinha dois
anos. Mas levei anos da minha vida para dormir sozinha outra
vez.
Quando
eu era pequenina nunca queria ir para a cama. Se eu dormisse
na casa de uma das minhas irmãs casadas, onde a minha mãe me
deixava, às vezes, por dois ou três dias, eu fazia sempre
uma grande cena. Eu queria ficar perto dela todo o tempo,
não importava onde ela estava ou que estava a fazer. Eu acho
que ela se habituou a isto. Ate eu ter 18 ou 19 anos nos
fomos praticamente inseparáveis.
Onde
quer que eu esteja onde em dia, eu continuo muito ligada à
minha família. Duas das minhas irmãs, Manon e Linda, vivem
perto de mim. Os meus irmãos Michel e Clement nunca estão
longe.
[37]
Os outros eu vejo regularmente quando estou em
Montreal ou quando eles vem a Florida ou Las Vegas. E não
passa um dia sem que eu fale com a minha mãe. Ela visita-me
muitas vezes, com o meu pai e a minha tia Jeanne, a sua irmã
mais velha, em Júpiter, na Florida, onde René e eu temos a
nossa casa.
Os
meus parentes viajaram comigo em “tour” durante anos; a
minha mãe, claro, quem tem uma energia infindável e adora
grandes cidades: New York, Londres e, especialmente Paris.
Através dela eu sempre soube o que se passava na família-
quer com os irmãos, irmãs, cunhadas, cunhados, sobrinhos e
sobrinhas- quem estava a fazer o que, onde, quando, como,
quem estava gripado, quem foi promovido no trabalho, quem
comprou um carro novo, quem pensa que esta grávida, quem
esta em guerra com quem e porque.
Nos
vemo-nos com frequência e falamos muito sobre o que nos esta
a acontecer no momento, mas especialmente sobre o tempo em
que estávamos todos juntos na pequena casa em Charlemagne.
Nos pensamos naquela casa como se fosse um paraíso perdido
para o qual todos sonhamos voltar- como se desejássemos que
todos os 16 de nós vivêssemos todos juntos, com uma casa de
banho, quatro pequeninos quartos, sem maquinas de lavar
louça (claro), um forno a óleo cm o seu cheiro infernal, sem
qualquer conforto moderno.
Como
posso eu explicar que este era o sitio onde a felicidade
vivia? E como posso eu estar certa disso?
Eu
acredito que há algo magico acerca das grandes famílias,
famílias que sabem e partilham muito calor humano. Mas as
vezes eu digo a mim própria que talvez nos tenhamos
esquecido das dificuldades e dos males e que só nos
lembramos dos bons momentos que passamos juntos e que, nós
exageramos cada vez mais, sempre que falamos deles.
Grandes famílias tem muitas historias partilhadas. E muitos
historiadores, claro! Cada uma das crianças mais velhas tem
a sua versão dos factos, o seu ponto de vista e a sua
interpretação. Eu certamente, sempre quis ouvir as
historias, especialmente quando elas voltam aos anos 60 ou
mesmo a metade dos anos 50, mesmo antes de eu aparecer para
mudar a vida da minha mãe.
À
medida que o tempo passou, eu comecei a saber algumas
antigas historias como se eu as tivesse realmente vivido-
por ter ouvido falas delas tantas vezes. Por exemplo, às
vezes sinto como se tivesse conhecido o meu avô Dion, a quem
o destino ofereceu um “fraco sopro”.
Apenas
a um par de passos da casa onde nos vivíamos naquele tempo,
ele foi atingido e morto por um comboio. Com “nós” eu quero
dizer a minha família, mas realmente, eu nunca vivi naquela
casa que o meu construiu desde as fundações. Depois da
terrível morte do seu pai, ele não pôde continuar a estar
naquela casa. Mesmo hoje ele não gosta de falar no que
aconteceu.
“O teu
avô apenas deixou a casa. Houve um terrível barulho. E
através da janela da cozinha eu vi o carro dele bater no
comboio. Quando o comboio parou, o carro era apenas um
montão de fragmentos de metal. Eu fui ate ele e fiquei lá,
incapaz de me mecher.”
Depois, o meu pai não conseguiu ficar naquela casa e ver o
comboio que lhe matou o pai passar todos os dias. Então,
mudamo-nos.
[39]
Isto
foi vários anos antes de eu nascer, mas mesmo assim eu
consigo contar a historia da nossa mudança como se eu
estivesse lá. Começou a chover e não havia telas a cobrir o
camião. O homem entregou a mobília e um colchão estava
completamente ensopado. As crianças gostavam de estar na
nova casa, especialmente porque tinha um grande pátio nas
margens do Rio Assomption. Lá havia grandes arvores nas
quais os meus irmãos penduraram pneus para balançar.
Era
uma velha casa canadiana, com a cozinha ao lado do espaço
principal, tal como nos velhos dias. Na frente, um pórtico
muito estreito corria ao longo de toda a frente, da qual
tínhamos acesso para o passeio da Rua Notre- Dame, que era
muito movimentada e barulhenta. Nos rés-do-chão, ao lado do
quarto dos meus pais, havia uma grande sala de estar que,
verdadeiramente parecia mais uma sala de musica. Muitas
vezes havia um tambor no meio da sala, guitarras,
microfones, amplificadores, gravadores de cassetes, cabos em
todas as direcções, gravações, cassetes. Também havia, na
lado da rua, uma sala de estar onde raramente estávamos, a
não ser que houvesse visitas importantes. Era um espaço
frio, escuro e eu não gostava de lá ir.
Mesmo hoje eu
prefiro cozinhas a salas de estar para conversar ou jogar
cartas.
Os
quartos das crianças eram no segundo andar, dois para as
raparigas, dois para os rapazes.
No
maior que eu partilhava com Pauline e Manon, as paredes
estavam forradas com posters de actores e cantores. As
camas, que ocupavam o quarto todo estavam tão juntas que
tínhamos que nos apertar no espaço entre elas e entre as
camas e cómodas, entre a janela do sotao e do grande espelho
na porta do guarda vestidos.
Eu
gostava de ver as minhas irmãs quando elas se maquiavam, se
vestiam, posavam à frente do espelho. Eu achava-as lindas. E
eu estava impaciente para crescer e fazer o que elas faziam.
Elas
também cantavam muito, imitando Mirreile Mathieu, Dalida,
Ginette Reno, Barbra Streisand, Aretha Franklin. Mesmo antes
de eu começar a escola, eu já conhecia todas estas estrelas.
Lembro-me particularmente de uma dia chuvoso. Ghislaine, que
devia ter uns 15 anos ligou o gravador no nosso quarto e
estava a imitar a actuação de uma cantora sem parar. Eu
ouvi-a toda a tarde. Ela segurava um microfone, sem fio, mas
ela usava-o como se estivesse em palco, em frente a uma
plateia a quem agradecia. Eu senti-me como se eu também
pudesse ouvir os aplausos.
Esqueci-me do titulo da canção - era em inglês – e não me
consigo lembrar do nome da interprete. Mas lembro-me da
concentração, a determinação da minha irmã. Ela pedia-me
para segurar na agulha para o inicio da musica enquanto
recuperava a sua respiração. Depois ela recomeçava. Eu
estava sentada no chão, ao lado dela. Eu via-a cantar no
espelho. E eu estava tão excitada e feliz tal como ela
estava quando conseguia duplicar as entoações da cantora.
Naquela noite, os meus irmãos (provavelmente Clement no
tambor, Jacques no guitarra e Daniel no teclado) encontraram
musica para a canção e Ghislaine cantou com eles.
[41]
Todos
ouviram, até o meu pai e a minha mãe, mesmo a minha avó
Dion, que veio viver connosco depois da morte do meu avo.
Ela já
era muito idosa e quase débil. Não falava muito. Tinha uma
fobia por portas abertas, ela dizia-nos sempre para as
fechar, para manter fora as moscas, ate a porta da cave,
mesmo no meio do Inverno que não há moscas em lado nenhum.
Maman
era maravilhosa com ela. Deu-lhe o seu próprio quarto, no
primeiro andar, e mudou-se para o segundo andar com o meu
pai. Tomou conta dela, lavava-a, mudava-a, como a um bebé.
Ate a ajudava comer e a vestir-se.
Eu ao
sei se tinha coragem e a força para fazer aquilo, mas eu
admiro, absolutamente aqueles que o fazem, tanto para a
família ou como profissão. Eu estou certa que eles encontram
prazer em alguma parte disto. Fazer bem, faz-te bem, isto
faz-te uma pessoa maior.
Mais
uma vez eu vi a vóvó balançar-se na sua cadeira, perdida,
completamente perdida nos seus pensamentos. Ela sorria o
tempo todo. Mesmo quando não nos conseguíamos ouvir a nos
mesmos pensar em casa, por haver vários tipos de musica a
tocar ao mesmo tempo. Por exemplo, Ghislaine e Claudette, a
minha madrinha, estariam a cantar no andar de cima, no
quarto das raparigas. Em baixo, Jacques estaria a tocar
guitarra, Clement o tambor, Daniel o piano. Michel estava a
ouvir as suas gravações de jazz. Outra das minhas irmãs
estava a falar ao telefone. E as vezes a televisão ainda
estava ligada.
Mas,
na maior parte das vezes, alguém, o meu pai ou a minha mãe,
impunham alguma ordem no caos e todos terminavam de fazer
musica. Isto podia durar horas, todo o final de dia, senão
mesmo uma parte da noite. A avo ficava na sua cadeira e via
a família do seu filho fazer musica, tocando “bobines” tão
velhas quanto a própria terra ou fazendo as suas versões dos
grandes hits
dos “Doors”, “Hendrix” ou “Jopin”. Ela parecia
maravilhada. E talvaz um pouco surda, também.
Tudo
isto fazia-me sentir bem, livre. Eu queria que esta vida
durasse para sempre. Era doce e boa. Eu tenho que dizer que
tive uma infância muito livre. Surpreende-me hoje em dia que
eu não me tenha tornado numa preguiçosa e mimada mulher.
Eu
nunca levei uma palmada em toda a minha vida, nem dos meus
pais, nem de nenhum dos meus irmãos ou irmãs. Nem uma
bofetada, nada físico. Nos não fazíamos esse tipo de coisas.
A mim ou aos outros. A minha mãe tinha uma maneira de me
punir que era tão eficaz como um estalo na bochecha. Um dia,
quando eu devia ter uns 4 ou 5 anos, eu estava com os meus
pais no centro comercial em Repentigny, que era perto de
onde nos morávamos. Eu queria ir para a loja dos brinquedos.
Eu tinha la estado varias vezes com a minha mãe ou com as
minhas irmãs. Varias Barbies que eu tive vieram daquela
loja.
Mas
naquele dia, os meus pais estavam apressados, especialmente
o meu pai. Não havia maneira de irmãos para a arca dos
tesouros. Quando eu vi que não havia nada a esperar,
enquanto o meu pai não concordasse, eu comecei a suplicar a
minha mãe.
[43]
Mas também ela disse que não.
“Ouve,
Celine, o dinheiro não cai das arvores. E tu já tens
brinquedos suficientes em casa.”
Então
eu fiz um verdadeiro escândalo. Eu chorei, bati com os pés e
uivei. Vocês podiam ouvir-me de uma ponta a outra do
corredor. Estava tão zangada que já não via nada a minha
volta. De repente, apercebi-me que estava completamente
sozinha. Virei-me e vi os meus pais dirigirem-se para a
saída. Eles deixaram-me ali, simplesmente.
Apanhei o susto da minha vida! Em 30 segundos, eu já estava
ao pe deles.
Esta
foi a lição que a minha mãe me deu quando eu agi como uma
menina mimada. Puniu-me com frieza e indiferença. Nunca por
me bater ou gritar comigo. A sua autoridade era suficiente
para por tudo em ordem.
Eu
também chorei imenso no dia em que entrei na pré-escola. Eu
gosto de ouvir a minha mãe contar esta cena de horror. Eu
tinha que deixar o confortável ninho da família e viver
todos os dias, durante horas, longe da minha mãe.
Era o
mesmo, apenas mais dramático, no ano seguinte, quando saí
para a escola. Desta vez porem, a minha memoria só reteu
alguns precisos momentos.
Lembro-me que a minha mãe foi comigo a pé e eu segurei a sua
mão muito apertada. Quando estava no pátio da escola ela
teve que forçar para abrir os meus dedos e separar-me dela.
Depois, recuou alguns passos e deixou-me ali, totalmente
sozinha. Ela pôs-se atrás da vedação e olhou-me. Nunca,
penso eu, o meu coração estivera tão pesado. Porque eu sabia
que não podia voltar atrás e voltar a ser bebé. A minha mãe
tinha-me avisado que isto estava a chegar. E eu era, e
continuo a ser, uma menina muito obediente. Eu faço o que
tem que ser feito. Eu faço, sempre fiz e sempre farei o que
me for pedido. Desde que as pessoas que o pedem sejam
aquelas que eu amo e em quem eu tenho confiança.
Eu sei
que todas as crianças tem que enfrentar o primeiro dia de
escola. Aos cinco ou seis anos de idade, todos nos somos
tirados das nossas famílias e encontramo-nos sozinhos num
pátio de asfalto cheio de estranhos. Um profundo
aborrecimentos, uma imensa tristeza.
Eu
vivi sempre rodeada de adultos e crianças mais velhas que
eu. Aprendi tudo o que tinha que saber com eles. Desde que
me conheço, a verdadeira vida existe à volta deles. Não no
meio de um pátio de escola cheio de crianças assustadas que
não sabem nada de nada. Desde esse dia, eu detestei a
escola. Para sempre.
Não
estou a dar-me como exemplo; eu simplesmente acredito que
não fui feita para isso.
A
minha vida desmoronou-se. Maman arranjou trabalho num loja
chamada América Salvage, no este de Montreal, onde ela
vendia botas e sobretudos, etc.
Eu ia jantar em casa da
minha irmã Louise, que vivia perto da escola e em cuja cada
eu tinha que ficar e dormir as quintas e sextas feira,
quando a Maman trabalhava a noite.
[45]
Na
casa de Louise tudo era muito moderno, ordenado, brilhante e
confortável.e ainda por cima Loiuse era doce, so por si. Mas
à noite, sozinha na minha casa, eu pensava sobre a minha
casa. Eu queria esperar acordada na cozinha com Manon e
Pauline. Quando Maman chegava a casa do trabalho, nos
fazíamos tostas e chocolate quente. E mesmo que eu tivesse
na cama, havia aqueles barulhos familiares, aquelas vozes,
aqueles cheiros, todo aquele mundo que eu tanto amava. Na
casa de Louise, tal como na escola, eu sentia-me exilada.
Não
escondi o meu sofrimento da minha mãe, que ficou rapidamente
corrida por minha culpa (seria isto que eu queria
realmente?). então, para que eu pudesse viajar entre a
escola e casa, ela comprou-me uma bicicleta verde. Dali para
a frente, eu ia jantar a casa de Louise, mas dormia na minha
casa.
Uma
noite eu tive um sonho. Eu estava a voltar para casa depois
da escola. Eu não tinha minha bicicleta. Estava a correr.
Muito depressa. De repente, senti tudo iluminado. E tudo
começou a acontecer em câmara lenta, os meus passos ficaram
cada vez mais largos, como se estivesse a correr num tapete
de borracha. E eu estava extraordinariamente feliz.
Eu
nunca esqueci este sonho. Ainda hoje, quando penso sobre
ele, consigo recapturar um pedaço da incrível sensação que
isto me deu.
Quando
penso nesse tempo, eu consigo facilmente ver que, de alguma
maneira, eu sempre achei difícil conectar com crianças da
minha idade. Eu não acho que o mundo delas me ia interessar.
Hoje, eu sou fascinada por isso. Eu não me sentia capaz de
encontrar uma maneira de me conectar com crianças delicadas
e tornar-me parte dos seus jogos (ou eu pensava que nem
valia a pena tentar). Eu preferia estar sozinha. Mesmo
quando brincava.
Perto
do barracão ao lado da nossa casa, os meus irmãos puseram um
saco de pancada, como aqueles usados pelos boxeres, nos
treinos. Eu passei horas batendo nele, algumas vezes com
alguma das minhas irmãs como parceira de combate ou com a
minha sobrinha Cathy, filha da minha irmã Claudette. Mas
maior parte do tempo eu estava sozinha. Às vezes eu batia
no saco ate que os meus punhos inchassem. Eu continuava a
bater, sem ser capaz de parar. Quando entrei para almoçar,
as minhas mãos sangravam. A minha mãe envolveu-as em gaze,
tal como fazem aos praticantes de box. E, depois, eu voltei
para o meu saco, encontrei o meu ritmo e, mais uma vez,
bati-lhe, esquecendo-me de tudo.
Eu
também brincava com bonecas. Especialmente durante o verão e
usualmente fora de casa. Eu sentava-me no fundo das escoas
que davam para o pátio das traseiras. Levava as minhas
barbies, mudava-as, uma atrás da outra, e punhas em pose,
falava com elas e repreendia-as. Depois punha-as na cama,
ordenadas, numa velha arca de madeira que o meu tio Valmont,
irmão de Maman, fez para mim.
Eu era
a boneca da minha mãe e das minhas irmãs. Elas faziam
tranças no meu cabelo, punham verniz nas minhas unhas,
maquiavam-me, mesmo quando eu tinha apenas sete ou oito
anos. Claudette, Liette e Linda levavam-me muitas vezes com
elas às lojas e divertiam-se pondo-me a experimentar vestidos,
casacos, sapatos e chapéus.
[47]
Eu
tornei-me parte dos jogos delas, das suas conversas, e
especialmente parte das suas musicas e canções.
Este
era o jogo de onde eu tirava mais prazer. O mesmo que eu
continuo a jogar hoje: cantar, por um vestido e maquilhagem,
vestir uma fantasia, fazer comédias, viver o “show business”
como os meus pais, irmãos e irmãs faziam.
O
meu
pai e a minha mãe formaram um grupo musical. A. Dion and
His Ensemble, que dava shows em Lanaudiere e Montreal este.
Maman comprou um violino novo. Jacques tocava guitarra,
Clement estava nos tambores e Daniel tocava acordião-piano;
Denise cantava canções folk e sucessos correntes. Eles
chegaram a fazer shows de tv. Eu estava quase sempre com
eles, nos estúdios, clubes e bares, mesmo quando eu tinha so
6 ou 7 anos.
Mais
tarde, com um amigo da família chamado Michel Desjardins,
Ghislaine, Jacques, Michel e Daniel formaram uma banda de
verdadeiro rock, ritmo e blues. Nas noites de fim de semana
eles tocavam num clube em Charlemagne: o Bord- de- L’eau.
Eles chamavam-se “Les Décidés” (Os Determinados) e tinham
T-shirts feitas com dois D’s separados pela nota Si. Eu era
a fã numero um. Quando eles saíram em tour pelo Quebec, , eu
estava triste. Quando estavam perto de nós, eu não perdia um
show.
Eu
tenho algumas memórias muito claras dessas noites, o sem do
órgão Hammond, a guitarra Les Paul Gibson, de que eles tanto
se orgulhavam. Eu acho que ainda hoje seria capaz de
reconhecer o cheiro do Bord- de- L’eau com os meus olhos
fechados. E uma mistura de fumo de cigarro e fruta, muito
doce. e estava quente.
Ghislaine, que se chamava a ela própria “Penélope” depois,
tomou os tambores de Clement. Ela cantava tão bem, com tanto
coração, que todos no clube cresciam calados quando ela se
lançava em “Me and Bobby McGee” de Janis Joplin ou Barbra
Streisand “The Way We Were”. Os meus pais vinham muitas iam
muitas vezes aos shows e levavam-me, claro. Quando eu já
tinha o suficiente, dormia num banco.
Eu ia
tarde para a cama, muitas vezes. Eu comia quando estava
zangada, eu dormia quando não havia mais gente a tocar
musica. Eu faltava a escola regularmente, ou se eu fosse, eu
estava tão cansada que dormitava durante as aulas.
Eu
nunca fui uma boa estudante. Na escola eu não procurava por
amigos, não tentava ir a frente ou atrair alguém. Nem deixei
que se soubesse que de em quando eu cantava com uma banda.
No recreio eu não falava muito. Ficava a parte. Devo ter
parecido uma lunática, para algumas raparigas da minha
turma, uma pessoa sozinha, paralizada pela timidez ou,
completamente snobe. Tudo o que me interessava estava noutro
lugar, em casa ou num cabaret. Ou estava no pequeno clube na
margem do rio que a minha irmã Claudette e o meu pai tinham
comprado. Chamava-se o “Vieux Baril” (Velho Barril) e a
minha família tocava musica e cantava ali.
[49]
Nas
noites em que não ia com eles, eu ouvia-os chegar a casa:
eles iam para a cozinha, fazer tostas e café. Eu estava la
em cima, na minha cama e ouvia-os contar à Maman como tinha
sido a noite deles. Estavam com risinhos, felizes, tendo a
mais excitante vida que nos podíamos imaginar. Eu queria
crescer tão depressa quanto possível para poder ficar ali
com eles.
O
Vieux Baril era o lugar onde eu vi verdadeiros shows pela
primeira vez. Foi também o lugar onde experimentei pela
primeira vez, estar numa multidão e ter os meus primeiros
sucessos fora do circulo familiar. Depois dos aplausos, eles
encontravam-me, as quatro da manha, a dormir num banco. “Tu
podes estar acordada ate quando quiseres, se te levantares
de manha, para a escola.”
Portanto, de manha, eu levantava-me apesar do cansaço e ia
para a escola, para dormir.
Eu mal
podia abrir os meus olhos e acompanhar o que se passava nas
aulas, então eu sonhava. Tal como o meu irmão Michel e as
minhas irmãs Ghislaine e Claudette, eu sonhava que estaria
num palco, um dia, as portas dos estúdios de gravação iam-se
abrir para mim e eu seria uma estrela, cantando.
Os D
si D (Determinados) separaram-se, então Michel formou outros
grupos. “The Eclipse”, que não durou muito, depois o “Show”
que teve seguimentos
em Cabarets e clubes. Depois ele gravou
dois discos de 45’s e uma das suas canções conquistou as
tabelas de vendas.
Numa
noite de Outono, os meus pais levaram-me a mim e aos gémeos
a um show do grupo. Os “Show” estavam a preparar uma grande
tour pelo Québec. A moda na altura era de casacos curtos e
com folhos e jaquetas de dupla face. Manon tinha feito um de
setim branco com “cootails” e golas para Michel. Eu fiquei a
admirar o meu irmão, o cantor líder do grupo, a falar no
palco, debaixo das luzes da ribalta. Michel tinha uma voz
forte e falava muito bem. Eu queria ficar ate ao fim da
ultima musica. Desde que houvesse canção, algo para ver e
ouvir, eu recusava-me a ir para casa.
Eu
sabia um incrível numero de canções, de cor. No “Vieux
Baril”, os clientes pediam-me para cantar algumas canções e
davam-me moedas. Os meus pais estavam espantados por
descobrirem que eu não tinha mais medo de estranhos, que eu
podia enfrentar um publico sem problemas. Eu fiquei
acostumada com as multidões, com os aplausos, com risos e
com os “Bravos”. Eu já não vivia sem eles.
Na
escola, eu tornei-me uma estranha, um exilada. Assim que as
aulas começavam , se eu não caísse num sono de meia hora, eu
partia para a lua e começava a fazer pequenos filmes na
minha cabeça. O cenário era quase sempre o mesmo: dentro de
“Vieux Baril”. A acção era simples: eu estava a cantar numa
grande banda de rock, dirigida por Michel ou Daniel. E as
pessoas nas mesas paravam de conversar e ouviam-me. Tal como
eles faziam para os meus ídolos, Ghislaine e Michel.
Algumas vezes, também, eu ia para África como missionaria,
na parte mais escura da floresta.
[51]
Eu salvava crianças da
pobreza, fome e medo. Eu era imparável. Tinha sempre
sucesso. Ou, em vez disso, eu era ginasta como a Nadia
Comaneci, que se tornou no meu maior ídolo, a mais bonita
rapariga que eu alguma vez tinha visto, durante os Jogos
Olímpicos de Montreal em 1976. Eu tinha 8 anos. Forreu as
paredes do meu quarto
com fotos dela. Adorava o seu look
intenso e a sua maneira seria. Eu pensava que não havia nada
mais bonito na terra.
Acima de tudo, admirava o seu rigor e
precisão, a concentração que ela punha em todos os seus
movimentos. Para mim ela representava a perfeição- e
continua a faze-lo. Ele também foi também a primeira ginasta
Olímpica a conquistar o maior record possível. Ter o desejo
para alcançar o top, treinando e com disciplina, era uma
ideia que eu posso entender perfeitmante. Eu penso que
sempre fui capaz de conquistar tudo o que eu queria fazer,
também.
Para
mim, Nada Comaneci era um modelo e uma inspiração. Eu
conheci-a em 1996 nos Jogos Olímpicos. Eu já era uma cantora
famosa, mas mesmo assim, eu fiquei tão comvida que estava a
tremer e quase chorei.
Eu
não sei se foi por causa da minha mãe, mas eu nunca fui
tratada como a mais nova da família, aquela que os mais
velhos mal toleram. Aquela de quem eles escondem certas
coisas, a quem eles dizem “ És muito nova para isto, vai
para a cama”, ou “ tu vais entender quando fores mais
velha”.
Eu não
me lembro de ter sido excluída das conversas de adultos, não
importa qual fosse o assunto, tendo eu quatro, cinco ou dez
anos de idade. Eu não estive na escola sem aprender tudo
sobre os mistérios da vida, dos pássaros às abelhas-pelo
menos em teoria. Aos doze anos, eu atingi a típica
curiosidade de uma menina daquela idade sobre assuntos de
amor e não senti necessidade nem urgência em descobri-los.
Eu já os conhecia. Talvez isso explique por que é que eu
esperei tanto, até à idade de 20 anos - acima da média -
para por os meus conhecimentos em prática.
A
única coisa que eles tentaram esconder de mim foi a miséria.
Eu tinha 9 anos quando soube que a minha sobrinha Karine
tinha Fibrose Cística. Mas numa grande família, é muito
difícil de esconder alguma coisa de uma criança. A toda a
minha volta havia caras em que eu podia ver a tristeza, os
longos silêncios, apesar da musica, à noite, depois dos
afazeres da casa. Os olhos da minha mãe estavam cheios de
lágrimas. Ela estava a falar ao telefone
com os meus irmãos
e irmãs que já não viviam connosco. Estava a dizer-lhes, em
voz baixa, que algo de terrível tinha acontecido.
Foi
assim que eu soube - através das lágrimas dos minha mãe e do
meu pai, através dos seus silêncios e sussuros- que Karine,
a rosadinha, a bebé de cara fresquinha da minha irmã Liette,
tinha sido diagnosticada com uma doença muito seria.
Ela
tinha sido levada de ambulância para o hospital Saint -
Justine, o hospital de crianças onde eu tinha estado quando
fui atingida pelo carro. Os médicos disseram para baptizar
Karine tão cedo quanto possível porque ela poderia não viver
mais que algumas semanas. E, se sobrevivesse, ela nunca iria
crecer, e tinha que tomar medicamentos todos os dias da vida
dela.
[53]
Ela provavelmente não iria para a escola, ia sofrer
muito e precisaria de cuidados constantes.
Essa
foi a primeira desgraça para atingir a nossa família. A
criança mais velha lembrava a morte violenta do nosso avô
Dion. E tínhamos acabado de perder a nossa avó Dion. Todos
choraram muito, claro. Mas isso é parte da vida. A Avó foi
calmamente, no fim de uma longa vida. Até ao fim, eu
acredito que ela não queria realmente viver. A morte
tornou-se uma espécie de libertação. É mais do que uma cruel
e injusta condenação.
Karine
não morreu em algumas semanas, como alguns dos médicos
previram. Durante anos, a minha irmã Liette, rodeou-a com
cuidados constantes, todos os dias. Duas, três, cinco vezes
por dia ela tinha que lhe dar massagens para lhe libertar os
pulmões dos mucos que se acumulavam e lhe bloqueavam a
respiração. Ela dava-lhe os medicamentos, punha-a a fazer
uma dieta rigorosa. Tudo isto sem uma verdadeira esperança.
Eu acho que esta era a pior parte: saber que, desde o
inicio, isto era uma batalha perdida.
Em
apenas alguns dias, todos na família se tornaram
especialista na fibrose cística. Nos, que tínhamos odiado
estudar, passávamos agora todas as noites absorvidos na
informação que os médicos davam a Liette.
Ou com
os nossos narizes enfiados num velho dicionário, vendo
palavras cientificas ou invulgares que se encontram nas
paginas de tais documentos. Ou ainda a tentar aprender as
funções e as localizações dos órgãos e glândulas que eram
afectadas ou responsáveis pela doença. Os pulmões, o
pâncreas, o fígado, todo o sistema digestivo. Eu lembro-me
de todos os diagramas anatómicos que nos vimos naquele
dicionário, num esforço para entender.
É
preciso ter um sério caso de ma sorte para adquirir esta
doença. Isto é verdade para todas as doenças, claro, mas no
caso da fibrose cística, os factos fazem-na ainda mais
terrível: é transmitida às crianças apenas se ambos os pais
tiverem o gene.
A
minha mãe obteve informações sobre todos os que ela conhecia
na família dela, na do meu pais e na família do marido de
Liette. Ela descobriu que das sete crianças de uma das suas
primas que vive nos Estados Unidos, que ela não via a mais
de 20 anos, tinha a doença.
Durante o estudo da minha família sobre a doença, nos
soubemos que muitos investigadores estavam interessados
nessa doença. Mas a investigação estava a progredir
calmamente e era muito cara. Mesmo no início da minha
carreira, eu ajudei a arranjar fundos para a Associação de
Fibrose Cística do Québec. Eu sabia que havia esperança. Eu
sabia que importantes progressos tinham sido conseguidos. A
esperança de vida destas crianças era mais que o dobro. Mas
ainda há muito por fazer.
A
minha mãe e eu estávamos sozinhas em casa, e mais vezes. Eu
tinha 10 ou 11 anos. Os gémeos já saíam de casa com grupos
de amigos para praticar skate ou ver shows e filmes. Alem da
minha mãe eu não tinha nenhuns amigos e eu acho que não
queria ter.
[55]
Karine
ia ocupar uma parte muito importante na minha vida. Ela foi
a primeira criança com quem eu gostei de comunicar. Ela não
era como as outras crianças. Mesmo quando ela era um bebé,
por causa do que nos sabíamos, porque ela tinha essa doença,
ela sempre me fez pensar sobre coisas serias, coisas
profundamente comoventes, da morte, mesmo.
Ela
tornou-se numa criança muito seria, com o aspecto e
pensamentos de um adulto, queimada de uma maneira que as
outras crianças não são. Aos cinco anos ela já sabia quão
injusta a vida pode ser.
Eu
nunca a vi correr, nadar, andar de skate ou subir as arvores
como todas as outras crianças. Ela não podia nem domesticar
um gato ou andar num campo, ou num pomar florescente ou ao
longo da margem do rio porque começava a sufocar assim que
fosse exposta à mais pequena quantidade de pó ou pólen, à
mais fraca brisa. Ela tinha um bom apetite, mas porque o seu
corpo não podia absorver elementos nutritivos da comida, ela
tornou-se magra, pálida, anémica.
Eu não
me lembro se falamos da sua doença. Acho que Karine não
falava muito disto com ninguém. Excepto com Liette, eu
pensava, que lhe mostrou a paciência de um anjo e uma
incrível doçura. Karine deve ter sabido intuitivamente que
toda a rebelião era escusada. Ou talvez ela não tivesse a
força para se rebelar, para chorar a raiva que devia ter
dentro dela, o que eu penso que tinha feito se eu estivesse
no seu lugar. Mas eu sei que ela teve os seus períodos de
desânimo. E, durante esses momentos, ela não falava durante
dias.
Quando
ela veio para nossa casa, ela falava mais comigo,
provavelmente pelas nossas idades próximas. Nos íamos para o
quarto das raparigas. Ouvíamos música durante horas. Ela
via-me cantar atrás do espelho que Ghislaine já não usava
porque já se tinha ido embora de nossa casa.
Rapidamente Papa, Maman e eu éramos os únicos lá em casa.
Depois
de ser a mais nova numa família de catorze crianças, eu
finalmente tornei-me uma criança única.
Maman
continuava a trabalhar fora de casa. Mas agora ela tinha um
grande plano de me tornar numa cantora famosa. Ela nunca
esteve muito interessada nos meus trabalhos de casa e aulas,
mas seguiu o meu progresso de cantora de perto. Ela dava-me
conselhos, sugeriu que eu tentasse novas canções. Ou
dizia-me: “Não imites essa cantora. Ela tem uma excelente
voz mas não faz bom uso dela.”
O
nosso modelo absoluto era Ginette Reno, que era então a
maior estrela do Québec. Eu sabia todas as suas canções do
álbum Je Ne Suis Qu’un Chanson (Eu sou só uma canção) de
cor. Eu sabia não só as letras, mas cada nota, todas as
entoações, e eu passava horas tentando reproduzir tão
fielmente quanto possível.
Eu
via-me no espelho e, tal como Ghislaine me tinha ensinado,
eu imaginava que atrás de mim, atrás do meu reflexo, estava
uma audiência inteira, cheia de pessoas a olhar para mim.
Assim que a minha canção acabava, eu levantava o microfone e
deixava-as aplaudir, algumas vezes davam-me ovações em pé,
como faziam para Ginette Reno no Place des Arts.
[57]
Uma
noite, depois da louça lavada, com dois de nos sentados na
mesa da cozinha, Maman falou-me do seu projecto. E o seu
projecto era: eu.
|