CELINE DION PT

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 INFOZONE » MA VIE MON RÊVE EM PORTUGUÊS

  Capítulo 1

 

Eu nunca vou esquecer o dia em quem cantei em publico pela primeira vez. Foi no casamento do meu irmão Michel que também é meu padrinho. Eu tinha 5 anos. Tinha vestido um longo vestido azul com pequenas flores brancas e luvas brancas. Isto deve ter sido no verão porque Michel casou no dia do seu aniversario que é 16 de Agosto.
Os meus irmãos e irmãs fizeram um verdadeiro show para os recém casados. Levantaram um palco inteiro com luzes e amplificadores. Até fizeram testes de som. Começamos por cantar musica folk todos juntos e depois cada um de nos fez o seu pequeno número. Durante alguns dias antes do casamento, Maman pos-me a praticar varias musicas incluindo “Mamy Blue” (Granny Blue), que eu amo e que ia cantar acompanhada pelo meu irmão Daniel ao piano.
Ate àquele momento eu só cantava em nossa casa, com a família. Quase todas as noites depois do jantar, formávamos um coro e cantávamos musicas antigas em roda. Ou cantávamos grandes sucessos de Jimi Hendrix ou Credence Clearwater Revival que tanto gastávamos.
Muitas vezes o meu pai pegava no seu acordião e minha mãe no seu violino. Daniel e Ghislaine podiam tocar qualquer instrumento. E, se não houvesse tambores em casa eles batiam nas mesas, paredes, panelas, no frigorifico….

Enquanto a família lavava os pratos alguém me punha em cima da mesa da cozinha- o meu primeiro palco, uma espécie de teatro como os que eu tenho hoje em dia, com audiência em todos os lados. Eu cantava com toda a minha força, usando um garfo, colher ou a escova de lavar pratos como microfone. E fazia-os rir. Eu não tinha medo de nada nem de ninguém. O único problema é que eu nunca queria parar de cantar. Depois de começar era difícil de me tirar da mesa.
Uma noite, como brincadeira, ou só porque eles já estavam fartos, assim que a cozinha ficou arrumada, fizeram sinais entre eles para irem para a sala, depois de desligarem a luz deixando-me sozinha com o meu “microfone” nas mãos.
Isto não me deixou nada chateada. Primeiro eu sabia que eles não estavam a tentar nada com isso. Nenhum dos meus irmãos e irmãs teve, alguma vez a intenção de me magoar; disto eu estou certa. Ainda mais, nunca na minha vida, no passado ou presente, eu duvidei, por uma fracção de segundo do amor da minha família por mim, ou do amor que os meus irmãos tem pelos outros irmãos e mesmo pelos meus pais.
[25]Quando eles saíram do meu “concerto de cozinha”, eu sabia que era um jogo, um truque que eles estavam a fazer comigo. Eles queriam fazer rir toda a gente. Portanto, eu sai calmamente da mesa e juntei-me a eles, na sala onde se certificaram que eu tive um grande momento. Eu sempre adorei fazer brincadeiras na família. Acho que herdamos isso do meu pai.
Quando tínhamos visitas, amigos dos meus irmãos ou namoradas ou colegas das minhas irmãs a atmosfera era completamente diferente. Para mim, sem duvida. Eu nunca teria subido para a mesa ou cantado sozinha. A não ser que os que viessem também fossem músicos ou cantores, o que acontecia muitas vezes. De facto, a nossa casa atraía todos os jovens da área que gostavam de fazer musica. E tínhamos muitas vezes “convidados estrelas” a aparecer com a nossa banda. Estas vezes, eu ficava calada. E quando me sentia suficientemente confiante, juntava a minha voz aos outros. Mas por muito tempo, o meu canto era privado, puramente um acontecimento familiar.
Como resultado, eu nunca cantei para um publico tão importante e tão fora da família como o que tive no casamento de Michel. Quando foi a minha vez de ir para o palco eu fiquei paralisada com medo do palco. Todos estavam a ver-me e esperando que eu começasse. Estas pessoas intimavam-me: primos que eu quase nunca vi, amigos dos meus irmãos e irmãos que provavelmente não sabiam nada de musica e que não queria certamente ouvir-me cantar.
Um amigo de Michel, Pierre Tremblay, tocou os primeiros acordes de “Mummy Blue”. Eu estava ao seu lado a olhar para o chão com um antipático ruído nos meus ouvidos. Pierre acenou-me e começou a introdução mais uma vez. Mas eu continuei ali, gelada. Depois senti a mão da minha mãe nas minhas costas, puchando-me firme mas gentilmente. E ela estava a dizer-me: “Força, minha pequenina, força. É a tua vez.”
Então eu avancei e comecei a cantar.
Eu não me lembro exactamente o que aconteceu depois, mas continuo a lembrar-me de não querer parar e pedir a Michel para me deixar cantar mais musicas. Também cantei em todos os grupos formados pelos meus irmãos.
Eles deram-me um grande prazer, um sentimento de ter conquistado o meu medo, o meu medo do palco. E, definitivamente, eu conheci, pela primeiríssima vez na minha vida aquela inesquecível sensação sentida por uma cantora quando capta um ouvinte, quando esta a ser ouvida, aplaudida.
Naquele dia eu soube que cantaria toda a minha vida. E descobri a minha alegria em faze-lo."

 

Eu nasci em 30 de Março de 1968. Fui um erro, um acidente e a causa de um sério embaraço para a minha mãe.
No dia em que ela soube que estava grávida de mi, teve que abandonar planos que tanto tinha desejado, por muito tempo. Eu não estava de todo nestes planos. O meu nascimento não foi desejado nem esperado. Vindo ao mundo eu quebraria os seus sonhos. Eu sempre a amei tanto que se eu tivesse sabido disto eu nunca me teria deixado nascer.

[27] A minha mãe já tinha criado 13 filhos. Por mais de 20 anos ela manteve a casa. Ela fazia as lavagens, o trabalho da casa, as limpezas, passava a ferro, fazia as refeições. E ela fazia isto sempre, durante os bons e maus momentos, 365 dias por ano. No momento que ficou grávida de mim, ela pensou e teve o direito de o fazer, que tinha terminado o seu trabalho. Pensou que, finalmente, estava pronta para fazer algo diferente.
Os seus filhos mais novos, Paul e Pauline, que são gémeos, entravam para a escola no próximo Outono. A minha mãe teria algum tempo livre. Ela poderia deixar a casa e ver o mundo. Ela queria arranjar um emprego e fazer algum dinheiro. Talvez ela viajasse com o meu pai para uma parte do Québec, chamada Península Gaspé, outra vez. Eles tinham ambos passado as suas infâncias lá e nunca mais lá voltaram desde que casaram.
A minha mãe foi longe, ao ponto de ir ver o prior para lhe perguntar se ela poderia “parar de ter filhos”, como eles diziam naquela altura, o que significa usar contraceptivos.
Naquele tempo o prior de Québec tinha muita autoridade. Este começou a pregar para ela. Disse-lhe que ela não tinha o direito de desafiar a natureza. A minha mãe ficou furiosa. E também eu fiquei quando soube da historia. Mas ao mesmo tempo, eu tenho que admitir que devo a minha vida, de uma certa maneira, aquele prior.
Os gémeos estavam a celebrar o 6º aniversario no dia em que eu voltei com a minha mãe do Le Gardeur Hospital, onde eu tinha nascido quatro dias antes. Maman deixou-me nos braços dos meus irmãos e irmãs e fez um bolo de chocolate para os gémeos. Na nossa casa as crianças tinham sempre direito a um grande
bolo de chocolate ou baunilha com velas e também a presentes que os meus pais compravam.
Então este era um dia de celebração, mas o coração da minha mãe estava pesado. Comigo em cena, que vim acabar com os seus planos ela encontrou-se atirada de volta ao principio, mais uma vez confinada ao pequeno mundo que ela tanto quis deixar. Eu estava a força-la a deitar fora o sonho de uma nova vida, um sonho que ela pensou estar perto de realizar.
Eu imagino que, no fundo do seu coração, ela se tinha arrependido um bocadinho do meu nascimento. Mas também penso que ela não perdeu muito tempo sentindo pena de ela própria. Isto não e de todo a maneira dela. A minha mãe e feliz a tomar conta de todos mas ela nunca teve paciência para para queixas e bebes chorões.
Eu não sei como isto aconteceu mas, de alguma maneira, eu tive êxito em fazer a minha presença sentida. Eu devo ter encontrado uma maneira de fazer paz com a minha mãe que, ao principio não me desejou. De alguma maneira eu devo tê-la conquistado. Mas não posso tirar muito credito disto. A minha mãe foi sempre doida por bebés - os dela e os das outras pessoas. E, ainda por cima parece que eu fui um bom bebé. Não chorava muito e comecei rapidamente a dormir as noites completas. Claro, eu tinha 15 pessoas nas minhas costas e a chamar-me.
Eu passei os primeiros dias, semanas, ou talvez meses da minha vida nos braços da minha mãe ou pai ou nos dos meus 13 irmaos e irmãs mais velhos.
[29] Era o foco de interessa destas 15 pessoas, sem dúvida a mais autêntica e indulgente audiência que alguma vez tive. Eles olhavam-me, mimavam-me, veneravam-me. À noite discutia para saber em que cama eu ia dormir.

A minha irmã Ghislaine, que tinha quase 10 anos, fez uma surpreendente descoberta. Sempre que ela cantava o meu nome suavemente com uma voz baixinha, em voz de falsete, eu começava a chorar como se fosse uma deixa. Muito naturalmente, ela deduziu com isto que eu não gostava do meu nome. A minha mãe escolheu-o porque, durante a sua gravidez a canção de Hugues Aufrey “Celine” foi um grande sucesso no Québec e em França. “Celine” contava a historia da mais velha de algumas crianças cuja mãe morrera durante o nascimento do seu ultimo filho. A mais velha sacrificou a sua juventude aos seus irmãos e irmãs. E os anos passaram sem que tivesse conhecido o amor.
Ghislaine cantava outros nomes no mesmo tom de voz para ver como é que eu reagia. Eu chorava ainda mais. Então, era claramente a canção que me aborrecia. As outras crianças começaram a divertir-se fazendo-me chorar ate que a minha mãe interviesse. Acabaram as musicas naquelas notas. Mas ninguém parou de cantar nem de fazer musica.
Eu tive a incrível sorte de nascer numa casa cheia de música e canções de manhã até à noite - às vezes até mesmo de madrugada. A música dos outros - Janis Joplin, Jimi Hendrix, Félix Leclerc, Jacques Brel, Barbra Streisand e Ginette Reno - assim como a nossa própria musica.
A música que os meus pais tocavam - o meu pai com o seu acordiao e a minha mãe com o seu violino - a viva musica de dança chamada “rigadoons”. E a musica que os meus irmãos e irmãs tocavam com as suas guitarras, pianos, instrumentos de percussão…há alguma duvida que todos nos nos mantenhamos tão profundamente ligados a nossa infância?
Nos estávamos longe de ser ricos. Mas nos amávamo-nos uns aos outros. E nos tínhamos a nossa musica, que juntamente como a saúde e amor representava o que é mais bonito e precioso no mundo.
E acredito realmente que onde há musica, a felicidade não pode estar longe. Tal como o meu irmão Clement diz, a musica atrai felicidade tal como as armadilhas de madeira usadas pelos caçadores atraem veados e alces.
Isto explica porque a família sempre foi tão importante para mim, porque esta directamente conectada com a minha felicidade e com o meu equilíbrio emocional, com a minha vida diária e com a minha carreira.

Eu sempre fui muito chegada aos meus pais, aos meus irmãos e irmãs, mas essencialmente a minha mãe. Mesmo quando alcancei a idade quem que quase todas as raparigas saem das saias da mãe, se distanciam, tentam emancipar-se e se tornam rebeldes, eu continuei a ver a minha mãe como um modelo a seguir. Ela era a minha amiga, a minha confidente e companheira, assim como insubstituível, essencial, única como uma mãe. A minha mãe é o pilar da nossa família.
Ela escreveu a minha primeira canção. Ela foi o meu primeiro manager. Se hoje eu conheço o homem que me faz feliz, é graças a ela…e também para “tristeza” dela.
[31] O temperamento do meu pai é completamente diferente do da minha mãe. É muito mais reservado e discreto e menos autoritário também, talvez menos seguro de si mesmo diante dos outros e por fim mais isolado. A sua mulher é a autoridade. Eu penso que isso é um acordo. Ela decide; ele vai com o fluxo. Ela toma conta dos problemas; ele detesta ficar embrulhado neles. Ela participa em tudo o que diz respeito a família: ele foge das disputas, de conflitos. Talvez demais.
O meu pai fala muito, mas a maior parte das vezes ela fá-lo para entreter, para fazer rir as pessoas, para as fazer esquecer as preocupações e os seus medos. Ele sempre foi um mestre em fazer de tudo uma piada. Ele não queria ver a miséria, a pobreza, a doença ou sofrimento em casa ou na casa dos outros. Ele detesta hospitais, por exemplo. Mesmo quando a minha mãe ou as minhas irmãs estavam a ter os bebes era praticamente impossível lava-lo a visita-los. Mas eu acredito que na maior parte dos casos os homens não gostam destas situações.
O meu pai não comunica com os outros com tanta facilidade como a minha mãe. Mesmo com os seus filhos, ele não tenta comunicar em níveis em íntimos ou saber o que os outros estão a pensar ou a sentir. Ela so quer que todos estejam felizes. Por acaso, eu não me lembro
de o ouvir queixar-se de alguma coisa ou falar mal de alguém.
Ele adora pescar, mesmo quando os peixes não mordem. Ele ama o golfe, mesmo quando esta a jogar sem par. Ele gosta destas actividades, e dos suas bonitas áreas.
O meu pai e muito bom com as suas mãos. Ele pode construir uma casa inteira - as fundações, fazer toda a carpintaria, por as janelas, a instalação eléctrica, o isolamento - tudo. E ele esta a faze-lo. Eu ate penso que quando alguma coisa partia ou se estragava em nossa casa, ele ficava contente por isso. Ele pegava nas ferramentas e punha tudo como era antes. Ele era o ídolo dos meus irmãos e eles aprenderam muito com ele. O que ele gosta menos e de todo o trabalho de acabamento e detalhe as “coisinhas do fim” como ele as chama.
O Papá é extraordinário tocador de acordeão. Quando eu era pequena ele fazia parte de uma orquestra que tocava em casamentos e celebrações de feriados, não apenas na nossa pequena suburbana vila de Charlemagne mas em toda a região- em Repentigny, em Lanaudière no este de Montreal. Quando ele ensaiava sozinho ou com os seus amigos, o som do seu acordeão emocionava-me, tão fluido e tão alegre, tão doce- tal como ele. Ele sempre teve uma maneira muito distinta de tocar. Basicamente o meu pai revelava-nos mais de si através da sua musica do que a falando connosco. Quando ele tocava, ela parecia mesmo diferente. E ele estava sempre a sorrir.
Então eu costumava ouvi-lo assim como os outros membros da família. Ele tocava sempre de pé com as costas contra a parede da cozinha ou na sala de estar.
[33] E eu penso que todos nos ficávamos surpresos por ver este homem, que nunca queria atenção, de repente, manter-se em pé. Ele fazia mais que tocar. Ele punha alma na musica. E isto era algo que todos podíamos sentir; isto tocava-nos. Algumas vezes, também, ele improvisava ou misturava estilos de musica e todos os tipos de melodias, antigos sons que ele nos ensinou e algum rock que os meus irmãos ouviam naquela altura. Depois ele sentia que nos tinha agarrado, e ficava feliz…e nos também. E ele piscava-nos o olho. O meu pai e campeão do mundo em piscadelas.
A tocar musica foi também como ele seduziu a minha mãe. Eu posso adivinhar como ele o fez. Quando o meu pai toca acordião, ele pode-se tornar perigosamente sedutor. Como musico ele tem este invulgar talento de entrar directamente no coração das pessoas, de realmente as tocar.
Tal como ele a minha mãe foi transplantada da península Gaspé - do mar, floresta e céu - para La Tuque, que é na parte mais remota da região Mauricie do Québec - com as suas faricas e fumo. Foi ai que se conheceram. Ela tinha 17 anos, ele 21. Ele tinha o seu acordião, ela o seu violino. Eles sabiam o mesmo reportório. Tocavam “Hanging Man Reel”. Ele mostrou-lhe acordes para “Mockingbird”. Um ano mais tarde estavam casados. E depois vieram os filhos, de Denise aos gémeos, 13 crianças em 16 anos- que imagem.
Depois eu, inesperadamente, um erro, uns anos mais tarde.

 

Quando tentei recondar a minha infância, eu perguntei a mim mesma se as memórias que eu guardei dela eram realmente minhas ou se as recreei na minha cabeça baseado naquilo que os mais velhos me contaram. Na nossa casa todos se lembram do dia em que eu nasci. Eles falaram-me tanto disto que eu posso dizer como estava o tempo - nublado e ventoso. Todos os meus irmãos e irmãs testemunharam os meus primeiros passos; eles esperavam todos e ouviram as minhas primeiras palavras. Eles também se lembram das primeiras canções que cantei com eles, e, o acidente de carro que quase me custou a vida quando eu tinha dois anos de idade. Eu acabei no hospital com uma fractura no crânio e uma concussão.
Eu consigo visualizar perfeitamente a cenário. Estava muito sol. Um dos primeiros dias de primavera. A terra e o rio perto cheiravam bem.
Os meus irmãos Michel, Jacques e Daniel estavam a fazer a limpeza no pátio. Eles tinham que apanhar a relva velha, limpar os canteiros e apanhar as folhas velhas. Eu estava na caixa de areia a brincar.
Através da sebe - muito magra - que rodeava o pátio eu via uma mulher a empurrar um carrinho de bebé - um carrinho azul.
Pensei que fosse a minha irmã Denise com a sua bebé Christian. Aparentemente eu estava mesmo fixada na Denise com a bebé. Então eu fui em direcção a elas. Eu estava no meio da rua quando me apercebi que me tinha enganado. Não era a minha irmã, mas uma vizinha com o seu bebé.
[35] Os meus irmãos, que estavam no pátio, ouviram os travões de um camião e o choro de uma mulher. Dois segundos mais tarde, eles estavam no cenário do acidente, em frente da casa.
Eles viram um grande carro preto parado no meio da rua Notre - Dame, a porta aberta, um homem do lado dela, imóvel, e eu, estendida no chão.
Michel atirou-se ao chão para me tirar dali. Daniel e Jacques tentaram segurar a minha mãe que saiu a correr porque pensou que eu estivesse seriamente ferida, que talvez eu estivesse morta e eles não queriam que ela me visse.
Dali em diante, as versões diferem de alguma maneira, como usualmente acontece neste tipo de situações.
“Tu choravas com toda a força>”, dizem os meus irmãos.
“Ela não fazia barulho nenhum”, contesta a minha mãe. “E foi precisamente por isso que me preocupei mais. Ela não chorava mas os seus olhos estavam revirados.”
Eu também não estava a sangrar mas tinha marcas azuis e negras e contusões graves nos braços e testa.
“O papá estava lá”, mantem Daniel e Jacques.

“Impossível”, reclamam Maman e Michel. “Eu estaria a trabalhar àquela hora (naquela altura era inspector de carne na Federação Cooperativa do Quebec). “A ambulância já tinha partido quando ele chegou. Não estava la ninguém a não ser policias a acabar os relatórios.”
À alguns anos atrás quando eu comecei a coleccionar recordações de família para as por num álbum para os meus pais- um presente que ainda tenho que acabar- o meu pai tirou da carteira um velho pedaço de papel cor de rosa que ele guardava por mais de 25 anos. Era o relatório da policia.
Graças a este documento e explicações dos meus irmãos eu sei a forma e a cor do carro que me bateu assim como o nome do homem que o conduzia- Jacques Picard.
Ele oferece aos meus irmãos 20 dolares para não chamarem a policia. O meu entendeu o porque algumas semanas mais tarde quando viu a cara do homem na terceira pagina do Journal de Montreal. O homem pertencia ao submundo do este de Montreal. E ele tinha sido batido por outros criminosos por alguns alegados crimes. Deus tenha a sua alma!
Naquela noite, pela primeira vez na minha vida, eu dormi completamente sozinha, longe da minha mãe, num hospital de crianças. Obviamente eu não me lembro de nada, nem de nada mais do acidente. Eu so tinha dois anos. Mas levei anos da minha vida para dormir sozinha outra vez.

Quando eu era pequenina nunca queria ir para a cama. Se eu dormisse na casa de uma das minhas irmãs casadas, onde a minha mãe me deixava, às vezes, por dois ou três dias, eu fazia sempre uma grande cena. Eu queria ficar perto dela todo o tempo, não importava onde ela estava ou que estava a fazer. Eu acho que ela se habituou a isto. Ate eu ter 18 ou 19 anos nos fomos praticamente inseparáveis.

Onde quer que eu esteja onde em dia, eu continuo muito ligada à minha família. Duas das minhas irmãs, Manon e Linda, vivem perto de mim. Os meus irmãos Michel e Clement nunca estão longe. [37] Os outros eu vejo regularmente quando estou em Montreal ou quando eles vem a Florida ou Las Vegas. E não passa um dia sem que eu fale com a minha mãe. Ela visita-me muitas vezes, com o meu pai e a minha tia Jeanne, a sua irmã mais velha, em Júpiter, na Florida, onde René e eu temos a nossa casa.

Os meus parentes viajaram comigo em “tour” durante anos; a minha mãe, claro, quem tem uma energia infindável e adora grandes cidades: New York, Londres e, especialmente Paris. Através dela eu sempre soube o que se passava na família- quer com os irmãos, irmãs, cunhadas, cunhados, sobrinhos e sobrinhas- quem estava a fazer o que, onde, quando, como, quem estava gripado, quem foi promovido no trabalho, quem comprou um carro novo, quem pensa que esta grávida, quem esta em guerra com quem e porque.

Nos vemo-nos com frequência e falamos muito sobre o que nos esta a acontecer no momento, mas especialmente sobre o tempo em que estávamos todos juntos na pequena casa em Charlemagne. Nos pensamos naquela casa como se fosse um paraíso perdido para o qual todos sonhamos voltar- como se desejássemos que todos os 16 de nós vivêssemos todos juntos, com uma casa de banho, quatro pequeninos quartos, sem maquinas de lavar louça (claro), um forno a óleo cm o seu cheiro infernal, sem qualquer conforto moderno.

Como posso eu explicar que este era o sitio onde a felicidade vivia? E como posso eu estar certa disso?

Eu acredito que há algo magico acerca das grandes famílias, famílias que sabem e partilham muito calor humano. Mas as vezes eu digo a mim própria que talvez nos tenhamos esquecido das dificuldades e dos males e que só nos lembramos dos bons momentos que passamos juntos e que, nós exageramos cada vez mais, sempre que falamos deles.

Grandes famílias tem muitas historias partilhadas. E muitos historiadores, claro! Cada uma das crianças mais velhas tem a sua versão dos factos, o seu ponto de vista e a sua interpretação. Eu certamente, sempre quis ouvir as historias, especialmente quando elas voltam aos anos 60 ou mesmo a metade dos anos 50, mesmo antes de eu aparecer para mudar a vida da minha mãe.

À medida que o tempo passou, eu comecei a saber algumas antigas historias como se eu as tivesse realmente vivido- por ter ouvido falas delas tantas vezes. Por exemplo, às vezes sinto como se tivesse conhecido o meu avô Dion, a quem o destino ofereceu um “fraco sopro”.

Apenas a um par de passos da casa onde nos vivíamos naquele tempo, ele foi atingido e morto por um comboio. Com “nós” eu quero dizer a minha família, mas realmente, eu nunca vivi naquela casa que o meu construiu desde as fundações. Depois da terrível morte do seu pai, ele não pôde continuar a estar naquela casa. Mesmo hoje ele não gosta de falar no que aconteceu.

“O teu avô apenas deixou a casa. Houve um terrível barulho. E através da janela da cozinha eu vi o carro dele bater no comboio. Quando o comboio parou, o carro era apenas um montão de fragmentos de metal. Eu fui ate ele e fiquei lá, incapaz de me mecher.”

Depois, o meu pai não conseguiu ficar naquela casa e ver o comboio que lhe matou o pai passar todos os dias. Então, mudamo-nos.

[39] Isto foi vários anos antes de eu nascer, mas mesmo assim eu consigo contar a historia da nossa mudança como se eu estivesse lá. Começou a chover e não havia telas a cobrir o camião. O homem entregou a mobília e um colchão estava completamente ensopado. As crianças gostavam de estar na nova casa, especialmente porque tinha um grande pátio nas margens do Rio Assomption. Lá havia grandes arvores nas quais os meus irmãos penduraram pneus para balançar.

Era uma velha casa canadiana, com a cozinha ao lado do espaço principal, tal como nos velhos dias. Na frente, um pórtico muito estreito corria ao longo de toda a frente, da qual tínhamos acesso para o passeio da Rua Notre- Dame, que era muito movimentada e barulhenta. Nos rés-do-chão, ao lado do quarto dos meus pais, havia uma grande sala de estar que, verdadeiramente parecia mais uma sala de musica. Muitas vezes havia um tambor no meio da sala, guitarras, microfones, amplificadores, gravadores de cassetes, cabos em todas as direcções, gravações, cassetes. Também havia, na lado da rua, uma sala de estar onde raramente estávamos, a não ser que houvesse visitas importantes. Era um espaço frio, escuro e eu não gostava de lá ir. Mesmo hoje eu prefiro cozinhas a salas de estar para conversar ou jogar cartas.

Os quartos das crianças eram no segundo andar, dois para as raparigas, dois para os rapazes.

No maior que eu partilhava com Pauline e Manon, as paredes estavam forradas com posters de actores e cantores. As camas, que ocupavam o quarto todo estavam tão juntas que tínhamos que nos apertar no espaço entre elas e entre as camas e cómodas, entre a janela do sotao e do grande espelho na porta do guarda vestidos.

Eu gostava de ver as minhas irmãs quando elas se maquiavam, se vestiam, posavam à frente do espelho. Eu achava-as lindas. E eu estava impaciente para crescer e fazer o que elas faziam.

Elas também cantavam muito, imitando Mirreile Mathieu, Dalida, Ginette Reno, Barbra Streisand, Aretha Franklin. Mesmo antes de eu começar a escola, eu já conhecia todas estas estrelas.

Lembro-me particularmente de uma dia chuvoso. Ghislaine, que devia ter uns 15 anos ligou o gravador no nosso quarto e estava a imitar a actuação de uma cantora sem parar. Eu ouvi-a toda a tarde. Ela segurava um microfone, sem fio, mas ela usava-o como se estivesse em palco, em frente a uma plateia a quem agradecia. Eu senti-me como se eu também pudesse ouvir os aplausos.

Esqueci-me do titulo da canção - era em inglês – e não me consigo lembrar do nome da interprete. Mas lembro-me da concentração, a determinação da minha irmã. Ela pedia-me para segurar na agulha para o inicio da musica enquanto recuperava a sua respiração. Depois ela recomeçava. Eu estava sentada no chão, ao lado dela. Eu via-a cantar no espelho. E eu estava tão excitada e feliz tal como ela estava quando conseguia duplicar as entoações da cantora.

Naquela noite, os meus irmãos (provavelmente Clement no tambor, Jacques no guitarra e Daniel no teclado) encontraram musica para a canção e Ghislaine cantou com eles. [41] Todos ouviram, até o meu pai e a minha mãe, mesmo a minha avó Dion, que veio viver connosco depois da morte do meu avo.

Ela já era muito idosa e quase débil. Não falava muito. Tinha uma fobia por portas abertas, ela dizia-nos sempre para as fechar, para manter fora as moscas, ate a porta da cave, mesmo no meio do Inverno que não há moscas em lado nenhum.

Maman era maravilhosa com ela. Deu-lhe o seu próprio quarto, no primeiro andar, e mudou-se para o segundo andar com o meu pai. Tomou conta dela, lavava-a, mudava-a, como a um bebé. Ate a ajudava comer e a vestir-se.

Eu ao sei se tinha coragem e a força para fazer aquilo, mas eu admiro, absolutamente aqueles que o fazem, tanto para a família ou como profissão. Eu estou certa que eles encontram prazer em alguma parte disto. Fazer bem, faz-te bem, isto faz-te uma pessoa maior.

Mais uma vez eu vi a vóvó balançar-se na sua cadeira, perdida, completamente perdida nos seus pensamentos. Ela sorria o tempo todo. Mesmo quando não nos conseguíamos ouvir a nos mesmos pensar em casa, por haver vários tipos de musica a tocar ao mesmo tempo. Por exemplo, Ghislaine e Claudette, a minha madrinha, estariam a cantar no andar de cima, no quarto das raparigas. Em baixo, Jacques estaria a tocar guitarra, Clement o tambor, Daniel o piano. Michel estava a ouvir as suas gravações de jazz. Outra das minhas irmãs estava a falar ao telefone. E as vezes a televisão ainda estava ligada.

Mas, na maior parte das vezes, alguém, o meu pai ou a minha mãe, impunham alguma ordem no caos e todos terminavam de fazer musica. Isto podia durar horas, todo o final de dia, senão mesmo uma parte da noite. A avo ficava na sua cadeira e via a família do seu filho fazer musica, tocando “bobines” tão velhas quanto a própria terra ou fazendo as suas versões dos grandes hits dos “Doors”, “Hendrix” ou “Jopin”. Ela parecia maravilhada. E talvaz um pouco surda, também.

Tudo isto fazia-me sentir bem, livre. Eu queria que esta vida durasse para sempre. Era doce e boa. Eu tenho que dizer que tive uma infância muito livre. Surpreende-me hoje em dia que eu não me tenha tornado numa preguiçosa e mimada mulher.

Eu nunca levei uma palmada em toda a minha vida, nem dos meus pais, nem de nenhum dos meus irmãos ou irmãs. Nem uma bofetada, nada físico. Nos não fazíamos esse tipo de coisas. A mim ou aos outros. A minha mãe tinha uma maneira de me punir que era tão eficaz como um estalo na bochecha. Um dia, quando eu devia ter uns 4 ou 5 anos, eu estava com os meus pais no centro comercial em Repentigny, que era perto de onde nos morávamos. Eu queria ir para a loja dos brinquedos. Eu tinha la estado varias vezes com a minha mãe ou com as minhas irmãs. Varias Barbies que eu tive vieram daquela loja.

Mas naquele dia, os meus pais estavam apressados, especialmente o meu pai. Não havia maneira de irmãos para a arca dos tesouros. Quando eu vi que não havia nada a esperar, enquanto o meu pai não concordasse, eu comecei a suplicar a minha mãe. [43] Mas também ela disse que não.

“Ouve, Celine, o dinheiro não cai das arvores. E tu já tens brinquedos suficientes em casa.”

Então eu fiz um verdadeiro escândalo. Eu chorei, bati com os pés e uivei. Vocês podiam ouvir-me de uma ponta a outra do corredor. Estava tão zangada que já não via nada a minha volta. De repente, apercebi-me que estava completamente sozinha. Virei-me e vi os meus pais dirigirem-se para a saída. Eles deixaram-me ali, simplesmente.

Apanhei o susto da minha vida! Em 30 segundos, eu já estava ao pe deles.

Esta foi a lição que a minha mãe me deu quando eu agi como uma menina mimada. Puniu-me com frieza e indiferença. Nunca por me bater ou gritar comigo. A sua autoridade era suficiente para por tudo em ordem.

 

Eu também chorei imenso no dia em que entrei na pré-escola. Eu gosto de ouvir a minha mãe contar esta cena de horror. Eu tinha que deixar o confortável ninho da família e viver todos os dias, durante horas, longe da minha mãe.

Era o mesmo, apenas mais dramático, no ano seguinte, quando saí para a escola. Desta vez porem, a minha memoria só reteu alguns precisos momentos.

Lembro-me que a minha mãe foi comigo a pé e eu segurei a sua mão muito apertada. Quando estava no pátio da escola ela teve que forçar para abrir os meus dedos e separar-me dela. Depois, recuou alguns passos e deixou-me ali, totalmente sozinha. Ela pôs-se atrás da vedação e olhou-me. Nunca, penso eu, o meu coração estivera tão pesado. Porque eu sabia que não podia voltar atrás e voltar a ser bebé. A minha mãe tinha-me avisado que isto estava a chegar. E eu era, e continuo a ser, uma menina muito obediente. Eu faço o que tem que ser feito. Eu faço, sempre fiz e sempre farei o que me for pedido. Desde que as pessoas que o pedem sejam aquelas que eu amo e em quem eu tenho confiança.

Eu sei que todas as crianças tem que enfrentar o primeiro dia de escola. Aos cinco ou seis anos de idade, todos nos somos tirados das nossas famílias e encontramo-nos sozinhos num pátio de asfalto cheio de estranhos. Um profundo aborrecimentos, uma imensa tristeza.

Eu vivi sempre rodeada de adultos e crianças mais velhas que eu. Aprendi tudo o que tinha que saber com eles. Desde que me conheço, a verdadeira vida existe à volta deles. Não no meio de um pátio de escola cheio de crianças assustadas que não sabem nada de nada. Desde esse dia, eu detestei a escola. Para sempre.

Não estou a dar-me como exemplo; eu simplesmente acredito que não fui feita para isso.

A minha vida desmoronou-se. Maman arranjou trabalho num loja chamada América Salvage, no este de Montreal, onde ela vendia botas e sobretudos, etc. Eu ia jantar em casa da minha irmã Louise, que vivia perto da escola e em cuja cada eu tinha que ficar e dormir as quintas e sextas feira, quando a Maman trabalhava a noite.

[45] Na casa de Louise tudo era muito moderno, ordenado, brilhante e confortável.e ainda por cima Loiuse era doce, so por si. Mas à noite, sozinha na minha casa, eu pensava sobre a minha casa. Eu queria esperar acordada na cozinha com Manon e Pauline. Quando Maman chegava a casa do trabalho, nos fazíamos tostas e chocolate quente. E mesmo que eu tivesse na cama, havia aqueles barulhos familiares, aquelas vozes, aqueles cheiros, todo aquele mundo que eu tanto amava. Na casa de Louise, tal como na escola, eu sentia-me exilada.

Não escondi o meu sofrimento da minha mãe, que ficou rapidamente corrida por minha culpa (seria isto que eu queria realmente?). então, para que eu pudesse viajar entre a escola e casa, ela comprou-me uma bicicleta verde. Dali para a frente, eu ia jantar a casa de Louise, mas dormia na minha casa.

Uma noite eu tive um sonho. Eu estava a voltar para casa depois da escola. Eu não tinha minha bicicleta. Estava a correr. Muito depressa. De repente, senti tudo iluminado. E tudo começou a acontecer em câmara lenta, os meus passos ficaram cada vez mais largos, como se estivesse a correr num tapete de borracha. E eu estava extraordinariamente feliz.

Eu nunca esqueci este sonho. Ainda hoje, quando penso sobre ele, consigo recapturar um pedaço da incrível sensação que isto me deu.

Quando penso nesse tempo, eu consigo facilmente ver que, de alguma maneira, eu sempre achei difícil conectar com crianças da minha idade. Eu não acho que o mundo delas me ia interessar. Hoje, eu sou fascinada por isso. Eu não me sentia capaz de encontrar uma maneira de me conectar com crianças delicadas e tornar-me parte dos seus jogos (ou eu pensava que nem valia a pena tentar). Eu preferia estar sozinha. Mesmo quando brincava.

Perto do barracão ao lado da nossa casa, os meus irmãos puseram um saco de pancada, como aqueles usados pelos boxeres, nos treinos. Eu passei horas batendo nele, algumas vezes com alguma das minhas irmãs como parceira de combate ou com a minha sobrinha Cathy, filha da minha irmã Claudette. Mas maior  parte do tempo eu estava sozinha. Às vezes eu batia no saco ate que os meus punhos inchassem. Eu continuava a bater, sem ser capaz de parar. Quando entrei para almoçar, as minhas mãos sangravam. A minha mãe envolveu-as em gaze, tal como fazem aos praticantes de box. E, depois, eu voltei para o meu saco, encontrei o meu ritmo e, mais uma vez, bati-lhe, esquecendo-me de tudo.

Eu também brincava com bonecas. Especialmente durante o verão e usualmente fora de casa. Eu sentava-me no fundo das escoas que davam para o pátio das traseiras. Levava as minhas barbies, mudava-as, uma atrás da outra, e punhas em pose, falava com elas e repreendia-as. Depois punha-as na cama, ordenadas, numa velha arca de madeira que o meu tio Valmont, irmão de Maman, fez para mim.

Eu era a boneca da minha mãe e das minhas irmãs. Elas faziam tranças no meu cabelo, punham verniz nas minhas unhas, maquiavam-me, mesmo quando eu tinha apenas sete ou oito anos. Claudette, Liette e Linda levavam-me muitas vezes com elas às lojas e divertiam-se pondo-me a experimentar vestidos, casacos, sapatos e chapéus.

[47] Eu tornei-me parte dos jogos delas, das suas conversas, e especialmente parte das suas musicas e canções.

Este era o jogo de onde eu tirava mais prazer. O mesmo que eu continuo a jogar hoje: cantar, por um vestido e maquilhagem, vestir uma fantasia, fazer comédias, viver o “show business” como os meus pais, irmãos e irmãs faziam.

 

O meu pai e a minha mãe formaram um grupo musical. A. Dion  and His Ensemble, que dava shows em Lanaudiere e Montreal este. Maman comprou um violino novo. Jacques tocava guitarra, Clement estava nos tambores e Daniel tocava acordião-piano; Denise cantava canções folk e sucessos correntes. Eles chegaram a fazer shows de tv. Eu estava quase sempre com eles, nos estúdios, clubes e bares, mesmo quando eu tinha so 6 ou 7 anos.

Mais tarde, com um amigo da família chamado Michel Desjardins, Ghislaine, Jacques, Michel e Daniel formaram uma banda de verdadeiro rock, ritmo e blues. Nas noites de fim de semana eles tocavam num clube em Charlemagne: o Bord- de- L’eau. Eles chamavam-se “Les Décidés” (Os Determinados) e tinham T-shirts feitas com dois D’s separados pela nota Si. Eu era a fã numero um. Quando eles saíram em tour pelo Quebec, , eu estava triste. Quando estavam perto de nós, eu não perdia um show.

Eu tenho algumas memórias muito claras dessas noites, o sem do órgão Hammond, a guitarra Les Paul Gibson, de que eles tanto se orgulhavam. Eu acho que ainda hoje seria capaz de reconhecer o cheiro do Bord- de- L’eau com os meus olhos fechados. E uma mistura de fumo de cigarro e fruta, muito doce. e estava quente.

Ghislaine, que se chamava a ela própria “Penélope” depois, tomou os tambores de Clement. Ela cantava tão bem, com tanto coração, que todos no clube cresciam calados quando ela se lançava em “Me and Bobby McGee” de Janis Joplin ou Barbra Streisand “The Way We Were”. Os meus pais vinham muitas iam muitas vezes aos shows e levavam-me, claro. Quando eu já tinha o suficiente, dormia num banco.

Eu ia tarde para a cama, muitas vezes. Eu comia quando estava zangada, eu dormia quando não havia mais gente a tocar musica. Eu faltava a escola regularmente, ou se eu fosse, eu estava tão cansada que dormitava durante as aulas.

Eu nunca fui uma boa estudante. Na escola eu não procurava por amigos, não tentava ir a frente ou atrair alguém. Nem deixei que se soubesse que de em quando eu cantava com uma banda. No recreio eu não falava muito. Ficava a parte. Devo ter parecido uma lunática, para algumas raparigas da minha turma, uma pessoa sozinha, paralizada pela timidez ou, completamente snobe. Tudo o que me interessava estava noutro lugar, em casa ou num cabaret. Ou estava no pequeno clube na margem do rio que a minha irmã Claudette e o meu pai tinham comprado. Chamava-se o “Vieux Baril” (Velho Barril) e a minha família tocava musica e cantava ali.

[49] Nas noites em que não ia com eles, eu ouvia-os chegar a casa: eles iam para a cozinha, fazer tostas e café. Eu estava la em cima, na minha cama e ouvia-os contar à Maman como tinha sido a noite deles. Estavam com risinhos, felizes, tendo a mais excitante vida que nos podíamos imaginar. Eu queria crescer tão depressa quanto possível para poder ficar ali com eles.

O Vieux Baril era o lugar onde eu vi verdadeiros shows pela primeira vez. Foi também o lugar onde experimentei pela primeira vez, estar numa multidão e ter os meus primeiros sucessos fora do circulo familiar. Depois dos aplausos, eles encontravam-me, as quatro da manha, a dormir num banco. “Tu podes estar acordada ate quando quiseres, se te levantares de manha, para a escola.”

Portanto, de manha, eu levantava-me apesar do cansaço e ia para a escola, para dormir.

Eu mal podia abrir os meus olhos e acompanhar o que se passava nas aulas, então eu sonhava. Tal como o meu irmão Michel e as minhas irmãs Ghislaine e Claudette, eu sonhava que estaria num palco, um dia, as portas dos estúdios de gravação iam-se abrir para mim e eu seria uma estrela, cantando.

Os D si D (Determinados) separaram-se, então Michel formou outros grupos. “The Eclipse”, que não durou muito, depois o “Show” que teve seguimentos em Cabarets e clubes. Depois ele gravou dois discos de 45’s e uma das suas canções conquistou as tabelas de vendas.

Numa noite de Outono, os meus pais levaram-me a mim e aos gémeos a um show do grupo. Os “Show” estavam a preparar uma grande tour pelo Québec. A moda na altura era de casacos curtos e com folhos e jaquetas de dupla face. Manon tinha feito um de setim branco com “cootails” e golas para Michel. Eu fiquei a admirar o meu irmão, o cantor líder do grupo, a falar no palco, debaixo das luzes da ribalta. Michel tinha uma voz forte e falava muito bem. Eu queria ficar ate ao fim da ultima musica. Desde que houvesse canção, algo para ver e ouvir, eu recusava-me a ir para casa.

Eu sabia um incrível numero de canções, de cor. No “Vieux Baril”, os clientes pediam-me para cantar algumas canções e davam-me moedas. Os meus pais estavam espantados por descobrirem que eu não tinha mais medo de estranhos, que eu podia enfrentar um publico sem problemas. Eu fiquei acostumada com as multidões, com os aplausos, com risos e com os “Bravos”. Eu já não vivia sem eles.

 

Na escola, eu tornei-me uma estranha, um exilada. Assim que as aulas começavam , se eu não caísse num sono de meia hora, eu partia para a lua e começava a fazer pequenos filmes na minha cabeça. O cenário era quase sempre o mesmo: dentro de “Vieux Baril”. A acção era simples: eu estava a cantar numa grande banda de rock, dirigida por Michel ou Daniel. E as pessoas nas mesas paravam de conversar e ouviam-me. Tal como eles faziam para os meus ídolos, Ghislaine e Michel.

Algumas vezes, também, eu ia para África como missionaria, na parte mais escura da floresta. [51] Eu salvava crianças da pobreza, fome e medo. Eu era imparável. Tinha sempre sucesso. Ou, em vez disso, eu era ginasta como a Nadia Comaneci, que se tornou no meu maior ídolo, a mais bonita rapariga que eu alguma vez tinha visto, durante os Jogos Olímpicos de Montreal em 1976. Eu tinha 8 anos. Forreu as paredes do meu quarto com fotos dela. Adorava o seu look intenso e a sua maneira seria. Eu pensava que não havia nada mais bonito na terra.

Acima de tudo, admirava o seu rigor e precisão, a concentração que ela punha em todos os seus movimentos. Para mim ela representava a perfeição- e continua a faze-lo. Ele também foi também a primeira ginasta Olímpica a conquistar o maior record possível. Ter o desejo para alcançar o top, treinando e com disciplina, era uma ideia que eu posso entender perfeitmante. Eu penso que sempre fui capaz de conquistar tudo o que eu queria fazer, também.

Para mim, Nada Comaneci era um modelo e uma inspiração. Eu conheci-a em 1996 nos Jogos Olímpicos. Eu já era uma cantora famosa, mas mesmo assim, eu fiquei tão comvida que estava a tremer e quase chorei.

 

Eu não sei se foi por causa da minha mãe, mas eu nunca fui tratada como a mais nova da família, aquela que os mais velhos mal toleram. Aquela de quem eles escondem certas coisas, a quem eles dizem “ És muito nova para isto, vai para a cama”, ou “ tu vais entender quando fores mais velha”.

Eu não me lembro de ter sido excluída das conversas de adultos, não importa qual fosse o assunto, tendo eu quatro, cinco ou dez anos de idade. Eu não estive na escola sem aprender tudo sobre os mistérios da vida, dos pássaros às abelhas-pelo menos em teoria. Aos doze anos, eu atingi a típica curiosidade de uma menina daquela idade sobre assuntos de amor e não senti necessidade nem urgência em descobri-los. Eu já os conhecia. Talvez isso explique por que é que eu esperei tanto, até à idade de 20 anos - acima da média - para por os meus conhecimentos em prática.

A única coisa que eles tentaram esconder de mim foi a miséria. Eu tinha 9 anos quando soube que a minha sobrinha Karine tinha Fibrose Cística. Mas numa grande família, é muito difícil de esconder alguma coisa de uma criança. A toda a minha volta havia caras em que eu podia ver a tristeza, os longos silêncios, apesar da musica, à noite, depois dos afazeres da casa. Os olhos da minha mãe estavam cheios de lágrimas. Ela estava a falar ao telefone com os meus irmãos e irmãs que já não viviam connosco. Estava a dizer-lhes, em voz baixa, que algo de terrível tinha acontecido.

Foi assim que eu soube - através das lágrimas dos minha mãe e do meu pai, através dos seus silêncios e sussuros- que Karine, a rosadinha, a bebé de cara fresquinha da minha irmã Liette, tinha sido diagnosticada com uma doença muito seria.

Ela tinha sido levada de ambulância para o hospital Saint - Justine, o hospital de crianças onde eu tinha estado quando fui atingida pelo carro. Os médicos disseram para baptizar Karine tão cedo quanto possível porque ela poderia não viver mais que algumas semanas. E, se sobrevivesse, ela nunca iria crecer, e tinha que tomar medicamentos todos os dias da vida dela. [53] Ela provavelmente não iria para a escola, ia sofrer muito e precisaria de cuidados constantes.

Essa foi a primeira desgraça para atingir a nossa família. A criança mais velha lembrava a morte violenta do nosso avô Dion. E tínhamos acabado de perder a nossa avó Dion. Todos choraram muito, claro. Mas isso é parte da vida. A Avó foi calmamente, no fim de uma longa vida. Até ao fim, eu acredito que ela não queria realmente viver. A morte tornou-se uma espécie de libertação. É mais do que uma cruel e injusta condenação.

Karine não morreu em algumas semanas, como alguns dos médicos previram. Durante anos, a minha irmã Liette, rodeou-a com cuidados constantes, todos os dias. Duas, três, cinco vezes por dia ela tinha que lhe dar massagens para lhe libertar os pulmões dos mucos que se acumulavam e lhe bloqueavam a respiração. Ela dava-lhe os medicamentos, punha-a a fazer uma dieta rigorosa. Tudo isto sem uma verdadeira esperança. Eu acho que esta era a pior parte: saber que, desde o inicio, isto era uma batalha perdida.

Em apenas alguns dias, todos na família se tornaram especialista na fibrose cística. Nos, que tínhamos odiado estudar, passávamos agora todas as noites absorvidos na informação que os médicos davam a Liette.

Ou com os nossos narizes enfiados num velho dicionário, vendo palavras cientificas ou invulgares que se encontram nas paginas de tais documentos. Ou ainda a tentar aprender as funções e as localizações dos órgãos e glândulas que eram afectadas ou responsáveis pela doença. Os pulmões, o pâncreas, o fígado, todo o sistema digestivo. Eu lembro-me de todos os diagramas anatómicos que nos vimos naquele dicionário, num esforço para entender.

É preciso ter um sério caso de ma sorte para adquirir esta doença. Isto é verdade para todas as doenças, claro, mas no caso da fibrose cística, os factos fazem-na ainda mais terrível: é transmitida às crianças apenas se ambos os pais tiverem o gene.

A minha mãe obteve informações sobre todos os que ela conhecia na família dela, na do meu pais e na família do marido de Liette. Ela descobriu que das sete crianças de uma das suas primas que vive nos Estados Unidos, que ela não via a mais de 20 anos, tinha a doença.

Durante o estudo da minha família sobre a doença, nos soubemos que muitos investigadores estavam interessados nessa doença. Mas a investigação estava a progredir calmamente e era muito cara. Mesmo no início da minha carreira, eu ajudei a arranjar fundos para a Associação de Fibrose Cística do Québec. Eu sabia que havia esperança. Eu sabia que importantes progressos tinham sido conseguidos. A esperança de vida destas crianças era mais que o dobro. Mas ainda há muito por fazer.

 

A minha mãe e eu estávamos sozinhas em casa, e mais vezes. Eu tinha 10 ou 11 anos. Os gémeos já saíam de casa com grupos de amigos para praticar skate ou ver shows e filmes. Alem da minha mãe eu não tinha nenhuns amigos e eu acho que não queria ter.

[55] Karine ia ocupar uma parte muito importante na minha vida. Ela foi a primeira criança com quem eu gostei de comunicar. Ela não era como as outras crianças. Mesmo quando ela era um bebé, por causa do que nos sabíamos, porque ela tinha essa doença, ela sempre me fez pensar sobre coisas serias, coisas profundamente comoventes, da morte, mesmo.

Ela tornou-se numa criança muito seria, com o aspecto e pensamentos de um adulto, queimada de uma maneira que as outras crianças não são. Aos cinco anos ela já sabia quão injusta a vida pode ser.

Eu nunca a vi correr, nadar, andar de skate ou subir as arvores como todas as outras crianças. Ela não podia nem domesticar um gato ou andar num campo, ou num pomar florescente ou ao longo da margem do rio porque começava a sufocar assim que fosse exposta à mais pequena quantidade de pó ou pólen, à mais fraca brisa. Ela tinha um bom apetite, mas porque o seu corpo não podia absorver elementos nutritivos da comida, ela tornou-se magra, pálida, anémica.

Eu não me lembro se falamos da sua doença. Acho que Karine não falava muito disto com ninguém. Excepto com Liette, eu pensava, que lhe mostrou a paciência de um anjo e uma incrível doçura. Karine deve ter sabido intuitivamente que toda a rebelião era escusada. Ou talvez ela não tivesse a força para se rebelar, para chorar a raiva que devia ter dentro dela, o que eu penso que tinha feito se eu estivesse no seu lugar. Mas eu sei que ela teve os seus períodos de desânimo. E, durante esses momentos, ela não falava durante dias.

Quando ela veio para nossa casa, ela falava mais comigo, provavelmente pelas nossas idades próximas. Nos íamos para o quarto das raparigas. Ouvíamos música durante horas. Ela via-me cantar atrás do espelho que Ghislaine já não usava porque já se tinha ido embora de nossa casa.

Rapidamente Papa, Maman e eu éramos os únicos lá em casa.

Depois de ser a mais nova numa família de catorze crianças, eu finalmente tornei-me uma criança única.

Maman continuava a trabalhar fora de casa. Mas agora ela tinha um grande plano de me tornar numa cantora famosa. Ela nunca esteve muito interessada nos meus trabalhos de casa e aulas, mas seguiu o meu progresso de cantora de perto. Ela dava-me conselhos, sugeriu que eu tentasse novas canções. Ou dizia-me: “Não imites essa cantora. Ela tem uma excelente voz mas não faz bom uso dela.”

O nosso modelo absoluto era Ginette Reno, que era então a maior estrela do Québec. Eu sabia todas as suas canções do álbum Je Ne Suis Qu’un Chanson (Eu sou só uma canção) de cor. Eu sabia não só as letras, mas cada nota, todas as entoações, e eu passava horas tentando reproduzir tão fielmente quanto possível.

Eu via-me no espelho e, tal como Ghislaine me tinha ensinado, eu imaginava que atrás de mim, atrás do meu reflexo, estava uma audiência inteira, cheia de pessoas a olhar para mim. Assim que a minha canção acabava, eu levantava o microfone e deixava-as aplaudir, algumas vezes davam-me ovações em pé, como faziam para Ginette Reno no Place des Arts.

[57] Uma noite, depois da louça lavada, com dois de nos sentados na mesa da cozinha, Maman falou-me do seu projecto. E o seu projecto era: eu.

 

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